Seus Filhos | Capítulo Quarenta E Sete
Noah estava sentado num canto do sofá enquanto esperava, Nicholas dormia com a cabeça apoiada em seu colo; o loiro mexia no cabelo escuro dele para se distrair, brincando com as mechas carinhosamente.
O sol já estava nascendo, sentia-se exausto, mas resolveu esperar acordado — não conseguiria dormir mesmo se tentasse. O dia clareava quando a mãe finalmente apareceu na sala, depois de horas trancada na cozinha em uma reunião do Clube Sobrenatural Super Secreto De Pais.
— Aislinn vai ficar com vocês na biblioteca e lhes levar para o aeroporto quando for a hora — disse ela, soando muito cansada e vazia. Noah balançou a cabeça, então olhou para Nicholas, ainda dormindo profundamente.
— Não posso ir para Nova York com Beth desaparecida — protestou baixinho, tentando não acordar Nicholas. Quando é que haviam decidido que apresentar um musical e dar uma festa na véspera da viagem e do eclipse seria uma boa ideia? — Se Nick quiser ir, tudo bem, mas eu vou ficar — afirmou com convicção. Sara suspirou pesadamente, passando a mão pelos cabelos bagunçados.
— Noah...
— Não posso simplesmente entrar naquele avião, sabe disso — interrompeu antes que ela tentasse convencer do contrário. Sabia que seus pais haviam passado a noite inteira procurando por traços de energia demoníaca, por qualquer rastro que Bethany pudesse ter deixado, mas ninguém havia encontrado nada.
— Você vai ficar na biblioteca com Aislinn, então — afirmou ela, Noah concordou porque estava sem energia para discutir. Sara voltou para a cozinha, Noah cochilou um pouco até que Aislinn lhes chamou, então acordou Nicholas e saíram do apartamento.
Por algum motivo, Aislinn ainda tinha uma chave reserva da biblioteca, então aproveitariam que não haveria ninguém lá para criar um ponto de encontro para todos, além de procurar por pistas que Amara pudesse ter deixado.
Com ordens diretas de sua mãe, Aislinn deveria lhes manter dentro da biblioteca, não tinham permissão para sair até que tudo estivesse resolvido. Aparentemente, Naomi havia saído da cidade com Louise e Kathy, seu pai e Rafael estavam dando uma olhada nas ruas para informar a situação para os outros.
Nicholas cochilou por mais algum tempo depois que chegaram, Noah ficou andando pelo lugar e observou a rua pelas janelas, tentando enxergar qualquer movimentação diferente. Foi só quando Nicholas acordou que Noah voltou para o sofá em que ele dormia, sentando-se na ponta.
— Não posso ir para Nova York — disse de uma vez, e então esperou alguma reclamação, uma face decepcionada. Surpreendentemente, Nicholas só ajeitou os cabelos espetados e assentiu lentamente.
— Não posso fazer nada para que você mude de ideia? — Noah negou automaticamente. Ele suspirou, depois olhou para as estantes bagunçadas da biblioteca e para a grande janela. — Tudo bem, podemos mudar a viagem para outro dia. — Noah franziu as sobrancelhas quando ouviu o plural. O que ele que queria dizer com aquilo?
— Podemos? — Nicholas assentiu com firmeza.
— Não há nenhuma chance de eu deixar você aqui sozinho. — Noah ofegou com a afirmação. Não, não era para aquilo acontecer. Deveriam estar indo para o aeroporto, então ele pegaria um avião para bem longe dali.
— Nick, você estará mais seguro lá — insistiu, e Nicholas levantou uma sobrancelha daquele jeito provocante que só ele sabia fazer.
— E você também — retrucou, e Noah ficou calado por um momento. Os dois se encararam em silêncio, Noah quase começou a insistir para que ele pegasse o avião e fugisse dali, mas então se aproximou e o abraçou forte.
— Obrigado — sussurrou, e Nicholas sorriu fraquinho.
Nas horas seguintes, ajudaram Aislinn a procurar entre os livros, tentando encontrar qualquer bilhete, papel ou qualquer coisa que Amara pudesse ter esquecido e deixado para trás. Não encontraram nada, nenhum vestígio da presença de Amara, muito menos pistas de onde ela e Bethany estariam.
Ficaram de olho no relógio, passava das três horas, Nicholas já havia transferido as passagens para outro dia, então não havia mais volta. Quando o eclipse começou, estavam os dois na janela, tentando espiar o que estava acontecendo, mas Aislinn lhes obrigava a manter as cortinas fechadas.
— Não fiquem tão perto da janela — orientou ela, impaciente e um tanto nervosa enquanto andava de um lado para o outro.
Ficou impressionado quando o dia escureceu. Não escureceu totalmente, o horizonte tinha restos de amanhecer e pôr do sol, mas sombras cobriam as ruas. Havia poucas pessoas ali, mas uma pequena multidão se concentrava na lanchonete da esquina, sentados nas mesas para observar o eclipse. Noah ficou observando o céu, completamente hipnotizado. Era assustador e lindo ao mesmo tempo.
— Aislinn? — chamou Nicholas, se afastando da janela. Noah continuou olhando para a paisagem. — Aquilo deveria estar acontecendo? — Aislinn se aproximou, Noah desviou a atenção do céu para observar o lugar que Nicholas apontava, a lanchonete.
Percebeu que a escuridão cercava aquele horizonte mais do que o resto da paisagem. Noah estreitou os olhos, tentando enxergar melhor o que estava acontecendo — quase engasgou-se quando percebeu as correntes escuras que pareciam uma neblina, uma neblina igualzinha à que constituía as criaturas bizarras de Mamon. Noah se afastou da janela.
— Merda. — Já estava desviando de uma das mesas de estudo e acelerando o passo para chegar até a porta. Antes que pudesse chegar ao balcão de recepção, duas figuras escuras se materializaram no ar e bloquearam sua passagem.
— Noah — alertou Aislinn, e Noah revirou os olhos. Maldito momento em que sua mãe resolvera que seria uma boa ideia dividir o exército com ela.
— Precisamos ir para lá! — insistiu quando a encarou, irritado com as duas criaturas lhe bloqueando como cães de guarda.
— É perigoso! — Aislinn permanecia irredutível, Noah olhou para Nicholas em busca de ajuda. Ele estava ao lado de Aislinn agora, hesitou por um momento ao olhar para a janela coberta com cortinas.
— Ela tem razão, precisamos de um plano — Nicholas disse lentamente. — Talvez um exorcismo funcione, algo assim. Verônica me ensinou a focar o poder nas palavras, acho que posso fazer isso. — Aislinn vacilou e olhou para a porta por um momento, considerando o que fazer.
— O rubi ficou conosco, posso tentar usá-lo. É um objeto poderoso, dá para intensificar o exorcismo com ele — sugeriu Noah. Sara havia decidido que o local mais seguro para o rubi seria a biblioteca, onde Aislinn poderia cuidá-lo o tempo inteiro.
— Não posso deixar vocês sozinhos, mas também não quero pensar no que acontecerá se um bando de pessoas possuídas descobrirem que estamos aqui — considerou ela, andando de um lado para o outro e tentando disfarçar o nervosismo. — Tem certeza de que consegue fazer isso? — Aislinn virou-se para Nicholas, muito séria e muito desconfiada. Ele sorriu levemente e assentiu.
— Sou fã de Supernatural. — Aislinn cruzou os braços com impaciência, Nicholas revirou os olhos. — Verônica me ensinou alguns versos em latim. — Mais alguns segundos de incerteza, então Aislinn tirou o rubi da própria bolsa e entregou para Noah. Saíram da biblioteca logo em seguida.
O dia ainda estava escuro por causa do eclipse, mas clareava aos poucos e as sombras se movimentavam para todos os lados, lhe deixando ainda mais alerta. Não sabia o que era sombra ou demônio.
A lanchonete era uma construção pequena com uma grande varanda, as mesas estavam lotadas por pessoas variadas e de todas as idades e, mesmo com as diferenças, todos os olhos se voltaram para os três.
Aislinn deu um passo para frente. Noah sentiu o estômago revirar quando percebeu olhos completamente escuros, sem as írises ou qualquer sinal de luz.
— Comecem — sussurrou ela, e Noah correu para o lado de Nicholas.
Apertou o cristal vermelho entre os dedos, Nicholas colocou as próprias mãos em volta das suas. Ouviu cadeiras se arrastando, duas pessoas se levantaram; em questão de segundos, Aislinn havia lhes cercado com criaturas demoníacas que formavam um muro protetor, bloqueando a vista da lanchonete.
Nicholas fechou os olhos e começou a murmurar alguma coisa, Noah seguiu as palavras dele. Foi fácil sincronizar tom e ritmo, o rubi começou a esquentar e pulsar na palma das mãos quando começaram a falar ao mesmo tempo.
Esquentou e esquentou, vibrando entre os dedos. Seguraram mais forte.
Segundo depois, a ventania começou, um vento forte e cortante que uivava e girava em círculo, chiando alto e lhe ensurdecendo. Noah tentou permanecer firme e focado, levantou o tom de voz para conseguir acompanhar Nicholas.
Ouvia movimentos agora. Sons apressados, batidas, exclamações de dor. Nenhuma parecia ter vindo de Aislinn ou Nicholas, então manteve os olhos bem fechados. Tentou não pensar na luta que acontecia logo ali, no mundo que desabava ao redor.
A pedra ficava cada vez mais quente, percebeu que Nicholas se esforçava para segurar, para manter as mãos junto das suas. Resolveu abrir os olhos quando sentiu as mãos dele tremerem, então resfolegou. Estavam queimadas. Um filete de sangue escorria da pele machucada, mas ele continuava com os olhos fechados e recitando firmemente.
— Nick — sussurrou levemente, então puxou as mãos para afastar o rubi dele. Nicholas cambaleou para trás com uma cara de quem iria vomitar ou desmaiar, ele arregalou os olhos e olhou para o rubi, depois lhe lançou um olhar culpado.
Noah sorriu porque ele tinha cumprido o objetivo, sentia o rubi explodindo de poder, as mãos cheias da energia dele. Fechou os olhos e misturou tudo aquilo, deixou pulsar e arder. O rubi escapou de suas mãos e pulou para o ar, Noah mal conseguiu respirar quando viu o que estava acontecendo.
O rubi brilhava e se expandia para uma espada longa e brilhante, iluminando a rua cheia de sombras do eclipse. O sol voltava a brilhar lentamente, a espada e o eclipse acontecendo no mesmo ritmo.
Noah agarrou a espada assim que a viu completa, apertando a mão em volta da empunhadura e levantando a lâmina. Deixou que acontecesse, que os poderes e os versos em latim lhe guiassem: A lâmina brilhou forte, vermelha como fogo.
O que aconteceu em seguida foi uma confusão de escuridão, fumaça e Noah tentando segurar a lâmina com muita força, porque ela tremia em suas mãos, subitamente pesada e prestes a explodir. Aislinn gritava alguma coisa aos fundos, Noah achou que havia escutado a voz de Nicholas, mas estava concentrado demais para conseguir entender.
Era como se toda a escuridão do céu fosse sugada para a lâmina, Noah tentou segurar o impacto, conter a energia que ameaçava a escapar, destruir a espada. Os braços arderam de maneira infernal, tremia por inteiro, mas permaneceu ali, observando enquanto a arma sugava os demônios para dentro e a lâmina brilhava, vermelha.
Segurou o máximo que pôde, a corrente poderosa fazia seu sangue pulsar e lançava choques pela pele. E então parou. Tão subitamente quanto começou, parou.
Noah olhou para a espada e deixou que ela escorregasse de suas mãos. Piscou algumas vezes enquanto a via cair e, quando a arma encontrou o asfalto, era apenas um rubi em milhares de pedaços.
Noah desabou logo depois.
« ♡ »
A floresta estava mais quieta do que esperava quando o eclipse começou. Sara parou de caminhar quando as sombras cobriram as árvores, Arthur parou ao seu lado, segurando a espada numa posição alerta.
Sara carregava duas adagas fixadas num cinto e a espada de Mamon na mão, esperando que aquilo atraísse a atenção dele.
— E agora? Pelo que esperamos? — indagou baixinho, olhando entre as árvores do bosque. Sombras se movimentavam o tempo inteiro, Sara tentava discernir se havia algum vulto anormal ali. Estranhamente, não havia nada. Nada apocalítico ou demoníaco, como esperava.
— Acho que a prioridade é encontrar Bethany. — Sara estremeceu com a fala dele, baixando o olhar para que Arthur não pudesse ver sua expressão desabar. Chutou um monte de folhas secas, levantando uma nuvem de poeira.
O centro do céu havia escurecido, mas os horizontes ainda tinham uma faixa de luz, algumas acinzentadas como um amanhecer, outras alaranjadas como um pôr do sol.
— Devemos nos separar? — sugeriu ela, baixando o olhar e conferindo as adagas na cinta para se acalmar. Um eclipse poderia durar até sete minutos, quem sabe que tipo de loucura poderia acontecer até lá?
Tentava engolir o desespero ao lembrar que não sabia onde Bethany estava, porque precisava manter o foco. Sua vontade era de gritar. Gritar, então se encolher e chorar.
— Não sei se é uma boa ideia. — Arthur pareceu preocupado, os olhos dourados brilharam intensamente. Sara levantou uma sobrancelha e deixou os olhos escurecerem com o poder que pulsou por dentro.
— Eu posso me cuidar — garantiu com um sorriso irônico. Ele se aproximou por um momento e lhe deu um beijo leve nos lábios.
— Não faça nada imprudente — sussurrou Arthur, Sara assentiu lentamente e deixou que ele se afastasse. Ele foi para leste, Sara seguiu para o norte. Se continuasse no mesmo caminho, chegaria na igreja abandonada.
Rafael havia passado lá mais cedo, não havia sinal de qualquer presença — não custava tentar de novo.
Seguiu o mais silenciosamente que pôde, desconfiada a cada passo. O dia escurecia e escurecia, Sara estava desconfortável com os sons do bosque e as sombras que se movimentavam numa dança bizarra.
Foi um passo pesado que lhe fez parar. A outra pessoa não fazia questão de ser discreta.
Sara apertou a espada de Mamon entre os dedos, depois se virou lentamente com uma postura arrogante. Estava cada vez mais ansiosa e autoconfiante para acabar com Mamon e seus ajudantes.
Para sua surpresa, não era Mamon. Não era ninguém que conhecesse.
— Isso não é seu. — O homem apontou para a espada nas mãos de Sara, e os olhos escuros brilharam contra os cabelos loiros dourados. Sara levantou uma sobrancelha e sorriu provocante, contendo uma risada.
— Vem pegar — ironizou com acidez. Quando ele fez o primeiro movimento, Sara segurou a espada com as duas mãos, pronta para enfiá-la no peito dele assim que se aproximasse o bastante.
Para sua surpresa, uma silhueta se materializou como uma nuvem escura e esfumaçada. Uma silhueta loira que usava roupas pretas de couro.
— Belphegor — disse a loira, muito suavemente. Sara estava pasma demais para reagir, mas supôs que aquela fosse Azazel, pelas descrições que já ouvira. — Não vamos nos apressar, sim? Você ainda tem tempo para mudar de ideia. — O tom dela estava sendo irônico, percebeu. Azazel emanava uma falsa amizade.
— Eu poderia dizer o mesmo, mas só quero acabar logo com isso — replicou Belphegor, e então tirou uma espada de um apoio nas costas, golpeando rapidamente na direção de Azazel, que desviou com facilidade e agarrou o pulso dele.
Foi um movimento só, Azazel o jogou no chão antes que pudesse piscar. Sara não podia negar que estava impressionada.
— Eu avisei — disse ela, tomando a espada que ele havia deixado cair. Antes que Azazel pudesse golpeá-lo, alguém apareceu e a empurrou com força, duas silhuetas seguraram-na pelos braços.
— Eu pensaria duas vezes — disse Belphegor, se levantando enquanto uma mulher e um homem seguravam os braços de Azazel. Sara observou a cena tentando não chamar atenção. Azazel não parecia muito preocupada, mas Sara percebeu que estava lidando com um novo tipo demoníaco: Não eram as silhuetas escuras e sem consciência com quais estava acostumada, aqueles dois tinham vontade própria e eram muito mais poderosos.
Sem realmente refletir sobre o que estava fazendo, Sara convocou duas de suas criaturas, que apareceram imediatamente atrás das figuras demoníacas que prendiam Azazel, afundando as espadas poderosas que havia escolhido com a ajuda de Elisa no corpo dos dois.
Eles sumiram quase imediatamente numa confusão escura de poder, Azazel estava livre e girou para começar a golpear outros que tentavam se aproximar dela. Sara ficou em posição também, atenta quando as silhuetas começaram a surgir a torto e direito.
Algumas eram as criaturas sem rosto e consciência que Sara também tinha como exército, mas outros eram humanos — ou, pelo menos, se pareciam com humanos. Alguns tinham os olhos dourados dos querubins, isso lhe deixou enjoada. Onde estava Arthur? Ele já devia ter sentido a presença demoníaca a esta altura.
Sara girou e acertou duas criaturas quando moveu a espada, pulsando poder para mantê-las longe. O ruído agudo das espadas ardeu em seus ouvidos, os músculos latejaram com o choque das lâminas. Queria deixar parte de seu exército disponível para que Aislinn pudesse usar, então invocou poucos, apenas o suficiente para abrir um caminho enquanto tentava se afastar e seguir pelo caminho que Arthur percorrera, quem sabe encontrá-lo.
É claro que, antes que pudesse dar mais cinco passos, Belphegor apareceu com um sorriso irritante, bloqueando sua passagem. Ele não hesitou desta vez, nem parou para falar, Sara teve pouquíssimo tempo para levantar a espada que tinha em mãos e bloquear o golpe dele.
As árvores e galhos ao seu redor lhe atrapalhavam, precisava tomar cuidado e às vezes se defender de outros do exército dele, mesmo se cercando do próprio e dificultando para Belphegor e seus aliados. Ficou surpresa quando uma das criaturas de Azazel lhe protegeu de um golpe vindo do lado esquerdo, mais ainda quando se viu ao lado da loira.
Havia se afastado de Belphegor, tentando pensar numa estratégia melhor do que aquela luta de espadas. Quase tropeçou num galho, mas acabou se equilibrando e parando ao lado de Azazel. De repente, ali estavam, lutando lado a lado de costas, abrindo um círculo e se defendendo juntas.
— Acabe com ele — foi tudo o que Azazel disse, e Sara concordou com a cabeça, disposta a aceitar aquela bandeira de paz.
Não precisou ir até Belphegor, ele se aproximou e lhe acertou com um golpe que passou raspando nas costelas, deixando um corte profundo que lhe fez se curvar e falsear por um momento. Não havia sangue, mas ele definitivamente conseguira fazer algum estrago.
Tentou focar na batalha e na movimentação ao seu redor, ignorar a visão embaçada. O corte ardeu quando tentou levantar a espada, não conseguiu reunir força nos braços e o golpe falseou; para sua surpresa, o próximo golpe de Belphegor também falhou — alguém o havia puxado para trás, enfiado uma lâmina fina em seu pescoço com um golpe brusco, depois puxou a adaga com força e enfiou no peito dele.
Distraída, Sara quase não conseguiu se defender de um homem que lhe atacou pela direita, desviando da espada dele antes que causasse algum dano. Com seus próprios poderes, jogou-o para trás a tempo de ver Belphegor desaparecer numa nuvem furiosa de luz, sombras e poderes que eram arrastados para o chão.
Sara sentia-se zonza. Belphegor havia desaparecido com boa parte de suas criaturas, que dependiam dos poderes dele para continuar. Belphegor não existia mais, nem suas criaturas. Aquilo tornava a batalha mais fácil, mas ainda via Azazel e seu exército enfrentando querubins desertores e outros com poderes demoníacos.
Viu Liam segurando a adaga que acertara Belphegor, parado bem no ponto em que antes ele estava. Liam, Arthur e Rafael lado a lado, prontos para lutar. Atrás dos três, estava o exército de querubins já posicionado e pronto para atacar.
Sara não teve certeza de quando a luta começou, estava focada demais em abrir caminho para chegar até Liam e Arthur. Detestava admitir, mas a guerra de luzes e poderes era linda, como ver uma chuva de estrelas cadentes — e agora o céu começava a clarear novamente, amanhecendo daquela noite fora de hora.
Levantou a espada e começou a golpear. Não estava preparada para aquele caos, sentia-se agoniada. Não ouvia o próprio coração disparado, nem sentia falta de ar, aquilo lhe deixava desnorteada. Continuou golpeando e golpeando, tentando não olhar para as faces que golpeava, para os querubins que destruía. Lhe embrulhava o estômago, tinha vontade de pedir desculpas, mesmo que eles lhe atacassem com aquele olhar furioso — e percebeu que nenhum deles estava brincando, eles estavam ali para, de fato, lhe destruir. Não hesitavam, atacavam diretamente seus pontos mais vulneráveis e Sara ficava cada vez mais exausta enquanto erguia proteções contra os poderes dos outros.
Não queriam recuperar a espada, queriam lhe ver desaparecer, porque era um empecilho no caminho deles, no suposto plano glorioso de ascensão. Sara quis vomitar.
Estava conseguindo manter a concentração, manter os outros longe com alguns poucos cortes eventuais, apesar da exaustão e dos poderes invasivos estarem começando a lhe afetar. Foi quando a lâmina adentrou suas costas. Sentiu nitidamente o metal frio espalhando e pulsando energia corrosiva, paralisando seus músculos e lhe enfraquecendo em questão de segundos.
Estava perto de Liam, Arthur estava de costas e Rafael havia sumido em algum lugar. Sara viu a floresta girar e então paralisar numa bagunça de espadas e luzes douradas, além dos olhos escuros que lhe observavam. Os pensamentos estavam desacelerando, a dor pulsava forte e nauseante.
Queria gritar, ter forças para erguer a espada. Quando olhou para a própria mão, percebeu que a espada havia sumido — quando aquilo havia acontecido?
A próxima coisa que percebeu é que estava indo de encontro ao chão, o mundo girando naquele caos barulhento de armas, luzes e criaturas celestiais. Seu exército lhe cercando era a única coisa que lhe protegia agora, mas viu Liam correndo em sua direção, tomando-lhe nos braços logo em seguida.
Quando ele falou, viu os lábios se mexendo, mas não ouviu as palavras dele. Liam lhe segurou nos braços, ajoelhado no gramado enquanto alguém que parecia um borrão lhes protegia como uma barreira. Liam continuava falando alguma coisa, Sara gaguejava sem entender, queria se encolher com a dor.
Uma luz muito intensa tomou todo o cenário, Sara fechou os olhos por causa do desconforto. Estava exausta. Queria dormir. Os pensamentos difusos confundiam o cenário ao seu redor. A batalha parecia um sonho distante.
Ainda de olhos fechados, ouviu a voz de Liam, mas parecia longe, muito longe.
A luz continuou, então manteve os olhos fechados enquanto se encolhia com a dor lancinante. De repente, o mundo se silenciou. Não havia mais barulho de espadas se batendo, de poderes e passos pesados na floresta, não havia mais gritos altos.
Sara recuperava a audição e os sentidos aos poucos, pendurada na beira da inconsciência. Estava nos braços de Liam? Ou estava deitada no tapete de folhas secas e grama da floresta?
— Eu cuido disso, energia de querubim só vai fazer com que ela piore. — Sara gostou do tom rígido. Não reconheceu quem dissera aquilo, mas tinha confiança na pessoa.
Fez um esforço para abrir os olhos, as pálpebras pareciam coladas. Não estava mais nos braços de Liam, Arthur lhe segurava e estava com a cabeça deitada no peito dele, o corpo pousado numa cama desconfortável de gravetos, terra e grama. Foi um alívio encarar aqueles olhos dourados preocupados, sentir os braços dele ao seu redor, lhe segurando com tanto carinho.
— Azazel pode te ajudar — disse ele com muita suavidade. Sara olhou ao redor. Liam estava recostado numa árvore e também lhe olhava com preocupação, tinha vários cortes espalhados nos braços, a camiseta cinza estava ensanguentada, mais pálido do que o normal. Não parecia nada bem.
Quando olhou com mais atenção, percebeu que a batalha havia terminado. Não havia mais criaturas demoníacas, nem querubins lutando com espadas, nem os barulhos estridentes e irritantes da batalha. Ainda havia alguns querubins espalhados entre as árvores, mas nada de batalha. Arregalou os olhos, só então percebeu que Azazel estava de pé praticamente ao seu lado.
— O que aconteceu? — perguntou, e a loira se abaixou enquanto lhe olhava atentamente. Azazel não parecia ter qualquer problema em olhar diretamente para as pessoas como se conseguisse ler a alma delas.
— Seus filhos — respondeu a loira, enquanto Arthur lhe ajudava a se sentar, lhe colocando recostada numa árvore grossa. Tudo ardeu. Suas costas, os cortes, o cansaço que lhe atingira. — Seus filhos aconteceram — completou Azazel. Sara franziu as sobrancelhas, preocupada.
Sentiu um gosto amargo quando pensou em Bethany. Noah estava seguro com Aislinn, mas Bethany...
— O quê? — perguntou nervosamente, imaginando o que eles tinham a ver com isso. Azazel balançou os cabelos loiros. Ela tinha grandes cortes por todo o corpo, as roupas estavam sujas.
— Preciso resolver isso primeiro. — Azazel apontou para as roupas rasgadas de Sara, para o corte escuro que se abria em sua pele. Ardia e ardia, mas tentava não pensar na dor.
Azazel passou a mão por baixo de sua blusa e colocou-a gentilmente em cima do corte nas costelas, tocando sem querer a borda de seu sutiã. O toque dela era frio e elétrico, Sara sentiu o mundo girar e focou no rosto de Azazel. Ela tinha traços fortes e bem definidos, os lábios estavam um tanto endurecidos de tensão, mas tinham um contorno avermelhado e chamativo. Azazel tinha uma beleza gélida impossível de não se reparar.
Estremeceu com o toque dela, com a energia lhe curando e deslizando por sua pele. Não estava certa se o formigamento que sentia era por causa dos poderes dela ou totalmente espontâneo, mas gostava daquela sensação.
Quando os olhos se encontraram, percebeu que estavam com o rosto absurdamente próximos.
Ela deslizou as mãos lentamente até o corte em suas costas, desta vez, de fato, colocando a mão por trás da faixa do sutiã. Ela não parecia incomodada com isso. Sara já se sentia mais lúcida e forte, apreciou a sensação de estar se recuperando lentamente.
Mais uma troca de olhares intensos, Azazel se afastou quando Sara já se sentia totalmente bem. Revirou-se entre as folhas, encarando-a com atenção, tentando ler a expressão enigmática da loira.
— Por quê? — perguntou roucamente. Por que me ajudou? Por que me curou?
Azazel sorriu de uma maneira ilegível, seus olhos estavam profundos e eram capazes de desvendar cada pensamento seu. Ela deu de ombros.
— Porque eu quis.
« ♡ »
A igreja abandonada estava tão bizarra e decadente quanto se lembrava.
Bethany sentiu o estômago revirar enquanto se aproximava, tentando manter a calma, se preparar para o que encontraria. Os treinos com Verônica pipocavam na mente, segurava a própria espada com firmeza e tentava se convencer de que estava preparada. Ajeitou a mochila nas costas antes de continuar.
Havia deixado o carro da mãe estacionado num lugar longínquo, não queria que os faróis denunciassem sua chegada — o que ajudava em pouca coisa, porque tinha certeza de que Mamon daria um jeito de lhe rastrear. Se estivesse certa, encontraria Amara ali e ela teria um plano.
Sentia-se cansada e nervosa depois de uma noite inteira pesquisando, vagando com o carro pela cidade porque não queria ser encontrada pelos pais. Havia desligado o celular algumas horas atrás, mas podia imaginar as milhares de ligações e mensagens perdidas. Queria ligar e dizer que estava tudo bem, porque aquilo lhe deixava mal, mas respirou fundo e seguiu em frente.
O gramado estava alto e fazia cócegas nos tornozelos, Bethany tentou ser silenciosa, mas as escadas de madeira apodrecida rangeram alto quando começou a subir para a varanda que decorava a entrada da igreja. O eclipse começou quando estava no terceiro degrau, o céu estava parcialmente escuro quando empurrou as duas portas de madeira velha e elas se abriram com um rangido longo e baixo.
A igreja estava iluminada por dezenas de velas brancas, sombras brincavam nas paredes e deixavam pontos de escuridão, porque o sol não adentrava o lugar. Amara e Mamon estavam no fundo do salão, perto do altar. Era tarde demais para recuar agora. Aquilo fez com que seus músculos doessem para se virar e sair correndo, mas continuou firme.
Por que ele estava ali?
Assim que pisou dentro do salão, eles lhe viram, porque a igreja não era tão grande assim. Amara sorriu abertamente, Bethany sentiu a fúria percorrendo as próprias veias. Será que havia se enganado sobre ela? Fora burrice vir até ali sozinha?
Os dois lhe encararam de uma forma lenta e interessada, Mamon desceu o olhar para a espada em sua mão e riu. Aquilo lhe fez ferver de ódio.
Bethany deu mais um passo para frente, dois vultos muito rápidos saíram da escuridão e lhe empurraram contra a parede. Seguraram seus dois braços com tanta força que ficou imobilizada, a espada caiu no chão com um estrondo metálico que se espalhou como uma onda pela igreja silenciosa.
A mochila apertou-se entre suas costas e a parede de uma maneira desconfortável, as velas que estavam lá dentro chacoalharam junto com os cristais que machucavam a pele.
Amara sorriu de uma forma falsamente afetada.
— Não achei que você fosse ingênua o suficiente para vir. — Ela se aproximou lentamente, Bethany tentou se desvencilhar das duas criaturas sombrias e demoníacas que lhe seguravam, mas não conseguiu nada além de machucar a próprio braço.
Estava usando jeans e uma camiseta velha de banda, mas Amara estava elegante com um vestido dourado que brilhava como o sol na luz das velas.
— Você... — Bethany começou a falar, mas não conseguiu continuar. Os olhos arderam com lágrimas doloridas. Sentia-se traída. Não era possível que tivesse se enganado tanto sobre ela, que tivesse lido os sinais errados...
Mamon parecia impaciente, ele levantou uma espada e começou a caminhar na direção de Bethany, pronto para acabar com tudo num golpe só. Sentiu o coração disparando e se debateu mais, recorreu aos próprios poderes.
— Vamos acabar logo com isso, tenho mais a fazer e a menina é um risco — disse Mamon, enquanto Bethany tentava desesperadamente se libertar. Tentava fazer a pele pulsar com poder, canalizava tudo o que tinha, como Verônica havia ensinado, mas não funcionava.
Bethany baixou o olhar e viu o pentagrama brilhar. Por que não estava funcionando? Aquelas criaturas demoníacas não deveriam ser capazes de lhe tocar.
Mamon tomou a frente e, com a espada numa mão, ficou a poucos centímetros de Bethany. Ele levantou a mão livre e apertou suas bochechas de um modo bruto e descuidado, Bethany queria cuspir no rosto dele ou chutá-lo no meio das pernas, exatamente como fizera com Thomas.
Mamon riu, os olhos pousados sobre os seus.
— Como é que uma coisinha tão insegura e desesperada como você consegue fazer coisas tão grandes? — zombou ele, e Bethany não respondeu. Estava tão enfurecida com Amara, enfurecida porque havia algo errado com seus poderes, enfurecida com tanta coisa.
— Há algo que você precisa saber antes de matá-la — falou Amara, muito calmamente e contornada pela luz fraca das velas. Mamon se virou com um ar impaciente, Bethany sentiu as bochechas queimarem onde a mão dele havia encostado.
— O quê? — Ele baixou a espada por um momento quando se voltou para Amara, de costas para Bethany. Viu quando ela passou os braços tatuados ao redor dele, puxando-o com cuidado para si, aproximando-se como se fosse beijá-lo. Amara se inclinou até que os lábios ficassem bem próximos do pescoço de Mamon.
— Você começou esta guerra — sussurrou perto do ouvido dele —, mas eu vou terminá-la. — Então houve um movimento brusco e um som esquisito. Mamon não se mexeu, a igreja escureceu completamente no auge do eclipse.
Bethany piscou para conseguir enxergar quando algo iluminou a escuridão, então arregalou os olhos. Amara havia enfiado a mão no peito de Mamon, literalmente enfiado, o braço dela havia transpassado o corpo dele como se Mamon fosse um fantasma. Lentamente, Amara foi puxando a mão e levando algo luminoso entre os dedos.
Mamon não teve reação, Bethany daria tudo para ver sua expressão congelada naquele momento. Quando Amara se afastou dele, tinha na mão uma bola incandescente de luz, chamas frias que formavam uma esfera perfeita e flutuante. Os poderes dele, percebeu Bethany.
Ofegou quando Mamon desfez-se em um vendaval de fumaça escura e alguns poucos fios de luz, sumindo na escuridão como se nunca tivesse sido sólido. Bethany ficou olhando para a escuridão de uma maneira perplexa, as velas bruxulearam e quase se apagaram, mas voltaram a se firmar quando todo o resquício de Mamon se foi. Amara continuava segurando a bola de poder em uma mão, Bethany levantou o olhar para ela. Amara tinha uma postura endurecida e muito séria.
— Soltem-na. — A ordem foi dita com muita clareza, as duas criaturas que lhe seguravam contra a parede se afastaram. Bethany deixou lágrimas de alívio escorrerem e soltou o ar preso, depois olhou para os machucados nos braços, onde as criaturas demoníacas haviam apertado.
Amara foi até a porta e esfregou com a sandália alguns símbolos desenhados, desfigurando-os. Eram tão pequenos e escuros que só os percebeu quando ela pisou neles. Bethany não queria pensar que tipo de tinta era aquela, porque provavelmente era sangue, mas percebeu que era aquilo que bloqueava seus poderes.
Sem os símbolos, estava livre. O pentagrama voltava a funcionar.
— Rápido, faça o ritual — pediu Amara, e Bethany não fez mais perguntas, saiu correndo e foi até o altar. Amara lhe ajudou a empurrar a mesa e arrumar tudo, espalhando as velas e cristais enquanto Bethany fazia o círculo de sal.
Pulou para o meio do círculo assim que ficou pronto, acendeu as velas com um gesto rápido de mãos e então se ajoelhou na madeira envelhecida. Tentou não olhar as manchas de sangue na parede, sangue de Aislinn, seu próprio sangue. Sentiu a cicatriz na perna pulsar levemente.
As palavras em latim vieram facilmente, suas veias estavam em chamas. Pulsava tão forte e profundamente que foi fácil se deixar levar — quando as chamas apareceram, flutuando em sua pele, crepitando em azul e laranja, as palavras saíam de sua boca como uma enxurrada.
As chamas formigavam e faziam a pele vibrar, o peito ardendo enquanto o poder se expandia. A coluna de fogo se expandiu e expandiu, mais do que podia controlar, mas do que tinha poder para aguentar — aquilo era estranho, parecia que havia outra pessoa lhe ajudando a ampliar o ritual, mas essa pessoa não era Amara.
Bethany apertou os lábios, sentiu o crepitar das chamas, as correntes de fogo, e tentou prestar atenção. Não havia nenhuma energia invasiva, nenhuma energia diferente da sua. Era exatamente a mesma mistura, os mesmos poderes. Noah.
Bethany abriu os olhos, ofegante e preocupada. As velas já haviam derretido completamente, as chamas se recolhiam aos poucos, dançando pelo ar uma última vez, escorrendo por sua pele e voltando ao chão.
Por fim, as paredes de fogo que constituíam o círculo se apagaram. Amara continuava do outro lado, preocupada, iluminada pela esfera de poder que retirara de Mamon. Olhou para a bola de chamas em suas mãos e jogou-a com força no chão, ela se espalhou e fez a madeira tremer, então desapareceu na terra, voltando para suas origens.
Amara lhe estendeu a mão vazia.
— Vamos, precisamos sair daqui — disse ela, e Bethany não discordou.
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