Os símbolos | Capítulo Onze
Bethany havia acabado de sair do carro quando o celular tocou, estava subindo os degraus de madeira suja quando atendeu a chamada. O sol estava se pondo, sombras bizarras se projetavam sobre a construção abandonada.
— Volte. Agora — disse seu pai, antes que pudesse falar qualquer coisa. A menina franziu as sobrancelhas, pisando no primeiro degrau e percebendo que as portas estavam abertas.
— Acabei de chegar, só preciso de alguns minutos — falou, subindo a pequena varanda e conseguindo uma visão melhor do salão da igreja. — Não há ninguém aqui — disse, observando o interior da construção. Estava escuro por causa do crepúsculo, um ar vazio e empoeirado tomava o lugar abandonado, completamente assustador.
— Saia daí imediatamente, Lilith... — O áudio falhou, desfazendo-se em uma interferência que cortou o resto da frase. Bethany ofegou, paralisada. Os dedos tremiam enquanto segurava o celular.
— Pai? O que está acontecendo? — perguntou, a garganta trancada. A interferência continuava chiando alto, não ouviu a voz dele. — Pai? — chamou-o, engolindo a seco. Quando ele não respondeu, sentiu a respiração ficar mais pesada, finalmente permitindo-se desesperar. — Pai? Está tudo bem? — insistiu, aflita. Mais silêncio do outro lado da linha e, quando afastou o celular do rosto, percebeu que ele estava desligado.
Bethany não esperou, apenas virou-se para voltar ao carro e sair dali, exatamente como ele havia dito. Não conseguiu passar dos degraus, congelou pouco depois.
Do gramado que circulava a igreja, uma silhueta feminina lhe encarava. A mulher sorria, os pés descalços enquanto avançava lentamente em sua direção. Bethany vacilou, entorpecida por sua presença, os pensamentos girando.
Ela parecia bem, estava sorrindo daquela maneira iluminada, da mesma maneira que fazia antes de lhe abraçar. Por um segundo, apenas por um segundo, foi tão bom vê-la acordada novamente, de pé como se nada tivesse acontecido.
— Mãe? — E então o leve pulsar frio no pentagrama que tinha no pescoço lhe fez sair daquele torpor.
— Querida — respondeu ela, em um tom que definitivamente não era o de sua mãe. Bethany engoliu a seco e deu um passo para trás, olhando para o carro. Estava longe demais, não conseguiria chegar até ele e despistá-la.
Precisava de outro plano.
Sem medir as consequências, Bethany se virou e saiu correndo para dentro da igreja, as portas se bateram com força atrás de si. Correu entre os bancos, observando os símbolos que estampavam as paredes de madeira.
Tudo vinha dali. Os poderes de Lilith, a conexão que a mantinha nessa dimensão. Se ela estava tirando os poderes dos sacrifícios, destruir aquilo deveria bastar para mandá-la de volta.
O trinco girou com violência, Bethany engasgou-se. Havia selado o trinco com seus poderes, mas não duraria muito, precisava ser rápida. Recostou-se no outro extremo da igreja, esperando que aquilo lhe desse mais tempo. Seu pai e Aislinn provavelmente estavam a caminho, tempo era tudo o que precisava.
Fechou os olhos e inspirou fundo.
Verônica havia lhe ensinado como canalizar seus poderes, manipular aquela energia como se fosse um líquido, então só precisava acessar os símbolos. Depois de algum tempo ali, tentando ignorar o barulho na porta, finalmente conseguiu sentir os símbolos ao seu redor e estabelecer uma conexão estável.
Ainda em pé atrás do altar, Bethany fechou as mãos em um punho.
Imaginou linhas finas saindo de seus pulsos e se estendendo até os símbolos, quase como teias de aranha. Imaginou aquela energia passando pelos fios até chegar ao seu corpo, descendo para os pés e depois se espalhando para a terra, como lembrava-se de lido em um ritual de purificação.
Era só que precisava fazer. Sugar a energia, devolvê-la à terra. Podia sentir o frio em suas veias, os pulsos formigando como se água fria fosse injetada ali.
Estava fazendo um bom trabalho quando as portas se abriram com um rangido alto, Bethany ofegou, mas tentou manter-se parada e concentrada. Lilith estava na entrada, ainda usando o uniforme branco do hospital.
Mesmo assim, ela parecia extremamente gloriosa com seus cabelos negros esvoaçantes, o tecido fino tremulando ao redor de seu corpo e a pele iluminada pela palidez anormal.
Bethany não parou, nem mesmo quando ela se aproximou. Não havia reparado antes, mas Lilith tinha algo brilhante e metálico na mão. A menina sentiu um gosto amargo na boca ao perceber que ela carregava uma arma pequena, o dedo pousado sobre o gatilho.
O amuleto de pentagrama podia lhe proteger dos poderes dela, mas não da arma. Continuou sugando toda a energia dos símbolos, focada. Mais alguns segundos, só precisava mais alguns segundos.
Lilith sorriu, ainda fingindo aquela expressão maternal, tão parecida com a de Sara. Ela levantou a arma, Bethany sentiu a garganta ficar seca.
A garota se moveu rapidamente, esticando a mão para frente e tentando fazer com que a arma voasse em sua direção. Havia praticado telecinesia, era relativamente boa nisso, mas não foi rápida o bastante, Lilith puxou o gatilho antes disso.
O barulho explodiu e ecoou pela igreja, Bethany não soube se gritou com o disparo, ou quando a dor lancinante espalhou-se por sua perna. Caiu para trás e bateu violentamente contra a parede, desabando contra o chão quando sua mente zumbiu com o barulho e com a dor.
Tudo latejava, a visão escureceu por alguns momentos antes de entrar em foco. Seus sentidos falhavam, mal conseguia enxergar e ouvir o que estava acontecendo ao redor.
— Desculpe, docinho. Seu colar não me deu muita escolha — disse uma voz, e demorou alguns segundos para reconhecer o tom de Lilith na voz de sua mãe.
Bethany ofegou, os olhos lacrimejando enquanto se arrastava e se apoiava sentada contra a parede. Sua perna doía como o inferno, sangue quente começou a escorrer por sua calça e manchar a madeira já suja.
Tentou focar. Não respondeu à provocação de Lilith, apenas esticou os braços para o lado.
A parede de madeira estava toda marcada com os símbolos pintados com sangue, tocou-os com a ponta dos dedos trêmulos. Tudo o que sua mente conseguia pensar era na dor, mas tentou focar-se em reatar o elo com os símbolos.
Sentiu a ponta dos dedos na madeira áspera, uma corrente fria deslizar dos símbolos e adentrar seu corpo. A dor se aliviou levemente, suficiente para que conseguisse focar seus pensamentos. Deixou a energia vazar por seu corpo e voltar ao solo, lhe fortalecendo no processo.
— Vai ser preciso mais do que um tiro na perna para te parar, não é? — ecoou Lilith, com um tom mais seco e impaciente. Bethany abriu os olhos, observando enquanto ela apontava o revólver, desta vez não para a perna, mas para sua cabeça.
Bethany sentiu-se zonza, sem conseguir impedir as lágrimas. Aquilo era tão surreal, estranho como um pesadelo sombrio, mas um tiro não doeria tanto se estivesse sonhando. Tinha certeza de que não acordaria na própria cama.
A dor parecia lhe deixar dopada, trazendo uma sensação esquisita de irrealidade.
Esticou uma das mãos para frente e a outra ficou colada no símbolo, forçando os dedos na madeira. Sentiu uma onda de poder lhe energizando e a arma voou da mão de Lilith com violência, sem que ela pudesse impedir. Bethany pegou a arma no ar, envolvendo-a nos dedos e estudando-a por alguns segundos, se familiarizando com o dispositivo de disparo. O ar fugiu dos seus pulmões quando percebeu o que estava fazendo.
Havia esticado o braço, apontando a arma automática para Lilith, para sua mãe.
— Você não faria — sorriu ela, desta vez de uma forma mais demoníaca e nada parecida com sua mãe. Era estranho o quanto as duas era tão iguais e tão diferentes.
— Faria, se necessário — afirmou sem hesitar, engasgando-se com o gosto de bile na garganta. Não precisava falar a verdade, só soar confiante o bastante para comprar algum tempo. — Nunca me perdoaria, mas faria — completou a menina, observando as portas abertas com um ar aflito. Onde estava Aislinn? Onde estava seu pai?
A igreja estava assustadoramente vazia, os últimos raios de sol do dia se desfaziam por trás das grandes janelas. O lugar cheirava a poeira, sangue e umidade, a arma pesou em sua mão suada e melecada de sangue.
Lilith deu um passo para frente, Bethany levantou a arma com as duas mãos e disparou. O tiro alcançou uma lâmpada queimada, o vidro estourou e o disparo foi alto o suficiente para fazer Lilith parar por um momento. Ficou satisfeita com o olhar surpreso no rosto dela.
— Fique longe de mim! — gritou Bethany, a voz ecoando pela igreja enquanto cacos de vidro choviam pelo salão, cintilando. O grito exigiu um esforço que fez sua perna inteira arder, então gemeu baixinho, zonza com a dor.
Apertou a mão contra a madeira, mantendo a arma levantada e apontada para Lilith. O braço ardia e tremia com o peso, mas estava decidida a suportá-lo.
Nunca havia atirado antes, mas houve uma época em que estava viciada em seriados policiais, então chegou a ver alguns documentários sobre armas. Para sua sorte, a arma que segurava era um modelo muito comum, então estava familiarizada com seu funcionamento. Era irônico pensar que isso provavelmente estava salvando sua vida no presente.
Antes que Lilith pudesse agir novamente, o farol de um carro iluminou o interior da igreja com uma luz amarelada. Bethany sentiu lágrimas de alívio escorrendo, a arma tremendo em sua mão, por mais que tentasse se manter firme.
Lilith se virou bem no momento que Aislinn surgiu no centro das portas duplas, a silhueta iluminada pelo farol. Ela levantou uma mão, mantendo a postura rígida.
— Volte para o inferno — murmurou, e Lilith voou para trás como se puxada por algo invisível, jogada no ar com facilidade. Bethany a perdeu de vista quando caiu no meio dos bancos de madeira, Aislinn corria em sua direção.
Bethany deixou o braço com a arma cair, cansada e dolorida demais para se surpreender com os poderes de Aislinn. Desde quando ela podia fazer aquilo?
— Ah, merda — murmurou Aislinn, quando caiu de joelhos em sua frente e notou que Bethany estava sentada em uma poça do próprio sangue.
— Onde está meu pai? — perguntou, as palavras um tanto trêmulas.
— Foi encontrar Rafael, os dois já estão vindo — disse, e Bethany viu Lilith se levantando entre os bancos, sua silhueta se transformando em um vulto escuro.
— Aislinn... — sussurrou, tentando alertá-la. Aislinn se virou rapidamente para trás, também aflita.
— Termine o que está fazendo. Confie em mim, você vai ficar bem — pediu, e então se virou.
Bethany tateou a parede até a sensação fria voltar à ponta dos dedos, até sentir a energia dos símbolos passando por seus pulsos. Observou Aislinn correr para o centro da igreja, se aproximando de Lilith. Ela estava murmurando em latim agora, um vento frio circulava no salão da igreja.
A menina baixou o olhar para a própria perna e se sentiu nauseada. Nunca havia visto tanto sangue, o líquido escuro simplesmente jorrava e jorrava da ferida, mas estava tão cansada que não conseguiu se desesperar.
Tentou absorver mais da energia dos símbolos, mas era como tomar um gole de água grande demais: Bethany ofegou quando a cabeça pulsou, sem ar.
Observou Aislinn, que agora estava cercada por uma névoa escura pela qual Lilith tentava atravessar. Lilith finalmente colocou as mãos em Aislinn, jogando-a para trás, mas surpreendeu-se quando Aislinn puxou-a junto e as duas bateram com força contra uma das paredes de madeira.
Aislinn se levantou rapidamente, Lilith apenas se afastou e, ainda do chão, ergueu o braço com um olhar furioso. Aislinn foi jogada contra a parede e ficou presa lá, suspensa no ar enquanto Lilith se levantava.
Mesmo presa alguns centímetros acima do piso de madeira, Aislinn continuou recitando as palavras em um tom feroz, a voz ecoando pela igreja. Lilith havia se levantado com rapidez, determinada a calá-la.
Bethany apertou os dedos contra a parede, esfolando-os na madeira áspera quando tentou acabar com os símbolos. Agora eles brilhavam, percebeu. Iluminavam a igreja de forma sutil e fluorescente, embora a escuridão ainda cercasse Lilith e Aislinn.
Bethany inspirou fundo, tentando acelerar o processo. Lilith puxou uma das cruzes fixadas na parede, arrancando-a com uma força surpreendente, depois quebrou-a ao meio com um barulho alto. Uma onda de pânico lhe atingiu ao perceber que ela estava segurando duas estacas de madeira com pontas afiadas. Aislinn continuava suspensa contra a parede, mas com o olhar firme e determinado, cercada pela escuridão fria que escorria ao seu redor como neblina.
Mais uma vez, Bethany ofegou e tentou absorver o máximo de energia que podia, mas não foi o suficiente. Queria correr até Aislinn, ajudá-la, mas não conseguiria com uma bala enfiada em sua perna, não podia se arrastar até o outro lado da igreja.
Tentou telecinesia, mas Lilith estava longe demais e não conseguia alcançar as estacas. Os olhos de Aislinn estavam completamente negros, alheios ao que estava acontecendo como se fosse uma espécie de transe.
Torceu para que ela tivesse um plano quando Lilith se aproximou, segurando a madeira afiada. Bethany podia sentir a escuridão rodeando Aislinn assim como podia sentir o poder demoníaco em suas veias, toda aquela onda de escuridão atingiu Lilith como uma pancada quando ela se aproximou.
Bethany não permitiu-se sentir aliviada, mas deu um sorrisinho fraco. Lilith gritou, isso foi bem no momento em que Rafael e seu pai entraram, ambos se voltando para o pequeno duelo perto da entrada. Rafael correu imediatamente, seu pai moveu o olhar até lhe encontrar, ainda caída do outro lado da igreja.
A voz de Aislinn ainda se sobressaía, mas parou de súbito em um som engasgado. Rafael havia chegado até Lilith, a puxando para longe de Aislinn. Seu pai já estava correndo para lá também, segurando-a pelos braços e a contendo. Bethany arregalou os olhos, abafando um grito.
A madeira quebrada estava enfiada em Aislinn, rasgando sua blusa acima do abdômen. Entretanto, ela não parecia perceber com seus olhos negros e a expressão indiferente, sem se dar conta da madeira atravessando seu corpo. Seus pés encostaram o chão e ela caminhou lentamente em direção a Lilith, ainda murmurando em latim, mesmo quando sangue escorreu por seus lábios e nariz, deixando um rastro escuro em sua pele clara.
Lilith gritou mais uma vez, um grito de pura agonia que ecoou pela igreja vazia. Aislinn desabou no mesmo momento que Bethany sentiu o poder dos símbolos cessarem, finalmente cedendo. Havia acabado, percebeu. Os símbolos haviam se apagado e não havia mais poder para se tirar deles.
Aislinn caiu nos braços de Rafael ao mesmo tempo que Lilith desabava nos braços de Liam.
Uma vertigem súbita lhe atingiu, Bethany deixou-se escorar completamente contra a parede, exausta. Manchas escuras dificultavam sua visão, talvez por causa de todo o sangue perdido, mas viu seu pai correndo em sua direção, depois de deitar Sara cuidadosamente em um dos bancos de madeira.
Finalmente a fraqueza e a dor lhe atingiram mais uma vez, sem energia alguma para aliviar os efeitos do tiro. Não conseguia pensar direito quando o loiro ajoelhou-se ao seu lado, tirando a arma de suas mãos e avaliando o ferimento.
Havia ainda mais sangue do que tinha percebido, manchando toda sua calça e sua blusa, deixando tudo grudento e escuro. Seu pai lhe perguntava alguma coisa, mas parecia distante e confuso.
— Aislinn... — balbuciou, sem saber se sua visão estava borrada por causa do cansaço ou das lágrimas. — Aislinn vai ficar bem? — Não chegou a compreender a resposta dele, a próxima coisa que percebeu é que seu pai lhe envolvia nos braços enquanto lhe levava para fora da igreja de maneira apressada. Soluçou baixinho por causa da dor, mordendo os lábios para conter um grito quando ele desceu os degraus, lhe segurando com cuidado.
Bethany fechou os olhos quando um clarão repentino fez sua cabeça latejar, adentrando um ambiente diferente do gramado que cercava a igreja. Tentou abrir os olhos, perguntar o que estava acontecendo, mas seus lábios não se moveram e suas pálpebras pesaram demais, não conseguiu abri-las.
— Pai? O que houve? — A voz de Noah foi a última coisa que ouviu antes de cair em um mar escuro de inconsciência.
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