
Ela Precisa De Vocês | Capítulo Seis
Sara teve dificuldade para encontrar Clarissa.
Por fim, encontrou-a em um salão arredondado com as paredes preenchidas por estantes; grandes vigas se erguiam de forma elegante, por onde trepadeiras verdejantes subiam e contrastavam com o branco do gesso. Elisa havia dito que fora ideia de Lena revitalizar aquele lugar.
Clarissa estava em um canto, avaliando os livros na estante com tanta concentração que não lhe viu se aproximar.
— Cass? — chamou-a suavemente, e Clarissa piscou como se tivesse acabado de acordar de um transe. Sara sorriu. Mesmo depois de tantos anos sem vê-la, ela não havia mudado quase nada.
A loira se levantou, abrindo um sorriso leve que não se refletiu no resto do rosto. Parecia um tanto exausta, o que alarmou Sara. Ninguém parecia exausto naquela dimensão, todos tinham uma aparência tão perfeita que chegava a ser irritante.
— Ah, oi — disse ela, tirando os cachos loiros da face e lhe encarando com aqueles grandes olhos arroxeados. Sara podia sentir a energia demoníaca ondular como uma brisa gélida ao seu redor. — Como você está? — perguntou, ajeitando cuidadosamente uma pequena pilha de livros nos braços, como se os livros fossem uma criança.
Sara deu de ombros, sem querer adentrar aquilo. Preferia focar em outras coisas, preferia não extravasar demais os próprios sentimentos.
— Só... lidando com tudo — disse, não mentindo, mas também não sendo totalmente sincera. Clarissa assentiu de forma compreensiva. Talvez ela lhe entendesse mais do que pudesse imaginar, pensou, ela também deixara muita coisa para trás para estar ali. — Mas estou aqui por sua causa, para ver como você está. Os outros estão preocupados — acrescentou, encarando-lhe com atenção.
Era surpreendente sentir todo aquele poder ao redor dela, perceber como Clarissa havia se transformado e como estava poderosa. Mas, ainda assim, Sara percebia como ela parecia perdida por trás dos olhos púrpura, como estava assustada por trás de todo aquele escudo de poder que jorrava como um vulcão.
— Elisa te mandou falar comigo? — perguntou a loira, fazendo uma careta e estreitando os olhos de forma desconfiada. Sara sorriu e negou com a cabeça, pensando em tudo o que Elisa lhe contara sobre Clarissa, todas as reviravoltas naquela dimensão.
Clarissa se isolando, se esquivando dessa maneira...
— Não, vim porque também estou preocupada — garantiu com sinceridade. Clarissa ainda estava desconfiada e Sara conseguia entender. Quem não desconfiaria, sendo que era tão próxima de Elisa? — Pode falar comigo se quiser, você sabe, não sabe? — ofereceu, encarando-a nos olhos e com firmeza nas palavras. Sara conseguia se ver nela, quase como se Clarissa fosse um espelho.
Era como voltar no tempo, nos primeiros momentos explorando seus novos poderes. Uma garota assustada, confusa e com medo de fazer mal às pessoas.
— Sara... — começou Clarissa, desviando o olhar para os livros que tinha em mãos. Ela parecia um tanto desanimada e nada aberta àquela conversa.
— Somos as únicas pessoas aqui com energia demoníaca, não é fácil, eu sei — continuou Sara, e isso fez com que Clarissa levantasse os olhos com um leve interesse, finalmente fisgada por suas palavras. Sara sorriu ao notar aquilo, mostrando compreensão. — Demorei muito para entender meus poderes, para aceitar meus elos demoníacos. Isso com Azazel não é o fim do mundo, vamos achar uma solução. — Clarissa não parecia convencida. Ela baixou o olhar para os livros, deixando uma maré de cachos loiros desabar sobre a face e encolhendo os ombros de leve.
— Quantas pessoas vão se machucar no caminho? — sussurrou, mais para si mesma do que para a outra. Sara hesitou alguns segundos, sentindo uma pressão na própria garganta, um calafrio que sempre acompanhava as memórias.
Sofia. Lílian. Evan. Josh. Eric.
Mais incontáveis vítimas que nem chegara a conhecer, mas que morreram enquanto tentava achar uma forma de lidar com Lúcifer. Lembrava-se da sensação de desespero ao ligar o noticiário e ver catástrofe atrás de catástrofe, milhares de mortes, lembrava-se do soco no estômago ao perceber que nada era o suficiente, nada amenizava a situação.
— Não vou mentir, provavelmente algumas — confessou, também com os ombros retraídos, mordendo de leve o próprio lábio. — Mas mais ainda se não tentarmos resolver isso, você sabe — complementou gentilmente, porque sabia que era verdade. A loira não respondeu, Sara ajeitou os cabelos escuros atrás dos ombros, percebendo como Clarissa estava inquieta. — Estou aqui se precisar, se tiver algum problema — garantiu. A menina sorriu de leve, mais uma vez destacando o cansaço e desânimo em sua face.
— Obrigada por isso — disse, mas logo arranjou qualquer desculpa para sair dali, sem realmente considerar sua proposta. Sara suspirou, sabendo que não valia a pena correr atrás de Clarissa agora.
Em vez disso, procurou por Elisa. Encontraram-se no escritório, um local que passara a ser um refúgio e ponto de encontro ali, com todo o silêncio e a decoração familiar de papelaria.
— Ela precisa de vocês — disse, inclinando-se sobre a mesa de madeira e deixando os dedos baterem de forma impaciente. Elisa pareceu um pouco confusa no início, mas então os olhos dourados se arregalaram.
— Você falou com Clarissa? — perguntou, em um misto de alívio e espanto. Sara assentiu, brincando com uma mecha de cabelo entre os dedos.
— Ela precisa de você e de Lena, precisa de alguém que mostre que ela não é o problema aqui — falou, levantando o olhar para encarar Elisa e sorrindo levemente para tranquilizá-la. — Ela só está assustada, Liz, não é surpreendente que esteja se afastando de vocês, Cass não quer machucar ninguém. Quando eu fiz isso, você quase me arrastou de volta para Liam e Beth — comentou, e Elisa afundou na cadeira, os mesmos olhos distantes e mais opacos.
— Não posso forçá-la a falar comigo e, mesmo que conseguisse conversar com ela, duvido que ela me ouviria. Preciso de algo melhor do que isso — disse.
— Fale com Lena, deem um jeito de se aproximar dela. Seja lá o que esteja acontecendo entre vocês duas, resolvam isso e pensem em Clarissa primeiro — sugeriu, e Elisa afundou ainda mais na cadeira, sem realmente se animar com a ideia.
« ♡ »
As palavras de Sara ficaram em sua mente, mas procrastinou para falar com Lena, imaginando como iria encará-la depois de tudo aquilo.
Uma coisa era manter tudo profissional enquanto discutiam na biblioteca, outra completamente diferente era conversar a sós com ela, encarar todos os problemas que flutuavam no ar e pareciam prestes a explodir.
Lena ainda estava trabalhando na estufa, mas continuava auxiliando o treinamento dos novatos no tempo livre, então a encontrou em uma das salas de treinamento, ajeitando as espadas.
Ela se virou quando Elisa bateu suavemente à porta, parando no meio de um giro com a lâmina. A projeção com a qual ela lutava se desfez em fumaça, mas Lena continuava segurando a espada, repousando-a no chão com cuidado.
— Podemos conversar? — perguntou, tentando não soar insegura. Lena assentiu levemente, acenando na direção das espadas no suporte. Elisa pegou uma, deixando os dedos se adaptarem ao cabo. — Clarissa precisa de você — falou, e Lena levantou uma sobrancelha, nada impressionada.
— De mim? — indagou, e Elisa surpreendeu-se com o tom seco. Sabia o que ela queria dizer, as palavras que ficaram no ar.
Se ela precisa de mim, por que está beijando você?
As lâminas cintilaram incontáveis vezes no espelho quando começaram a lutar. Elisa gostava daquilo, do modo padronizado com que se movimentavam, de sentir os pulsos e os braços trabalhando. Lhe fazia se sentir viva.
— Lena, eu sinto muito — disse a ruiva, as palavras suspiradas e pronunciadas pesadamente. Tentou olhar nos olhos dela, mas Lena preferiu manter o olhar na lâmina e em seus movimentos. — Sabe que ela se importa com você, eu também me importo. Nenhuma de nós quis que aquilo acontecesse. — Elisa sentia-se exasperada, um tanto ridícula por estar tentando melhorar as coisas. Já havia quebrado tudo, como conseguiria colar os cacos de novo?
Mais uma vez, sentiu-se um tanto estúpida por ter estragado tudo de um modo tão idiota e com tanta rapidez. Lena revirou os olhos, a lâmina bateu com mais força.
— Por favor, eu era só um obstáculo entre vocês duas. Não é mais fácil assim? — comentou ela, o tom amargo das palavras fazendo Elisa se retrair. A ruiva negou com a cabeça, incrédula e chocada com aquelas palavras.
— Você sabe que estou falando a verdade. Clarissa te ama, não ficou claro? Se não ficou, posso descrever exatamente o modo como ela te olhava, porque eu duvido que isso vá sair da minha mente — falou com um tom mais suave, mas se encolhendo de leve. Lembrava-se muito bem de como as duas se olhavam, de como Clarissa sorria e se iluminava perto de Lena.
— Você a ama e ela te ama. Por que está tentando consertar tudo? — indagou Lena, com um tom frustrado, e Elisa achou ter ouvido uma pontada de irritação ali. As lâminas retiniram, mas não estavam batendo com força, as duas focavam mais na conversa do que nas espadas.
Os cabelos ruivos refletiam-se milhares de vezes nos espelhos, assim como o brilho prateado das lâminas.
— Porque ela te ama. Porque você faz bem para ela. Porque você não saiu do meu lado até ter certeza de que eu ficaria bem e é essa pessoa extremamente dedicada e cuidadosa que nunca deixaria nada de ruim acontecer — disse, desviando a espada uma última vez e então baixando-a em sinal de rendição. Lena também baixou a espada, mas ainda não estava lhe encarando, tinha o olhar distante e duro, a mandíbula tensionada. — Quando percebi que vocês estavam juntas, foi como um soco no estômago, mas passou. Você me ajudou muito quando cheguei aqui, me puxou do fundo do poço e me mostrou que eu podia recomeçar, que eu podia ser alguém melhor. Clarissa merece alguém como você, ela precisa de você, não de mim. Por isso me afastei — confessou, e o ar foi tomado por um silêncio gélido. Não sabia mais o que dizer, Lena não respondeu. Sentiu que se afogaria naquele mar gelado de ansiedade e tensão, então deixou-se deslizar pelo espelho até que estivesse sentada no chão, olhando para baixo. — Você me odeia, não odeia? Eu entenderia se me odiasse, Deus sabe que me odeio por isso — murmurou, fechando os olhos por alguns segundos e inclinando a cabeça para trás, sentindo o vidro frio do espelho.
Mais alguns segundos de silêncio. Ouviu Lena suspirar levemente e então abriu os olhos. Ela havia se sentado no chão também, pouco distante e de frente para Elisa. Tinha apenas uma expressão vazia, o que era pior do que raiva ou qualquer coisa assim.
— Não, não odeio — ponderou, e Elisa levantou o olhar para encontrar o dela, dividida entre a surpresa e uma sensação de que todas as emoções estavam engasgadas na garganta. — Não é como se eu estivesse surpresa, como se eu não estivesse esperando por isso. Eu sabia o que estava acontecendo com vocês, sabia como Clarissa se sentia em relação a você e ela foi sincera comigo, sempre foi. Estamos em Onyx, é tolice acreditar em um relacionamento por toda a eternidade. Sempre soube que era melhor aproveitar o momento, mas... — Lena fez uma pausa, girando o anel fino que tinha no dedo. Ele tinha uma pequena pedra lapidada em seu centro, parecia ser uma jaspe vermelha. — Foi ela quem terminou tudo primeiro e quis se afastar. Foi a primeira coisa que disse quando falou comigo — concluiu.
— O quê? — Aquilo surpreendeu Elisa. Elas pareciam tão bem juntas, tudo nelas exalava tanta sinceridade e espontaneidade...
É claro que Clarissa se aproximaria de Lena depois do que fizera quando perdera suas memórias. Achava muito justo. Não culpava nenhuma das duas, nem se dava ao direito de sentir mágoa, apesar de tudo aquilo lhe atingir como uma pressão estranha no peito, todos os sentimentos se enroscando como um nó forte e esmagador.
— Ela tem estado distante desde que Sara assumiu os poderes. Disse que estava confusa e precisava de um tempo, que não queria piorar a situação e me magoar ainda mais. Quase não tenho a visto na biblioteca desde então, nem no salão de livros. Lucas disse que ela tem treinado espadas com Kenan — disse. Elisa pensou em como a loira estava agindo de forma fria, sempre lhe evitando. Clarissa não havia se distanciado apenas de Lena, mas de si também.
— Clarissa? Espadas? — estranhou, lembrando-se de todas as vezes que ouvira Clarissa reclamando sobre espadas ou lutas em geral. Ela raramente mudava de ideia sobre alguma coisa, não conseguia imaginá-la treinando voluntariamente.
— Eu sei. — Lena confirmou seu estranhamento, também preocupada. — Tem alguma coisa acontecendo. Toda vez que a encontro, que tento entender o que está errado, ela se esquiva e nunca diz nada. Não sei quanto a você, mas a Clarissa que conheci buscava consolo nos livros, não em espadas — concluiu. De fato era alarmante que ela estivesse se afastando da biblioteca, do seu trabalho com os livros, com o qual estava tão empolgada. — Achei que você soubesse de algo, porque nada disso parece normal para mim. — Elisa negou com a cabeça. Também não conseguira falar com Clarissa depois do episódio estranho do beijo, não mais do que algumas poucas palavras.
— Você acha que Azazel... — começou, estremecendo ao olhar para as espadas apoiadas no espelho. As espadas do treinamento eram inofensivas, mas aquilo ainda lhe deixava enjoada quando se lembrava das cenas que Kathy havia lhe mostrado.
— Talvez. Não tenho como dizer — disse, ainda com aquele ar preocupado e longínquo. Era mais do que claro que ela estava preocupada com Clarissa, mas também cansada de tentar entender o que estava acontecendo. — Você consegue alcançá-la de um modo que nunca consegui, talvez consiga falar com ela e entender o que está acontecendo — falou, levantando-se. Milhares de reflexos a seguiram quando ela foi em direção às espadas encostadas no espelho, pegando-as com cuidado para guardá-las no suporte de madeira ao lado da porta.
Ela estava encerrando a conversa ali, Elisa percebeu.
Antes que Lena pudesse lhe deixar sozinha, Sara surgiu na porta, os olhos mais obscurecidos do que o normal. Elisa achava que nunca se acostumaria com aquilo, com aquele poder tão demoníaco e puro surgindo dela e se espalhando ao redor como ondas.
— Preciso mostrar uma coisa — disse, caminhando até o centro da sala de espelhos. Seus cabelos negros eram refletidos infinitas vezes, com um brilho sedoso enquanto balançavam nas costas e contra a pele pálida.
Ela parou por um segundo, sem olhar para Lena ou Elisa.
De um momento para o outro, os espelhos começaram a escurecer da borda para o centro, em um degradê que tomava todo o vidro. A sala começou a esfriar repentinamente, fazendo até mesmo Lena se encolher, os braços ao redor do corpo.
Os espelhos estavam completamente escuros, cobertos por uma névoa que se estendia para um infinito e lhe dava a sensação desesperadora de estar caindo na escuridão. Lena e Elisa trocaram olhares, confusas e preocupadas.
— É um portal, só passa quem eu permitir. Se souber onde Azazel está no momento exato, posso trazê-la para cá — afirmou Sara, com satisfação.
Elisa sentiu um desespero frio dentro de si, mas sorriu, convencida de que aquilo era um avanço.
« ♡ »
— E então? Como foi? — perguntou Sara, assim que ficaram sozinhas no quarto dela. É claro que ela estava curiosa para saber como fora a conversa com Lena.
Elisa fez uma careta e bebeu do líquido doce, observando-o balançar e cintilar dentro da garrafa de vidro.
— Não tão ruim quanto eu esperava, mas ruim. Pelo menos ela não me odeia tanto quanto imaginei — suspirou, observando o lustre elegante que cintilava sobre o teto.
O quarto de Sara se parecia com ela, todo requintado e sofisticado: A cabeceira da cama tinha detalhes esculpidos em madeira preta e pesada, a escrivaninha fora preenchida com belas canetas douradas e porta-retratos cheios de arabescos metalizados. A maioria das fotos era com Bethany e Noah, algumas tinham Liam e Eric, Elisa vira até mesmo uma do ensino médio, exibindo o quarteto que costumavam ser: Sara, Camila, Sofia e Elisa lado a lado, sentadas embaixo de uma árvore no gramado da escola.
O lugar seguia um padrão monocromático, branco e preto com um brilho dourado nos detalhes, elegante e minimalista, nada simples, mas também nada muito chamativo. Tudo parecia organizado em seu devido lugar, diferente do quarto da ruiva, um caos de véus, almofadas e mantas cor-de-rosa num mar de branco.
— Como isso aconteceu, aliás? Sei que você e a Cass vão e voltam o tempo inteiro, mas você disse que estavam muito bem quando conversamos antes de eu abrir o portal — perguntou Sara, se revirando da cama para lhe encarar.
Enquanto ela estava deitada de barriga para baixo, virada para os pés da cama, Elisa estava encolhida em um sofá da mesma madeira preta da cama, estofado com grandes almofadas de veludo branco.
A ruiva hesitou um pouco, as lembranças assombrando seus pensamentos. Asmodeus. O olhar furioso de Clarissa. O modo como ela parecia decepcionada. As palavras horríveis que tinha dito para ela ao defendê-lo.
— Eu a magoei. Fui horrível com ela — disse, por fim. Não queria adentrar mais o assunto, não quando só as memórias lhe davam enjoo. — Eu... Não estava sendo exatamente eu mesma, mas mesmo assim. Cass parecia disposta a me perdoar, mas achei que precisaríamos de algum tempo, pelo menos eu precisava. Foi quando ela se aproximou de Lena — relatou, pensando em quando começara a notar os olhares demorados entre as duas, as mãos dadas por baixo da mesa e as conversas sussurradas. — Mas e você e Liam? Não ache que eu acreditei completamente no que você disse sobre o término — pediu, ansiosa para desviar o assunto.
Viu Sara vacilar por um momento, a mão dela encontrou o relicário no pescoço. Ela apenas deslizou os dedos pelo pingente, como se bucasse sentir cada relevo esculpido na prata.
— O que eu disse é verdade, pelo menos parte dela. Acho que as coisas desandaram de vez quando ele descobriu uma forma de eu abdicar dos meus poderes. Pelo que vi, o ritual desmancharia meus poderes e qualquer elo sobrenatural que eu tivesse, inclusive os infernais — começou Sara, mexendo de forma inquieta no colar. Elisa surpreendeu-se. Por que ela ainda tinha os poderes, então? Por que ela continuava ligada aos poderes demoníacos, se... — Liam pediu se eu queria tentar, sempre me deu escolha, sempre disse que era uma opção e que eu não precisaria fazer se não quisesse. Era algo muito específico, um eclipse raro em um local no México, uma chance que nunca mais apareceria. É claro que aceitei, claro que me empolguei. As coisas estavam calmas, essa era a minha única chance de deixar tudo para trás, ser apenas humana e nunca mais precisar ser a filha de Lúcifer ou qualquer coisa assim — disse, e Elisa compreendeu. Não ser mais a filha de Lúcifer. Nunca mais ser cercada por morte e criaturas demoníacas. Nunca mais ser engolida pelo medo. — Viajamos para um local isolado no México, só eu e ele, as crianças ficaram com Naomi e Rafael. Chegando lá, eu desisti no último momento, pensando em Beth e Noah, pensando que, se eu não tivesse meus poderes para ajudá-los se necessário, ou pior, se algum dos dois precisasse assumir meu lugar e acabassem ligados à dimensão infernal... Eles eram apenas crianças, eu nunca me perdoaria — falou, a voz vacilando por um segundo. — Falei para Liam que precisava dos poderes para protegê-los, mas é claro que ele notou algum motivo a mais. Finalmente eu contei que estava ligada à dimensão infernal, que meus poderes também eram correntes e que não queria, não podia correr o risco de Beth ou Noah tomarem meu lugar. — Ela estremeceu, se encolhendo levemente contra o lençol e apertando o relicário com força. — É claro que ele ficou furioso. Furioso porque eu tinha escondido isso por anos, porque eu assumi o lugar do cara que assassinou nosso filho e não disse uma palavra, furioso porque deixei passar a única chance de me livrar disso — murmurou ela, ainda sem encarar a ruiva, brincando com o relicário como se para criar coragem. — Eu poderia ter abdicado meus poderes, poderia ter tido meu felizes para sempre, me tornado humana e aproveitado uma viagem romântica para o México, mas Beth... — engasgou-se, estremecendo com a ideia. Elisa pensou nas palavras de Asmodeus. Se ela não assumir, a filha dela assume.
Elisa sentiu os próprios olhos arderem com lágrimas que piscou para afastar. Pensou nas coisas que ela abrira mão pelos filhos... Ela sempre quisera estar longe de tudo isso, não ser mais a filha de Lúcifer, mas nem ao menos hesitara em abrir mão disso por uma mínima possibilidade de afetar as crianças.
Elisa se levantou do sofá e deixou-se cair na cama ao lado dela, próxima o suficiente para sentir a onda fria de poder circulando Sara.
— Você é incrível, sabia? — murmurou, abraçando-a. Sara riu de forma cansada, suspirando baixinho.
— Não, eu sou só... a mãe deles — disse, dando de ombros com um olhar preso nos cristais cintilantes do lustre. — Depois disso, nós nunca mais fomos os mesmos. Eu queria explorar meus poderes, entender o que estava adentrando, entender o que era de fato ser uma líder infernal. É claro que ele odiava tudo isso. Liam tentava entender e ser compreensivo, mas eu percebia quanto o incomodava quando usava meus poderes. Ele me sufocava, eu o sufocava. Sentamos para conversar e combinamos que, se não conseguíssemos melhorar em uma semana, então nos separaríamos. Aqueles sete dias foram nossa última chance de dar certo, mas a verdade é que eu estava procurando um novo apartamento antes da semana acabar — confessou, e agora as duas estavam deitadas lado a lado, as mãos dadas enquanto afundavam no colchão macio.
— E você não pensaram em voltar depois disso? Vocês me pareceram tão próximos, tão... — íntimos, pensou Elisa, mas não complementou.
Sara ficou distante por um tempo, como se estivesse pensando na resposta.
— Falamos sobre isso, é claro que falamos, mas não é o que queremos. Depois que nos separamos, percebi que precisava de mais liberdade e espaço, eu já tenho dois filhos, não preciso de mais um marido para dar satisfação — disse, com um riso baixo e rouco. — Além disso, Liam já está saindo com outra pessoa, então... O que quer que tínhamos antes, aquelas recaídas ocasionais, acabou faz um tempo — complementou. Ela deixara o relicário de lado, mas os olhos estavam colados em um porta-retratos em que havia uma foto sua com Liam, ambos sorrindo e sentados na areia da praia, Sara envolvida nos braços dele. — Nos primeiros dias no apartamento novo, eu odiei completamente. Odiei o silêncio, odiei a solidão, odiei tudo, quase liguei para Liam no meio da noite pedindo para voltar para casa. Depois o apartamento foi preenchido por Beth e Noah, foi ganhando vida e eu percebi que estava muito bem. Fiquei com medo de me desfazer completamente, de me perder sem ele, já que Liam era toda a estabilidade e vida que eu conhecia, mas percebi eu precisava disso, de descobrir quem eu era sozinha, reestabelecer meus próprios gostos e me conhecer de forma individual — contou, e Elisa podia entender aquilo. Era ótima a sensação de se redescobrir individualmente, sentiu isso quando chegou em Onyx, quando se separou de Rafael e descobriu que não precisava ser uma sombra sem ele. — Além de tudo isso, nós nos casamos e tivemos filhos muito cedo, ele não tinha nem trinta anos e eu o deixei sozinho com um recém-nascido e uma criança de dois anos. Beth e Eric foram uma surpresa, mas Noah era um compromisso que assumimos juntos, nós trabalhamos duro para isso. Eu fui lá, destruí todo o futuro que planejamos juntos e sumi por cinco anos. Mesmo que ele diga que não, é claro que guarda mágoa por causa disso — concluiu, desta vez com um tom incomodado. Desviou os olhos do porta-retratos, Elisa apertou mais forte sua mão, notando a falta da aliança no meio dos dedos.
Ficaram em silêncio por algum tempo, a ruiva tentava processar todas aquelas informações enquanto enxergava Sara de um novo jeito. Ficava tão feliz em conhecê-la de novo, tão feliz ao perceber que toda a distância e a falta de comunicação não afetava o relacionamento que tinham.
Costumava ser muito próxima de Sara, tê-la como irmã e confidente, sentia falta de se conectar com alguém assim. A única pessoa que chegara um pouco próxima disso, que lhe vira nos piores momentos e lhe conhecia muito bem, era justamente... Lynn.
Elisa estremeceu, tentando mudar o foco dos pensamentos antes que aquilo pesasse demais. Virou-se de lado para encarar Sara, as palavras dela pesando no ar.
— Isso é... — começou, mas não encontrou palavras. Em vez disso, sorriu e levantou as sobrancelhas. — Não é a toa que você diz que pareço ter quinze anos quando reclamo dos meus problemas amorosos — disse Elisa. Sara riu com humor, desmanchando aquele ar pesado que o relato trouxera.
— Só porque você faz com que eu me sinta uma idosa com todos esses romances incríveis — comentou, e isso fez com que Elisa gargalhasse. Sara cruzou os braços com seriedade, esforçando-se para fingir uma expressão ultrajada. — É sério, não dê risada! Minha vida amorosa depois do Liam é quase inexistente — reclamou, mas também não conseguiu segurar a gargalhada e as duas riram juntas. De repente, a ruiva arregalou os olhos brilhantes, a empolgação flamejando na face.
— Você poderia mudar isso aqui — sugeriu Elisa, abrindo um sorriso largo. Sara ergueu uma sobrancelha com desdém, então revirou os olhos quando viu que Elisa continuava sorrindo. — Não revire os olhos assim! Eu vou ser um cupido incrível! — exclamou a ruiva, colocando-se de joelhos na cama, pulando como uma criança empolgada.
Sara fez uma careta, nada impressionada.
— Até onde eu sei, essa dimensão é de querubins, tente a próxima e me deixe em paz com minha vida amorosa medíocre — disse ela, inclinando-se para pegar a garrafa de vidro com o líquido dourado. Ela encheu as duas taças que Elisa havia trazido, a ruiva continuava ajoelhada no colchão quando Sara lhe deu uma.
— Isso é um desafio, Sara Campbell? — perguntou. Sara apenas sorriu com ironia e levantou a taça, como se em um cumprimento. — Você não vai se livrar de mim tão fácil, vou tomar isso como um desafio pessoal! — prometeu a ruiva. Sara levantou as sobrancelhas e bebeu da taça, o líquido dourado cintilando em seus lábios cheios de sarcasmo.
— Por Deus, você realmente está precisando de uma distração, não está? — zombou ela. A ruiva suspirou e deixou-se cair ao seu lado na cama, com cuidado para não derrubar a bebida.
— Sim — assentiu Elisa, muito seriamente, e as duas riram novamente.
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