Eletricidade | Capítulo Quarenta E Dois
— Ela desapareceu, Brianna não soube dar nenhuma informação, o celular está desativado, ninguém sabe como encontrá-la. — Aislinn andava de um lado para o outro na sala, os cabelos voando ao seu redor, as mãos fechadas ao lado do corpo. Sara nunca a vira tão brava e irritada, aquilo era novidade.
— Talvez Amara tenha uma explicação, talvez não seja culpada como pensamos. Já precisei parecer culpada várias vezes para seguir com algum plano. — Tentou amenizar o impacto e considerar todas as teorias, mas Aislinn não lhe ouvia. Permaneceu com as pernas encolhidas na poltrona, observando a chuva que escorria pelo vidro da janela.
Aislinn cruzou os braços.
— Ela mentiu para mim, fez todo mundo confiar nela e desapareceu quando encontramos provas de que estava envolvida com a espada que está destruindo a cidade. — Não tivera tanto contato com Amara, mas Aislinn gostava dela e as duas passaram um bom tempo conversando sobre livros e reclamando sobre o catálogo da biblioteca. Ela parecia ter levado aquilo para um lado pessoal. — Parece bem culpada para mim — concluiu, jogando os cabelos castanhos para trás e sentando na ponta do sofá, mal humorada.
Noah estava na outra ponta do sofá e afundou entre as almofadas, desanimado ao observar a chuva. Sara sabia que ele estava irritado por estar preso no apartamento, também por não poder ver Nicholas, já que era perigoso sair no meio de tanta água, além dos raios e tempestades de granizo ocasionais.
Enquanto isso, estava agarrado ao celular, como se já não passasse todo o tempo livre colado a Nicholas.
— Qual é o plano de Amara, afinal? Matar todo mundo afogado? — ele reclamou com um gemido frustrado, bem quando um raio ecoou alto no céu e a sala se iluminou com o estrondo. Aislinn levantou as sobrancelhas, olhando para a janela embaçada e a cidade borrada por trás da água.
— Afogado nem tanto, mas eletrocutado... — comentou, os três com os olhos fixos na janela. Não tinham muito o que fazer no meio da tempestade, a noite estava caindo e não conseguiriam muita coisa saindo para investigar.
Quando a chuva amenizou, Aislinn aproveitou para ir embora. Liam passara o dia no hospital, Noah dormiria ali para não ficar sozinho em casa. Quando a madrugada começou, foi para a cozinha com um exemplar da Bíblia. Aquilo era um tanto irônico, dado quem era, mas precisava saber com o que estava lidando — nem mesmo tinha uma Bíblia em casa antes de todos os acontecimentos recentes, comprou-a numa banca na esquina para poder estudar o último livro.
Pegou uma caneta e caderno, abriu em Apocalipse e tentou se concentrar. Noah já estava dormindo e o lugar estaria silencioso, se não fosse pela tempestade do lado de fora, os raios que lhe faziam levantar o olhar o tempo inteiro. Tentou ignorar o caos enquanto marcava a Bíblia e fazia anotações, os raios produzindo sombras sinistras sobre as folhas finas.
Estava tão concentrada que demorou para notar outro barulho se sobressaindo ao da chuva, um ruído grave e extenso. Sentiu o corpo gelar quando o escutou, paralisada com o que isso significava. Havia acabado de grifar um trecho sobre as sete trombetas, bem quando ouvira a segunda delas.
Se levantou automaticamente, sem saber o que fazer primeiro. Ligar para Liam? Acordar Noah? O som ficava alto e mais alto, retumbando nos ossos. Sara olhou para fora e viu o céu de iluminar com um estouro agudo de um raio.
E mais um. E mais outro.
Ouviu a porta do quarto de Noah se abrir, então foi para a sala encontrá-lo, ele tinha olhos arregalados enquanto olhava a tempestade pelas portas de vidro da sacada. Raios caíam sobre a cidade inteira, sem interrupção. A maioria deles eram atraídos pelos para-raios, mas estavam assustadoramente perto.
Os estouros eram altos, altos demais. Retumbavam em sua cabeça e latejavam nos ouvidos.
— Não fique tão perto da janela — falou, puxando Noah mais para trás e afastando-o do vidro. Em seguida, virou-se e começou a tirar os aparelhos da tomada. Noah viu e começou a fazer o mesmo, em pouco tempo a televisão e o videogame dele estavam desligados; Sara seguiu para a cozinha para desconectar os eletrônicos de lá, enquanto Noah corria para os quartos e tirava os carregadores do celular e notebook da tomada.
Se encontraram na sala depois de conferir se não havia nada nas tomadas, os raios ficavam mais intensos. Estava pensando se deveria desligar as luzes quando um estouro alto estalou nos ouvidos, um zumbido de eletricidade fez com que algo dentro da lâmpada estourasse e ficaram na escuridão total.
Sara se assustou quando um raio caiu bem próximo, no prédio vizinho.
— Eu já volto. — Noah se levantou e sumiu na escuridão, Sara se esforçou para ficar na sala, preocupada demais para deixá-lo sozinho. Os raios iluminavam todo o lugar, criavam sombras dançantes com sua luz estourada, via os fios carregados de eletricidade desabando por toda a cidade.
Noah voltou pouco depois, carregando um isqueiro e uma caixinha cheia de velas. Ele pegou uma vela amarela e a acendeu, colocando-a sobre a mesinha de centro.
— Vantagens de ter uma irmã bruxa. — Sara riu levemente, depois o ajudou a organizar a sala e espalhar as velas para que tivessem alguma iluminação. O estoque interminável de velas de Bethany fora bem útil, a sala estava iluminada com as chamas trêmulas enquanto permaneciam encolhidos no sofá, distantes das janelas e de qualquer coisa metálica.
Noah se enrolou numa coberta e pegou o próprio celular. Logo depois, fez uma careta, frustrado.
— Sem sinal de operadora e nem internet. — Jogou o aparelho entre duas almofadas, o maxilar pressionado com tensão. Sara não se surpreendeu, embora estivesse ansiosa para ligar para Naomi e saber se ela, as crianças e Rafael estavam bem. Não sabia se Liam estava em casa, mas também não conseguiria entrar em contato com ele, duvidava que teriam qualquer forma de comunicação tão logo. — Vou ter de me comunicar com Nick por sinal de fumaça. — Sara quase riu da dramaticidade, mas estava preocupada demais ao observar os raios no horizonte.
Mais alguns minutos de tempestade de raios, depois o céu se acalmou um pouco, mas a chuva continuou desabando. Quando Noah adormeceu no sofá, Sara resolveu voltar para a cozinha e levou uma vela para continuar a leitura.
Ficaram sem eletricidade pelo resto da noite, sem qualquer forma de contato também. Estava aflita enquanto esperava a manhã chegar, era perto das seis horas quando a chuva parou, o céu amanheceu cinzento perto das sete e meia. Pouco depois das oito horas, Noah acordou e Sara não pôde esperar mais.
O deixou na casa de Nicholas e fez o caminho para a casa de Naomi, já que o celular estava sem torre e continuavam sem internet. Ela abriu a porta e lhe abraçou automaticamente, Sara suspirou de alivio quando envolveu a loira num aperto.
— Vocês estão bem? — Naomi lhe puxou para dentro de casa e Sara fechou a porta quando entrou, aliviada ao perceber que estava tudo certo. A cozinha parecia normal, assim como o corredor e a sala. Ainda estavam sem eletricidade, a casa estava escura e silenciosa.
— Estamos, na medida do possível — respondeu Naomi, falando em voz baixa quando adentraram a sala. Kathy dormia no sofá, protegida por um forte de travesseiros para que não se machucasse ou caísse. — Kathy chorou a noite inteira, ela fica apavorada com barulhos altos e tempestades, dormiu meia hora atrás. — Naomi olhou para a filha; a menininha estava encolhida num cobertor colorido, sua pele clara era iluminada pela luz nublada do dia, destacando as bochechas arredondadas e avermelhadas.
Louise lhe cumprimentou com um aceno rápido, ela estava encolhida perto da janela para conseguir aproveitar a claridade e ler um livro cheio de quadrinhos.
— Onde está Rafael? — perguntou ao notar ausência dele, enquanto se acomodavam no sofá ao lado do que as meninas estavam. Saber que elas e Naomi estavam seguras tirava um peso de seu peito.
— Saiu para dar uma olhada na cidade. — A loira remexeu-se nervosamente, os olhos azuis obscurecidos de preocupação. — E você e Noah? Estão bem? Conseguiu falar com Liam?
— Tudo bem, deixei Noah na casa de Nicholas — falou, mesmo que não quisesse que Noah ficasse longe, ainda mais sem ter como entrar em contato. Passaria pegá-lo quando voltasse para casa. — Faz tempo que não falo com Liam, ele está muito ocupado com as emergências no hospital desde o terremoto. — Naomi assentiu de maneira compreensiva.
Não demorou muito para Rafael chegar, Sara nunca o vira tão preocupado e pálido.
— Os raios derreteram a maior parte dos fios de energia, geradores reserva, cabos de conexão com internet e tudo mais, a cidade está completamente no escuro — relatou tirando o casaco úmido. Apesar da chuva ter cessado, ainda havia uma fina garoa e uma neblina esbranquiçada tomava as ruas. — Com toda a chuva, o rio transbordou e a saída da cidade está interditada, a ponte do outro lado desabou. Ninguém tem como sair da cidade para buscar cabos e equipamento para manutenção. — Ele estava inquieto demais para se sentar no sofá, Sara também se sentia assim, movia os pés para aliviar a ansiedade.
Engoliu a seco, sentindo as palavras amargas quando falou.
— Estamos ilhados.
— Completamente, é perigoso demais tentar chegar ao outro lado com meus poderes enquanto a espada estiver alterando tão profundamente a cidade, não tenho como prever o que acontecerá — concordou Rafael, desviando o olhar para as filhas no sofá. Kathy continuava dormindo, Louise estava escutando música com um fone e não ouviu a conversa, concentrada em aproveitar o restante da bateria do celular. — Não temos como entrar em contato com ninguém, nem como transmitir nada. A cidade poderia ser engolida por um terremoto e destruída por meteoros, mas não teríamos como fugir, noticiar ou pedir ajuda.
« ♡ »
Sara pegou o carro e foi para o bosque. A cidade mal havia se recuperado do terremoto, mas agora lidava com ruas alagadas e fios de eletricidade caídos, donos de mercado em pânico enquanto tentavam salvar os laticínios e carnes com grandes caixas térmicas. Muita gente na rua, assim como no dia do terremoto.
O bairro industrial, que era um dos acessos ao bosque, estava vazio e fantasmagórico. Sara saiu do carro e adentrou as árvores sem se importar com os tênis cheios de lama, os pingos frequentes de água acumulada pelas folhas.
Precisava percorrer uma distância maior até o riacho porque a outra parte da cidade estava alagada. Andou por quase meia hora até enxergar o riacho, que havia se expandido e deixado as raízes das árvores submersas.
A espada continuava flutuando num pedestal, não afetada pelos últimos acontecimentos. Tirou os tênis para adentrar a água enlameada, deixando-os num lugar minimamente seco, mesmo que já estivessem completamente sujos pela lama do bosque.
Adentrou o riacho e a água deixou seus pés submersos, depois os tornozelos, as panturrilhas, subindo até pouco abaixo de sua cintura. Parou na frente da espada, inspirando fundo e invocando todo o poder que tinha, fazendo-o vibrar nas veias.
Precisava desativar aquela espada, interromper aquele micro apocalipse que atingia a cidade. Esticou as mãos e encarou a lâmina escura por um tempo, até se sentir preparada para arriscar.
Envolveu o cabo com as duas mãos e puxou a lâmina com força, tentando tirá-la dali e servir como condutora para a energia, mandando-a de volta para a terra. A lâmina não se moveu, mas alguma coisa deslizou para suas veias e seu corpo, uma corrente intensa e fria que lhe paralisou e então lhe fez se curvar.
Sara gritou, foi jogada com força para trás e a água lhe engoliu com uma pancada. O corpo pesava e não conseguiu se mover, tudo latejava e girava numa confusão de dor e angústia, a água ensurdecia seus ouvidos.
A visão escureceu por um momento, o corpo roçou o fundo cheio de lodo macio do riacho. A água estava escura por causa da chuva, cheia de barro, folhas e outros detritos trazidos pela enchente — Sara demorou para conseguir afundar os dedos na lama e apoiar-se nos cotovelos para se levantar, os músculos reclamando a cada movimento.
Quase escorregou e falseou quando tentou se levantar, as pernas estavam fracas e o lodo era escorregadio. Sara encarou a espada, perplexa. A arma não havia se movido, nem sofrido qualquer dano. Sua pele estava estalando poder quando tentou movê-la, havia concentrado tudo o que tinha nas mãos.
Estava suja e encharcada, as roupas estavam pesadas enquanto tentava tirar as folhas e galhos grudados no cabelo.
Sabendo que precisava de uma estratégia melhor, resolveu voltar para casa e continuar pesquisando. Conseguia enfrentar demônios, enfrentar Mamon, mas os desastres naturais eram um nível novo que nunca havia lidado.
Desejou que Arthur estivesse ali, que ele pudesse lhe dar uma direção. Precisava tirar aquela espada de lá antes da terceira trombeta, era tudo o que sabia.
O dia demorou para passar. Liam não estava em casa quando passou lá, usou o resto da tarde para testar hipóteses com Aislinn, voltaram ao bosque com determinação. Não tinham muitos livros aos quais recorrer, fizeram diversas tentativas frustradas de tirar a espada dali, mas não conseguiram nem ao menos movê-la — Sara voltou para casa exausta depois de usar os próprios poderes de tantas maneiras diferentes, a cidade continuava um caos. Bombeiros e policiais estavam concentrados nas duas saídas, mas era impossível reconstruir a ponte sem as máquinas e materiais necessários, a única esperança era de que a água do rio baixasse logo.
Noah estava impaciente e frustrado quando voltaram para o apartamento, ainda estavam sem eletricidade e internet. Os detritos continuavam sendo retirados das ruas, mas a água escorria como um lembrete constante da tempestade de raios do dia anterior.
Noah foi dormir cedo porque estava entediado, já que Nicholas estava em casa com os pais. Sara ficou na cozinha, rabiscando hipóteses e ideias no caderno, relendo compulsivamente os versos da Bíblia. Nada que pudesse ajudar, nada que lhe desse uma noção de como resolver o problema.
Tudo estava tão silencioso que só ouvia o barulho do vento do lado de fora, as batidas na porta lhe sobressaltaram. A cozinha estava iluminada por velas, Sara olhou pela janela para tentar ver se reconhecia algum carro estacionado. Foi inútil, a rua estava completamente escura por causa dos postes desligados, não conseguia ver nada.
Mais batidas na porta. Sara se levantou e inspirou fundo. Talvez fosse Naomi. Ou Rafael. Ou Aislinn. Poderia lidar com alguma outra coisa. Passava das duas da manhã, mas talvez uma emergência tivesse acontecido, estavam sem celulares, afinal.
Pegou uma das velas apoiadas num suporte de metal e seguiu pelo corredor escuro até a porta da frente, abriu a fechadura e deu um passo para trás. Surpreendeu-se ao ver Liam, com os cabelos loiros bagunçados e uma camisa social bege totalmente amassada.
— Me desculpe aparecer assim, Beth tinha a chave e eu não tinha como avisar que estava vindo... — Sara revirou os olhos e abriu espaço para que ele estrasse, observando as escadarias escuras e o hall vazio entre os outros apartamentos. Era quase um cenário de filme de terror.
— Como se você precisasse se justificar — interrompeu-o com um sorriso compreensivo. Liam parecia exausto, era madrugada e ele ainda usava as roupas que vestia para ao hospital. Aquilo lhe preocupou, assim como a garrafa que ele segurava na mão direita, envolvida num saco de papel pardo. — Você saiu agora do hospital? — O loiro assentiu enquanto Sara fechava a porta, os dois seguiram para dentro do apartamento. Levou as velas da cozinha para a sala, logo estavam acomodados no sofá, na luz baixa e alaranjada que as velas ofereciam.
— Temos geradores reserva para quando a eletricidade cai, mas os raios os danificaram também. Estive até agora ajudando como pude, alguns pacientes precisavam de respiradores, máquinas que ajudavam o corpo a funcionar artificialmente... — Ele deu um gole na garrafa, Sara sentiu o cheiro de bebida alcóolica no ar. Os cabelos loiros caíram na frente dos olhos de Liam, o rosto estava cheio de sombras por causa das chamas que dançavam e projetavam luz. — A tempestade acabou com tudo, tivemos pouco tempo para decidir quais pacientes teriam melhor chance de sobrevivência se ajudássemos com aparelhos de respiração manual. Era para ser uma solução a curto prazo, porque não resolve o problema. — Liam evitava seu olhar, o rosto estava perdido na escuridão da sala. Sara sentiu um aperto no peito, tanto pelo relato dele, quanto pelo tom vazio que ouvia em sua voz. Conhecia aquele tom. Já o ouvira algumas vezes, porque o trabalho no hospital não era fácil. Era o tom de exaustão e melancolia de quando ele tentava de tudo, passava longos expedientes no hospital, mas não era o suficiente para salvar um paciente. — Não pudemos fazer muita coisa, a maioria se foi em questão de minutos. — Sara ficou em silêncio por alguns segundos. Quando ouvia aquele tom, quando ele chegava do hospital de madrugada, geralmente lhe fazia um chá e depois ficavam abraçados na cama, em silêncio. Sara tentava consolá-lo como podia, esperando que ele dormisse enquanto acariciava os cabelos loiros.
Mas não tinham mais essa intimidade, apesar de ele ter lhe procurado. Não entendia muito bem por que Liam não estava com Candace, por que escolhera vir ao seu apartamento, em vez de procurar a companhia dela.
— Sinto muito — suspirou, se aproximando para colocar a mão sobre a dele, esperando consolá-lo com o toque. Sabia que Liam não era o tipo de pessoa que precisava de palavras, ele preferia silêncio. Silêncio e companhia.
A noite silenciosa lhes engoliu por breves momentos, nenhum dos dois disse nada, mas Sara continuou com a mão em cima da dele.
— Eu... — Liam parou de falar, hesitando como se estivesse tentando encontrar coragem. Estranho, para alguém que sempre sabia o que falar e mantinha a calma, como ele. — Vários teriam sobrevivido, se eu não tivesse interferido.
Sara sentiu o corpo se retesar, ajeitando-se no sofá.
— O quê? — Não sabia o que pensar ou como interpretar a frase dele. Liam ficou em silêncio por alguns momentos, então inclinou-se para frente e afastou a mão da sua. Deu mais um gole na garrafa.
— Eu sou o cavaleiro da morte, simplesmente passei por aquele corredor recolhendo as vidas como se fossem frutas num pomar. — A voz dele tremeu e falseou por um momento, Sara ouviu o barulho seco de papel amassando quando Liam apertou a garrafa com força. Colocou a mão no ombro dele sem nem ao menos pensar, apertando de leve num gesto reconfortante. — Precisei fazer aquilo, não tive escolha. Há um equilíbrio, se eu o perturbar... coisas piores acontecem, mais mortes em massa. — Sara demorou para encontrar palavras enquanto ligava os pontos. Manteve a mão no ombro dele, movendo os dedos numa carícia suave.
— Acha que foi a espada? — perguntou, e Liam finalmente se virou, recostando-se no sofá. Os olhos brilharam com a luz das velas, a escuridão destacou o cansaço e as olheiras em seu rosto.
— Tenho certeza — confessou, apertando as mãos em volta da garrafa e amassando ainda mais o saquinho de papel. — Eu poderia ter me recusado a fazer isso, ignorar a intuição, mas então...
— As consequências seriam piores — completou Sara, a voz cheia de suavidade. Não era apenas intuição, ele sabia quando as pessoas morreriam. Liam assentiu vagarosamente, mais silêncio na sala.
— Havia um garoto de dezessete anos, a mãe dele estava desesperada. — O loiro finalmente voltou a falar, mas não lhe olhava nos olhos. Sara queria abraçá-lo como costumava fazer, conseguir confortá-lo de alguma forma. — Eu a acalmei, disse que cuidaria do filho dela, que ficaria tudo bem. — Ele balançou a cabeça, respirando pesadamente. — Não faço ideia de como encará-la amanhã, dizer que ele se foi, sabendo que fiz ao contrário do que prometi que faria, ao contrário do que deveria estar fazendo como médico. — Sara o abraçou, envolvendo os ombros de Liam num aperto suave. O escuro era como uma redoma, envolvendo-os com a serenidade da luz fraca das velas.
Algum tempo se passou assim, era confortável estar tão perto dele, não tinha noção da saudade que sentia do toque de Liam, dos corpos entrelaçados. Apoiou o queixo em seu ombro, querendo que ele soubesse que estava ali, que ainda estava ao lado dele quando precisasse.
Talvez por isso Liam estivesse ali, em vez de procurar Candace. Havia certas coisas que sentia que só Liam entenderia, por mais que tivesse Arthur ao lado, lhe apoiando. Certos assuntos e sentimentos pertenciam só aos dois, ninguém conseguiria lhes conhecer como conheciam um ao outro.
— Você vai respirar fundo e dizer que fez o máximo que pôde, porque sei que fez. — Era a única coisa que podia dizer, a única coisa que parecia minimamente coerente. Sabia que não era o suficiente, mas esperava que ajudasse. — Larga isso, vou fazer um chá. — Inclinou-se e pegou a garrafa da mão dele, se levantando em seguida e pegando uma vela para se guiar no caminho.
— Eu não deveria estar aqui — negou ele, já se levantando para ir embora. Sara o empurrou de volta para o sofá, deixando a garrafa de lado por um instante. O encarou com seriedade.
— Você não vai entrar naquele carro depois de ter bebido, nem sair no meio da madrugada com o asfalto molhado e toda a escuridão. — Preferia tê-lo ali, saber que estava seguro. Liam não discutiu, então seguiu para a cozinha. Despejou o resto da bebida dele na pia e jogou a garrafa no lixo, colocou o saquinho de chá numa xicara. Precisou esquentar a água no fogão, porque não tinha eletricidade para ferver no micro-ondas.
Conversaram um pouco enquanto ele tomava o chá; Noah devia estar num sono profundo, porque não saiu do quarto. Liam adormeceu no sofá em certo momento, Sara também estava exausta, mas parou para observá-lo por alguns segundos.
Não havia mudado nada, conhecia cada uma daquelas feições suaves e mechas loiras, cada um daqueles traços depois de terem dividido a cama por tanto tempo. Sara suspirou e levantou para pegar cobertores, colocou um sobre Liam e enrolou-se no outro, reconfortando-se na poltrona.
Observou o céu fechado, completamente escuro. Desde que a chuva começara, não havia estrelas e nem lua aparentes. Recostou a cabeça na poltrona, mas preferiu ficar observando as velas, seu bruxulear delicado e sua dança calorosa.
Acabou adormecendo, exausta depois de um dia tão longo. Quando abriu os olhos novamente, o céu se iluminava num brilho cinzento, Liam ainda dormia no sofá — não era surpresa, não depois de ter passado tanto tempo em claro no hospital.
Ouviu passos vindos do quarto de Noah e se levantou, atravessando o tapete da sala com pés descalços para chegar até Liam. Colocou a mão no ombro dele, acordando-o com suavidade.
— Liam... — Ele despertou lentamente, afastando a coberta enquanto Sara se levantava e mordia o próprio lábio com nervosismo. Aquilo não era nada bom. Ele ter dormido em seu sofá não era nada bom. A manhã parecia trazer racionalidade ao acontecimento. — É melhor você ir antes que Noah acorde. — Ele concordou. Logo estava de pé, Sara acompanhou-o até a porta e se despediram com um abraço rápido.
Voltou para dentro e levou as cobertas para o quarto antes que Noah visse, depois pegou o celular, que havia sido abandonado no móvel de cabeceira. Trincou os dentes, preocupada.
Nada de sinal de operadora, internet, nem eletricidade.
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