Eu Estava Esperando Por Você | Capítulo Trinta E Dois
Noah acordou com um travesseiro lhe atingindo no rosto, despertou o suficiente entre os golpes para ouvir a voz e a risada de Bethany, lhe mandando acordar.
— O que você está fazendo? — O loiro fez uma careta, puxando a coberta para cima e se protegendo dos ataques.
— Vingança de aniversário. — A voz dela saiu abafada por causa da coberta.
— Está arruinando meu dia — retrucou o menino, fazendo uma careta enquanto tentava afastá-la. Sentiu mais um golpe de travesseiro.
— Quanto drama! Eu poderia te acordar às duas da manhã, como você fez, mas esperei o dia amanhecer. — Bethany tentou puxar a coberta, mas Noah segurou firme. Se passaram alguns segundos de silêncio, achou que ela tivesse desistido, mas então a ouviu falar. — Ei, você precisa ver isso. É sério.
— Não confio em você — respondeu Noah, ainda se protegendo com a coberta e a cabeça embaixo de uma almofada.
— Eu parei de ser babaca, juro. — Mais silêncio. Esperou um tempo antes de empurrar a coberta pra baixo, desconfiado de que era uma armadilha.
Piscou para se acostumar com a luz, o travesseiro lhe atingiu na face segundos depois.
— Achei que tivesse parado de ser babaca — reclamou ele, agarrando o travesseiro e o tomando dela, evitando outro ataque. Bethany deu de ombros, mas ainda estava sorrindo levemente. Seus olhos tinham um pouquinho mais de cor.
Dois dias depois do primeiro treinamento com Verônica, ela parecia ter recuperado um pouco da própria energia, Noah quase conseguia ter um vislumbre de quem Bethany era antes de toda a confusão sobrenatural e da morte de Ally. Era algo sutil, mas um alívio perceber a mudança.
— Eu estava falando a verdade. — A menina apontou para a escrivaninha, Noah demorou um pouco para perceber um envelope e uma caixinha pequena de veludo preto em cima dela.
Hesitou um pouco antes de levantar, mas já sabia do que se tratava. Bethany também.
— Prefere que eu saia? — perguntou ela, quando Noah voltou para a cama com o envelope e a pequena caixinha em mãos. Deixou-se cair sobre o travesseiro, considerando a resposta enquanto olhava para o cartão.
— Não, na verdade. Prefiro não ler isso sozinho — admitiu, fazendo um sinal para que ela se sentasse na cama também. Segundos depois, estavam sentados lado a lado e Noah abria a carta cuidadosamente.
Os dois se inclinaram sobre o cartão, observando a letra arredondada e cuidadosa de Sara.
Meu amor,
Feliz aniversário! Sinto sua falta, também sinto falta de te ouvir tocar.
Desde criança, você nunca gostou do silêncio. Enquanto Beth preferia ficar quieta, lendo e pintando, você sempre foi muito agitado e seus brinquedos favoritos eram instrumentos musicais. Você tinha um violão pequenininho que carregava para todo lugar, depois veio um teclado de brinquedo e a bateria foi paixão à primeira vista.
Eu sabia que você estava por perto quando havia música, quando ouvia passinhos correndo e logo depois o violão ou teclado. Você sempre foi essa pessoa musical e cheia de energia, Noah. Consegue revigorar qualquer um, espantar qualquer pensamento ruim.
Espero que esteja aproveitando muito seu aniversário, que continue tocando da maneira linda como sempre fez. Este anel vai te proteger, espero que goste. Ele me lembra de você.
Eu te amo muito, muito. Espero que possamos nos ver logo.
Noah ficou em silêncio quando terminou de ler, as palavras e a voz da mãe girando em sussurros suaves. Por um momento, deixou que os olhos se perdessem nas frases, absorvendo-as para si.
— Isso foi... — Bethany mordeu o próprio lábio, os olhos baixos no texto. Era um cartão branco e simples, as palavras pareciam escapar pelo ar de maneira suave.
Noah sentiu os olhos úmidos, as lágrimas transbordando.
— Eu sei — concordou, limpando as bochechas molhadas e o canto dos olhos. Noah inclinou-se para pegar a caixinha de veludo, abrindo-a em seguida.
Era um anel fino e discreto, de um dourado bonito e reluzente. Havia duas listras escuras na borda, como se o material dourado fosse o sol se mesclando com as bordas negras da noite, que destacavam ainda mais sua luz.
— É turmalina negra. — Bethany sorriu ao observar as bordas feitas de pedra. — É um cristal de proteção.
Quando tirou o anel da caixa, Noah reparou que havia algo gravado na parte interna e aproximou-o dos olhos para conseguir ver. Eram linhas finas e notas musicais, tudo muito delicado e bem desenhado.
Não conseguiu conter um sorriso. Bethany se aproximou para ver também, curiosa.
— É a partitura de Sweet Child O' Mine — falou Noah, rindo levemente.
Minha doce criança, meu doce amor. Ela costumava cantar essa música para que conseguisse dormir, quando não queria ficar sozinho e tinha menos de dez anos. Já a tocara tantas vezes na bateria que havia decorado a notação.
Sem querer perder tempo, colocou o anel no dedo e o observou cintilar sobre a luz. Sentiu um leve calafrio vindo da joia, a energia dela lhe envolvendo e protegendo.
— É bonito — disse Bethany, levando a mão até o pescoço como se estivesse em busca do próprio pentagrama. Parecendo se lembrar repentinamente de sua ausência, ela deixou a mão cair sobre o colo.
— Você ainda usa o tarô? Acha que pode perguntar se ela... — Noah deixou a frase no ar, mas ambos sabiam o final. Se Sara voltaria. Se Sara acordaria.
Bethany deu de ombros.
— Faz muito tempo que não uso, muito tempo que parei com quase tudo do paganismo, na verdade. — Ela suspirou e desviou o olhar, distante. Noah nunca mais havia a visto com as cartas, nem sentido o cheiro dos incensos que ela costumava acender todos os dias. — Até poderia perguntar, mas não sei se terei uma resposta, nem se gostarei dela — admitiu. O loiro apenas assentiu, girando o anel no próprio dedo. — Feliz aniversário — falou Bethany, por fim. Ela sorriu e piscou, então lhe deixou sozinho.
Noah ouviu o celular vibrar do outro lado do quarto e se levantou para ir até lá. Ajeitou a regata larga que usava e pegou o aparelho, sorrindo ao ver as notificações. Onze novas mensagens de Nicholas, empolgado para comemorar seu aniversário.
« ♡ »
O aniversário de Noah passou, o resto da semana correu de forma monótona entre o trabalho na biblioteca, a escola e os treinos com Verônica. Bethany tentava focar em outras coisas, mas não conseguia parar de pensar em Sara.
Sentia sua falta em tudo, queria poder pedir conselhos, falar sobre Thomas e tudo o que estava acontecendo. Ela havia perdido seu aniversário e o de Noah, faltava pouco para o fim das aulas e um pouquinho mais para a formatura. Não sabia se conseguiria ir sem ela.
Buscando desviar os pensamentos para outro lugar, Bethany focou-se nos próprios poderes e na dimensão angelical. Treinava todos os dias, rigorosamente. Mesmo se estivesse exausta, mesmo se não quisesse.
Forçava-se a treinar porque sentia a respiração acelerar todas as vezes que se lembrava dos comprimidos e da vodca, da certeza de que morreria por causa de Thomas. O treinamento era uma forma de dizer a si mesma que bastava de terror, não daria esse poder a ele.
Amara, seus tios e Liam pareciam uma teia de proteção invisível ao seu redor, sempre exigindo que os mantivesse informados. A parte boa disso é que tinha o celular de volta, já que seu pai havia decidido que precisava ter alguma forma de contato emergencial, então mantinha o aparelho sempre por perto.
Naquele dia, chegou em casa depois de quase duas horas de prática com Verônica. Percebeu que estava sozinha, seu pai já havia saído para o turno da noite no hospital, e Noah ainda não chegara, havia saído para comprar novas baquetas e cordas para o violão de Nicholas.
Mandou uma mensagem para Noah ao subir as escadas, porque as novas regras de sobrevivência diziam que não deveria ficar sozinha. Bethany não reclamou disso, porque também não queria ficar sozinha — o outro lado bom disso é que Liam lhe devolvera as chaves do carro de Sara para que pudesse ir até a casa dos tios, ou sair de casa para um lugar seguro.
Se passaram quinze minutos até o celular vibrar com uma resposta, Bethany estava quase considerando ir para a casa de Rafael e Naomi. O silêncio estava começando a lhe assustar, a mensagem de Noah só piorou as coisas.
Estamos na edícula do cemitério.
Aquilo lhe fez franzir as sobrancelhas. Cemitérios e lugares abandonados também estavam expressamente proibidos pelo que Ash começara a chamar de Manual de Sobrevivência Sobrenatural. Ela sempre tinha nomes para tudo.
Em vez de responder, resolveu ligar, já que ele estava online no aplicativo. Ouviu o toque monótono da chamada, bateu os dedos de forma impaciente quando se prolongou. Por que ele não atendia?
A ligação caiu na caixa postal, mandou três mensagens seguidas e esperou alguns minutos, mas sem resposta. Resolveu ligar para Nicholas, preocupada e criando mil hipóteses terríveis.
— Beth? — Bethany soltou o ar preso quando Nicholas respondeu.
— Você está com Noah? — perguntou, girando as chaves do carro em seus dedos. Atravessou a sala com passos rápidos, ansiosa para sair de casa e batendo a porta quando saiu para a varanda.
— Sim, estamos saindo da loja de instrumentos agora — disse Nicholas, enquanto Bethany tentava trancar a porta com suas mãos trêmulas.
— Noah está com o celular? — A respiração estava acelerada, obrigou-se a controlá-la e engolir o próprio medo. Não deixaria que Thomas controlasse suas emoções, que engatilhasse algo tão forte em si.
— Acabou a bateria, mas estou o levando para casa agora — respondeu o garoto, do outro lado da linha. Bethany trancou a porta e pulou os dois degraus da varanda, praticamente correndo até o carro.
— Não, não venham para cá — alertou, ouvindo o som do veículo ao destrancá-lo com o controle. Abriu a porta, olhando uma última vez para a rua. Estava escuro e deserto, uma última faixa de sol poente resistia no horizonte, pintada de laranja escuro. — Noah acabou de me mandar uma mensagem dizendo que vocês estavam na edícula abandonada.
— Mas... — A voz dele foi morrendo lentamente ao se dar conta do que estava acontecendo.
— Exatamente. Estou saindo daqui agora, vou ligar para Rafael — afirmou, batendo a porta do carro de Sara. Sentiu-se mais calma no mesmo momento, porque tudo ali tinha cheiro dela. O batom vermelho no porta luvas, os óculos de sol, os livros velhos empilhados no banco de trás.
Tudo ali lhe remetia a ela, tinha a presença dela, lhe ajudando a se acalmar.
— Deveríamos ir para a edícula também? — perguntou Nicholas, preocupado. Ouviu o barulho de carro aos fundos da voz dele, provavelmente ele estava indo para a rua também.
— Não, vá para a biblioteca e avise Amara. Ligo assim que puder e dou mais informações. — Bethany não esperou resposta, desligou o celular em seguida e ligou o carro. Inspirou fundo enquanto colocava o cinto, procurando Rafael na lista de contatos.
Conectou o celular aos autofalantes do carro, assim podia dirigir enquanto o ouvia. Acelerou pelas ruas, o celular chamava e chamava, seu tio atendeu no terceiro toque, bem quando Bethany parou em um sinal vermelho.
A voz de Rafael ecoou pelo carro, a menina apertou as mãos contra o volante.
— Beth? Tudo bem?
— Não, nem tudo. — Falou sobre a mensagem de Noah e explicou sobre a edícula e o cemitério abandonado, os olhos fixos na estrada. Rafael ouviu atentamente, Bethany manteve a postura firme e os olhos atentos ao caminho que percorria com o veículo.
— Onde você está? — pediu ele, a preocupação nítida na voz tensa. A menina virou uma esquina, adentrando a parte mais escura e deserta da cidade, refazendo o trajeto até o bairro industrial e o cemitério abandonado.
— Indo para a edícula — anunciou, usando toda a firmeza que conseguiu para que Rafael soubesse que não lhe faria mudar de ideia.
— Naomi está te esperando aqui em casa, estou saindo agora. Não vá para lá, é arriscado demais, posso cuidar disso. — Bethany podia ouvir o som de uma porta batendo, provavelmente ele estava saindo de casa naquele momento. Mordeu o lábio lentamente, calculando quanto tempo até ele aparecer.
— Thomas não vai aparecer se eu não estiver lá, muito menos se você estiver comigo — argumentou, ignorando as ordens dele e acelerando o carro. Podia ver o limite do bosque, as árvores envolvidas pela escuridão da noite. — Vou ficar bem, se eu morrer depois de todo o treinamento com Verônica, ela dá um jeito de me ressuscitar para me matar pessoalmente. — Tentou fazer piada para aliviar a tensão, Rafael não riu.
— Você não sabe...
— Sim, eu sei. Sei exatamente aonde estou pisando — interrompeu-o, parando o carro em um dos estacionamentos vazios, atrás de uma fábrica fechada. — Preciso que confie em mim, eu vou primeiro, você chega logo depois e vai ficar tudo bem — insistiu. Não tinham tempo para discutir, seu tio concordou e disse que chegaria logo, pediu para ser cuidadosa até lá.
Como nunca estivera ali, ele não conseguiria usar um portal para chegar em segundos, Bethany calculou que demoraria uns vinte minutos de carro, precisaria sobreviver até lá. Com um suspiro, virou-se para o branco do passageiro para pegar o rubi, escondido entre os livros na própria bolsa, e o colocou num bolso interno do casaco.
Antes de sair, tentou ligar para Liam, mesmo sabendo que ele provavelmente não veria a chamada. Ouviu os sons de espera, mas ele não atendeu, mesmo depois de duas tentativas. Ele raramente via o celular no meio de uma consulta, então mandou uma mensagem para quando seu pai pudesse ler.
Saiu do carro e enfiou as chaves no bolso, olhando para o bosque e tentando encontrar alguma motivação. Estava tão escuro e assustador que lhe intimidava, mas se colocou de pé e acendeu a lanterna do celular, segurando-o com firmeza ao dar a volta no carro. Abriu o porta-malas e puxou uma lona preta, revelando uma espada longa e brilhante, com uma lâmina leve e fina. Pegou a espada com cuidado.
Verônica lhe dera depois de muita insistência. Ela queria lhe dar uma adaga, por ser mais fácil de esconder e mais seguro de usar, mas Bethany insistiu na espada, porque gostava de lâminas mais longas. Por fim, escolheu uma espada simples e prateada, sem muitos enfeites e nada muito esplendoroso.
Apertou a espada para atravessar o estacionamento e adentrar o bosque.
Os coturnos esmagavam as folhas secas, fazendo um crec-crec a cada passo, seu plano de ser discreta fora desfeito. Iluminou o lugar, observando as árvores inclinadas e os arbustos cheios de sombras. Continuou avançando lentamente, fazendo mais barulho a cada passo, mesmo que tentasse discrição. Precisaria pedir para Verônica se havia algum modo de ser mais silenciosa.
Não foi surpresa quando sentiu algo se movendo atrás de si, estava esperando por isso. Bethany ergueu a espada e girou, acertando uma sombra escura que vinha em sua direção, atravessando-a com sua espada. Golpes mais simples, como esse, haviam ficado mais fácil depois de tantas horas de treinamento intensivo.
Viu a silhueta demoníaca desaparecer e se fundir com a escuridão, bem no momento que outras três surgiram deslizando entre as árvores, sem fazer barulho. No meio da noite, era mais difícil discerni-las, porque eram silhuetas humanas sem qualquer luz, apenas o contorno cheio de sombras.
Bethany sentiu a garganta secar, porque nunca enfrentara três de uma só vez. Deixou o celular cair num monte de folhas secas, com a lanterna virada para cima, e segurou a espada com as duas mãos para ter firmeza. Um deles avançou, Bethany golpeou com força, mas não foi o suficiente e a criatura continuou avançado.
O demônio tinha duas adagas pretas, uma em cada mão, lhe atacando sem pausas entre os movimentos. Usou a espada para mantê-lo longe, mas foi obrigada recuar para se afastar das investidas dele, sentindo as adagas arranhando seus braços.
Ignorou os pequenos cortes, as gotículas de sangue escorrendo pelos braços, e tentou achar uma maneira de desarmá-lo. Se investisse em uma adaga, ele lhe atacaria com a outra, então precisava ser rápida para desarmar as duas.
Conteve um grito quando tropeçou numa raiz seca e caiu de bunda na terra, afastando a própria espada para não se machucar. Estava se preparando para levantar, segurando a espada em posição de defesa, quando outro vulto escuro se colocou em sua frente, colidindo com o demônio e fazendo-o desaparecer com o golpe de uma adaga prateada.
Bethany piscou e arregalou os olhos, maravilhada. Aquela criatura estava lhe defendendo, ela realmente estava lhe defendendo.
Quando se levantou, percebeu que que os outros dois demônios também haviam desaparecido, só restavam criaturas demoníacas de olhos vermelhos e brilhantes como fogo, lhe encarando e estranhamente parados.
Bethany sorriu, radiante ao perceber o que aquilo significava. Curvou-se para pegar o celular caído e então se levantou, iluminando a floresta com o flash e observando ao redor. Outras criaturas se aproximavam, e Bethany tinha a impressão de que essas não iriam lhe defender.
— Obrigada, mãe — sussurrou, mesmo sem saber se ela podia lhe ouvir. Encarou uma última vez os demônios de olhos brilhantes e saiu correndo, praticamente deslizando entre as folhas secas e erguendo nuvens de terra pela trilha.
Passou pelas árvores sem olhar para trás, apressada para chegar à edícula. Os galhos faziam um esforço para lhe engolir, sentia as folhas roçando sua pele e a escuridão lhe cercando como grandes mãos afiadas.
Finalmente saiu do bosque para o cemitério abandonado, a lua estava cheia e alta no céu, iluminando os túmulos com uma luz pálida e cinzenta. Deu um passo à frente, olhando para a edícula do outro lado do cemitério. Fez uma careta. Noah e Nicholas escolhiam lugares realmente estranhos quando queriam privacidade.
A construção estava toda escura, a edícula parecia assustadora, Bethany não tinha vontade alguma de entrar naquele lugar. Estava parada há algum tempo, considerando se deveria entrar, quando ouviu uma voz fria atrás de si.
— Não achei que viria. — Bethany se virou, tentando conter os calafrios que a voz dele provocava. Thomas estava contornado pelo escuro, a pele tão pálida que contrastava com a escuridão da floresta, mas seus cabelos negros se misturavam com a noite.
Bethany manteve-se firme, mesmo que o estômago estivesse revirado e seu corpo gritasse para correr. Ajeitou a postura, apertando os dedos em volta da espada quando o encarou.
— Eu estava esperando por você — falou, e Thomas baixou o olhar para a espada brilhante, pouco interessado quando deu um riso baixo. Ótimo, percebeu a menina, irritada. Ele estava realmente lhe subestimando.
— Estava? — indagou o menino, levantando uma sobrancelha cheia de desdém. Bethany manteve a expressão inabalável, encarando-o com seriedade. As mãos tremiam. Achava que seria fácil usar a espada nele, mas vê-lo em sua frente e fazer o ataque era completamente diferente das expectativas. Seria muito mais difícil do que esperava.
— Tenho algo que você quer. — Manteve as palavras firmes e os olhos fixos nos dele. Não havia nenhuma vida ali, pareciam tão escuros quanto a floresta, sem brilho e nenhuma expressão. Só vazio, distante. Morto. Talvez aquilo tornasse as coisas mais fáceis. — Eu troco pelo meu colar — falou, guardando o celular e pegando o rubi do bolso interno do casaco. Sem a lanterna, o cemitério ficava muito mais escuro, mas o rubi brilhava com intensidade e iluminava os túmulos com uma luz avermelhada e fosca, quase cor de sangue.
Thomas lhe encarou com um sorriso de canto de lábios, levando a mão até o bolso. Ele estava segurando um lenço, Bethany viu o pingente de pentagrama balançar no ar, cintilando como uma luminária no breu noturno.
— Por isso aqui? — provocou Thomas, lhe encarando com olhos profundos e escuros. Bethany assentiu, dando de ombros.
— Valor sentimental.
— Acho uma boa troca. — Bethany teve de se conter para não recuar quando Thomas se aproximou, exercitando o autocontrole. Os músculos gritavam para se afastar quando ele estava a alguns passos, então pararam frente a frente, se encarando.
Thomas não tinha nenhuma arma aparente, mas Bethany sabia que precisava manter distância, não sabia se ele tinha uma adaga escondida.
— Você primeiro — ordenou a menina, invocando uma autoridade que nem sabia que tinha na voz. Ele lhe olhou de cima a baixo, avaliando antes de se aproximar, dando dois passos à frente para lhe entregar o colar.
Foi naquele momento que decidiu dar o golpe, avançando sem aviso e manobrando a espada para acertá-lo, mas Thomas desviou e agarrou seu pulso com uma força inumana, apertando tanto que Bethany gemeu de dor, não conseguindo sustentar a espada.
Ele lhe lançou para trás com velocidade, Bethany caiu na escuridão de maneira despreparada, vento chiando e coração disparado. Girou e bateu contra a terra dura e seca pouco depois, a cabeça colidindo contra o concreto de um dos túmulos. O mundo girou, ficou desorientada e achou que pudesse vomitar, encolhendo-se com força.
Quando conseguiu se lembrar de onde estava, fez um esforço para se levantar e se concentrar, mas foi tarde demais. Thomas estava lhe bloqueando, o corpo em cima do seu, uma mão lhe segurando no chão e a outra segurando a espada, que agora estava encostada em seu pescoço.
Ele sorriu, Bethany prendeu a respiração ao sentir a lâmina machucando sua garganta. Os joelhos dele estavam ao redor de sua cintura, não conseguiria escapar se o empurrasse, era pesado demais. Como Verônica resolveria isso?
O rubi havia caído e agora brilhava na terra, precisava manter a atenção de Thomas em si, ou ele fugiria com o cristal.
— Você é ingênua. — Thomas tinha um sorriso amargo e os olhos cheios de um brilho psicótico. A menina levantou a mão lentamente, ainda olhando para ele, atraindo sua atenção para o rosto. Deslizou o braço num movimento tão suave que Thomas não percebeu, inclinou-se para mais perto dele, os lábios a centímetros de distância, como se fosse beijá-lo.
Ele estava completamente preso naquilo, se inclinando um pouco, os olhos fixos nos seus.
Por fim, a menina sorriu.
— Você é burro — retrucou com uma risada, enfiando a mão no bolso dele e agarrando a corrente. Thomas recuou com um gemido de dor, porque agora o pentagrama lhe protegia e tornava sua pele intocável.
O simples afrouxar dele foi o suficiente para que Bethany se jogasse para frente e desviasse da lâmina, empurrando-o com força e agarrando a espada num movimento bem calculado. Pressionou o joelho em cima do pulso dele, colocando o peso do próprio corpo sobre Thomas, mantendo-o no chão.
Ele havia deitado completamente, mas estava quase se levantando. Bethany não pensou no próximo movimento, só sabia que precisava ser feito naquele mesmo momento, ou não teria outra chance.
Ergueu a espada com as duas mãos, olhos arregalados e respiração ofegante. Parecia um sonho, não parecia real. Não sabia que tinha tanta força quando baixou a lâmina num movimento brusco, atravessando o peito de Thomas com a espada. Foi brutal. Rápido. Ouviu o ruído da lâmina adentrando a pele dele e o arquejar baixo.
Thomas parou de se debater, o corpo desabando completamente sobre o chão. Bethany piscou por alguns segundos, sem compreender o que havia acontecido, mal processando o ocorrido. Se inclinou novamente sobre Thomas, puxando a espada com rapidez e colocando a mão sobre o corte.
— Thomas — sussurrou, engolindo a seco. Não sentia mais nenhuma energia demoníaca ao redor dele, mas também nenhuma vida. O sangue começou a jorrar, inundando seus dedos enquanto tentava encontrar uma maneira de ajudá-lo com os próprios poderes.
Tentou inspirar fundo, mas o cheiro de sangue lhe deu ânsia. Mal conseguia processar, pensar, só sabia que as mãos tremiam, encharcadas pelo sangue dele.
— Bethany! — gritou uma voz, seguida de passos rápidos na floresta. Bethany mal ouviu, demorou um pouco para perceber que a boca de Thomas estava entreaberta, assim como seus olhos sem vida.
Estava tão hipnotizada por aquilo, tão imersa no próprio torpor, que não viu quando a torrente escura saiu da boca dele. Não só da boca, mas dos olhos e nariz também, fazendo Thomas convulsionar de olhos abertos, inertes. Bethany caiu para trás, empurrada pela torrente de poder e assustada demais para revidar.
Parecia vômito saindo de Thomas, mas ia para cima, flutuando e se espalhando rapidamente pelo ar, misturando-se com o céu negro da noite.
Encolheu-se na terra quando ouviu um zumbido alto, impressionada quando percebeu que sombras deslizavam pelo ar, os demônios deslizavam como fantasmas perdidos, bexigas murchas.
Fechou os olhos e se encolheu, sentindo a terra arranhar sua pele e os demônios lhe circulando como lâminas, lhe cortando. Arriscou abrir os olhos naquele vendaval, viu que Rafael atacava todos com a lâmina, tentando abrir caminho. Era difícil, os demônios lhe cercavam como um enxame furioso e ele lutava sem parar, deslizando a lâmina com um controle invejável.
Bethany viu que uma das sombras se aproximava do rubi, a menina arrastou-se até lá, rasgando a roupa numa pedra afiada, e agarrou o cristal, protegendo-o com o próprio corpo. Gemeu de dor quando sentiu os demônios lhe machucando, cortando sua pele com garras afiadas.
— Abaixe-se! — gritou uma voz feminina, e Rafael se aproximou, abaixando-se perto de Bethany quando os tiros começaram a ecoar. Bethany fechou os olhos, cobrindo os ouvidos com as mãos quando ouviu os disparos.
A respiração estava acelerada, mal conseguia pensar. Os tiros eram altos contra a noite, Bethany soluçou baixinho e pensou na igreja, em sua mãe, em Lilith. Tudo voltou com força enquanto tremia intensamente, mal conseguindo se lembrar do que estava acontecendo.
Ouviu os tiros ecoando. Sentiu que morreria a qualquer momento. Bethany gritou, aterrorizada com o zumbindo alto, com a energia demoníaca. Sentia-se desorientada, encolhida na escuridão barulhenta.
Faltava ar, respirava tão profundamente e seu coração disparava tão alto nos ouvidos que demorou para perceber que os disparos haviam parado.
— Beth, acabou. — Uma voz masculina tentou a tranquilizar. Sentiu uma redoma de energia quente lhe envolvendo, tranquilizando os calafrios. Aquilo acalmou seus pensamentos como um banho quente, um chá suave em dia de frio. Lhe devolveu alguma consciência do mundo exterior. — Pode abrir os olhos, acabou — pediu Rafael, e Bethany percebeu que estava encolhida contra a terra, mordendo a própria língua com força. Sentia gosto de sangue na boca, salgado e metálico.
Seu tio estava ajoelhado ao seu lado, envolto de uma luz angelical que afastava a escuridão. Bethany sentiu o peito subir e descer com intensidade, os pulmões ardendo, sufocada pela própria ansiedade.
— Thomas... — gaguejou, tentando se virar para encontrá-lo, mas Rafael entrou na frente, impedindo sua visão. Ainda estavam no cemitério, Bethany ainda segurava o rubi vermelho e os túmulos estavam silenciosos e melancólicos, pontos cinzentos na escuridão.
Mal conseguia respirar, as lágrimas que vieram depois só pioraram. Soluçou, sentindo o ar faltar.
— Não olhe — pediu ele, com um olhar preocupado. — Vamos cuidar disso, vai ficar tudo bem — prometeu, ainda ajoelhado na terra. Bethany se levantou com esforço, os braços ralados e sujos.
Assustou-se quando ouviu passos estalando pelo gramado, assustou-se mais ainda quando viu Candace se aproximar, uma arma pequena e brilhante na mão. Estremeceu de leve, confusa.
Ela se abaixou para lhe ajudar, os cabelos loiros amarrados caíam sobre o ombro esquerdo. Candace guardou a arma numa pequena bolsa e estendeu a mão, ainda abaixada enquanto Bethany continuava encolhida, um tanto amedrontada e insegura.
— Vamos, você precisa sair daqui. — O tom de Candace foi tão suave que soou como música depois de toda a barulheira. Bethany engoliu a seco, ignorando a respiração acelerada.
Sentia a energia angelical de seu tio lhe envolvendo, aos poucos cessando a crise de pânico. Viu a corrente caída, o pentagrama brilhando, então inclinou-se para pegar o colar e depois aceitou a mão de Candace, que lhe ajudou a levantar.
Bethany estava trêmula, mal conseguindo se sustentar, Candace passou o braço ao redor de seus ombros e lhe firmou. A menina deixou que ela lhe guiasse de volta para a escuridão das árvores, desta vez sem olhar para trás, sem olhar para Thomas.
Candace ligou uma lanterna quando adentraram o bosque, uma lanterna de verdade, que ela carregava na pequena bolsa na lateral do corpo. Mal conseguia pensar enquanto caminhavam, zonza e enjoada, entorpecida. Mal teve voz para perguntar.
— Como... — Foi uma palavra só, tudo o que conseguiu pronunciar. Baixinho e gaguejado, mas Candace entendeu. Ela suspirou levemente, iluminando o caminho entre as árvores e lhe segurando com força.
— Balas benzidas e pentagramas de banimento, era a forma mais rápida de acabar com os demônios. — Bethany não perguntou mais nada, deixou que Candace lhe reconfortasse e guiasse pelo resto do caminho.
« ♡ »
Candace era o tipo de pessoa que carregava uma coberta e garrafas de água no carro. Bethany aceitou de bom grado quando ela tirou uma coberta fina do porta malas e lhe esticou uma garrafinha de água.
Gastou metade da garrafinha tentando lavar o sangue de Thomas das próprias mãos, contendo o vômito. Agora bebia o restante da água aos pouquinhos, tentando se acalmar.
Já fazia algum tempo que estavam ali, sentadas no capô do carro branco dela, Bethany enrolada na coberta e apertando a garrafinha de água. Foi lentamente voltando para a realidade, entendendo o que havia acontecido.
A respiração havia voltado ao normal, mas os olhos não paravam de lacrimejar. Queria guardar as lágrimas para quando estivesse no banho, lavando o próprio sangue e o sangue de Thomas.
— Como sabia que estávamos aqui? E sobre... as balas? — perguntou baixinho, querendo pensar em alguma outra coisa. Nem mesmo a dor física dos cortes e dos arranhões distraiam sua mente.
— Eu sou vidente. Humana, mas vidente e médium — explicou Candace, para a surpresa de Bethany. Liam havia dito que ela via mais do que as pessoas normais, mas não achava que era tão talentosa nisso. — Sempre convivi com demônios, mesmo quando sabia o que eram. Médiuns têm uma energia chamativa, então tive de aprender a me defender. — Ela baixou o olhar de uma maneira desconfortável. Bethany lembrou-se da conversa no meio da madrugada, da conversa que não deveria ter escutado. — Seu pai me salvou de uma enrascada, depois me ensinou sobre o que eram as criaturas demoníacas. Sempre achei que fossem fantasmas, ou poltergeists. — Bethany já não prestava muita atenção, pensando em Ally e Thomas, em como não pudera salvá-los. Talvez seu pai estivesse certo, talvez devesse se afastar e deixar os adultos com o trabalho. — Quando soube do que estava acontecendo aqui, vim correndo assim que pude.
Bethany não respondeu, encarando a rua deserta. Ela e seu tio haviam estacionado ao lado do carro de Sara, mas Rafael ainda não havia saído do bosque. Provavelmente cuidaria do corpo de Thomas, o levaria para o necrotério.
O lugar estava completamente vazio, era uma das fábricas mais isoladas do bairro industrial. Ouvia os grilos cantando ao longe, observava os postes com luzes alaranjadas, insetos voadores batendo contra as lâmpadas.
— O que vai acontecer com Thomas? — indagou fracamente, porque nessa hora já não sentia nada. Não sentia medo, tristeza e nem pavor. Só cansaço extremo e um vazio enorme no peito.
— Seu tio vai cuidar dele. Não se preocupe, a morte não será ligada a você, os anjos cuidarão disso. — Candace tinha esse tom de voz exatamente perfeito e regulado, como se sempre lidasse com situações intensas assim. — Haverá um velório e um memorial bonito, todos vão poder seguir em frente depois disso. Acredite, é melhor para todo mundo. Para nós, para Thomas, para a família dele — concluiu a loira, e Bethany assentiu com a cabeça, sem dizer nada.
A família dele. Aquela era a pior parte. Como poderia encarar a mãe dele? O time de futebol? Os amigos de Thomas?
Antes que os questionamentos fossem longe demais, um farol iluminou a rua e um carro encostou no meio-fio. Bethany não ficou surpresa ao ver Liam, nem ao ver o certo desespero dele ao vir em sua direção. Ele parou por um momento, avaliando os machucados em seus braços, os cabelos bagunçados e sujos de terra, o rosto manchado por lágrimas e sujeira.
— Beth... — Seu pai não disse mais nada, Bethany se levantou o abraçou. Sentiu-se mais protegida, aliviada até. Candace se oferecera para lhe levar para casa, mas Bethany preferira esperar o pai.
Ele havia ligado várias vezes, mas Bethany não atendera. O celular estava abandonado no bolso do casaco, junto com o rubi, mas o colar voltara ao seu lugar no pescoço.
— Você está bravo porque vim para cá? — Liam lhe abraçou mais forte, rindo baixinho.
— Só orgulhoso do quão forte você é — confessou ele, se afastando um pouco e acariciando seus cabelos cheios de nós. — Apesar de querer te deixar dois anos de castigo — reclamou, e Bethany riu fraquinho, o abraçando de novo. Ficaria tudo bem agora, tinha de ficar.
Se sobrevivera a essa noite, poderia sobreviver a qualquer coisa.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro