Prólogo
[PRÓLOGO]
A NOITE.
A luz do luar entrava prateada por uma cúpula de vidro fino, adornada de vitrais coloridos que representavam passagens religiosas e iluminavam um altar de mármore antigo e sujo. O lugar tinha paredes de pedra, gélidas. As janelas possuíam os mesmos vitrais da cúpula, dando uma visão um pouco distorcida do mundo exterior. A vista da última câmara de uma torre alta em meio a tundra, era esplendorosa, no mínimo. As constelações perdiam-se no horizonte, cores se misturando de pouco em pouco ao breu da noite. Mas a atenção d'A Mulher estava longe dos longos vales verdejantes que contornavam aquele céu.
Os passos dela foram abafados pela madeira rangendo no chão, já um tanto apodrecida. As goteiras pingavam sem pressa, deixando um cheiro envelhecido e fétido. A chuva do fim de tarde fora forte e derrubou algumas árvores na serra mais alta do vale, a umidade do ar destrutiva para a estrutura de madeira infestada de cupins, derramando grossas gotas de sereno por entre as rachaduras na pedra. Pequenos animais guinchavam, correndo e se escondendo nas tábuas soltas do assoalho.
Ela caminhou para o altar cautelosamente. O frasco que tinha em mãos era perigosamente pesado, não só pela massa do líquido. O peso do que aquela mistura significava em uma sociedade escondida há séculos... Estava quase concluído. Tão perto de conquistar a glória que seu mestre jamais teve oportunidade, ela se permitiu erguer os lábios em um sorriso orgulhoso. As mãos deixaram o vidro frio sob o raio central de luar que entrava pela cúpula.
A hora chegava, a Lua não brilhava tão ferozmente desde que a mulher ainda era jovem e humana. Mais de um milênio, se já não tivesse perdido as contas.
Usando o próprio éter, ela poderia finalmente dar à mistura espessa o propósito que demorou séculos para completar. A missão que a tomou uma vida. Mais de uma.
O mundo aquietou-se.
Nem mesmo o zumbido insistente do silêncio ousou se sobrepor ao momento. As goteiras silenciaram, o som do vento chicoteando a torre foi substituído pela tensão, que se espalhou em uma onda desenfreada e até mesmo os animais que murmuravam por entre o vale pararam para prestar atenção, protegendo suas crias. Ela buscou com o olhar, a floresta em que a torre em ruínas havia sido construída, tão alto que as nuvens cobriam a tundra. Tão antiga quanto o próprio tempo.
A mulher conseguia sentir o cataclismo, o poder que deixou a natureza em silêncio.
Palpitava em seu próprio sangue, tremeluzindo como fogo.
Ela sorriu com o canto dos lábios, satisfeita.
O frasco borbulhando ruidosamente chamou sua atenção, deixando um vapor translúcido escapar pela abertura afunilada. O odor que preencheu a câmara era comparável ao de uma feira inteira de temperos, quente como o crepitar de chamas. O vapor se transformou em névoa e a mulher fez menção de dar um passo à frente, os músculos tensionados de maneira que cada movimento parecia lento e doloroso. Ela tateou o vidro com cuidado, esperando que o frasco estivesse flamejante. Mas não. Encontrou apenas o pulsar confortável de poder e vitória.
Enquanto a névoa se dissipava junto ao cheiro pelo vale, A Mulher contornou a mistura com os dedos longos e esguios, tão ansiosa que temia deixá-la cair. Tampou o frasco com a rolha, protegendo o líquido que emitia uma luz tênue e azulada.
Tinha conseguido.
Em suas mãos, estava uma revolução.
A mulher se permitiu relaxar pela primeira vez em muito tempo. Permitiu que seus ombros caíssem com o cansaço e que um suspiro sofrido irrompesse dos lábios. Um ínfimo momento de paz em meio a tempestade. Poderia dormir um ano inteiro...
Ela se obrigou a endireitar a postura e manter o longo sobretudo escuro junto ao corpo, sentindo o desconforto da fome e da sede. Já foi forte outrora, mas tudo o que restava dos músculos torneados, cultivados durante anos, eram lembranças. Precisava de uma cama confortável e de comida decente. Talvez um cálice de sangue quente e fresco.
A mulher sopesou suas alternativas por um momento. Sem ousar se mexer, manteve a respiração inaudível, os pés fixos na madeira, sentindo as vibrações percorrendo a fibra porosa. Ouviu o gotejar nos andares mais baixos, a água que encontrava passagem pelos vitrais da cúpula. O som de uma respiração pesada a andares de distância provocou um arrepio. A sutileza a fez prestar atenção uma segunda vez, duvidando dos sentidos aguçados por tempo suficiente para reparar no escorregar de passos na escadaria, tão leve que mal ecoava na madeira.
Ela trincou o maxilar.
Perdera um tempo precioso ao dar o benefício da dúvida ao som.
Três deles, no mínimo. O cheiro de podridão e suor a inebriou de tal maneira que seu estômago pesou. Talvez, se tivesse ingerido algo nos últimos três dias, teria deixado o conteúdo para apodrecer junto à madeira. A Mulher engoliu em seco fechando o zíper do bolso interno, a protuberância do frasco tocando a camiseta. Ela abotoou o botão central, aguardando. Se acostumou bem às vestimentas do século, apreciando o conforto e a praticidade. Caminhou em direção a janela de vitrais mais próxima, sem se preocupar com as botas rangendo na madeira. Já foi descoberta... E podia se permitir um momento de diversão, o sabor da revolução que se montava.
Perseguida por tanto tempo... Ela veria o medo no olhar deles e se deliciaria.
Observou a paisagem pelo vidro colorido, os olhos atentos às nuvens esbranquiçadas e as estrelas acima. Era cômico que a caçaram até o fim do mundo, que a destruíram em pontos que jamais esqueceria, apenas pelo que agora sentia pulsar junto ao corpo.
A mulher escutou quando os três seres surgiram sobre os últimos degraus da escadaria espiralada, os pés mal tocando a rocha velha, em alerta. O homem ao centro sibilou para o capuz do sobretudo, os olhos brilhando em um tom de carmim. Não era necessário que vissem o rosto dela. Aquele cheiro... Aquele odor pungente de castanhas e frio.
Apenas um ser em toda a Terra poderia ter um cheiro tão específico.
— É bom saber que o filho da puta do Realblood tem tanto medo assim de mim. — Ela tossiu uma risada, sem ousar tirar os olhos da janela. As mãos estavam enfiadas bem fundo nos bolsos, a fim de sentir o conteúdo e mascarar o cheiro com o dela.
— Insultar o Conde não tornará seu destino menos cruel. — O homem murmurou, a voz aveludada soando como um eco de outras vidas.
— Ah, estou ciente disso. — Caçoou ela. — E vocês, como os Cães de Caça bem mandados que são, me levarão para que seu Conde o exponha como um troféu no salão principal. Isso se tiverem coragem para fazer mais do que cortar minha pele. — A Mulher fez menção de se virar, os passos lentos, não passando de uma ideia.
— Do que te interessa? Estará sangrando e sem vida antes que possa mostrar os dentes. — Uma voz estridente, carregada de ódio e rispidez, ecoou de outro dos três seres. Feminina e poderosa, admitiu. Um tom que ela conhecia muito bem.
— Natalie Gayu-Realblood. — A Mulher estalou a língua no céu da boca, agora com o corpo tensionado e uma pitada de humor na voz. Fez questão de pronunciar cada palavra lentamente, saboreando. — A princesinha do Conde... Devo me curvar à sua presença, Viscondessa? — A mulher mostrou todos os dentes em um sorriso que teria arrepiado qualquer ser humano. Os caninos se alongaram, ameaçadores.
— Você morrerá LENTAMENTE e apodrecerá no fogo das estrelas. Reze à Mastar que meu pai não a faça implorar pela vida! — Natalie se adiantou, o olhar furioso mortalmente controlado nas íris amarelas. Seus cabelos, tão claros quanto o luar em prata, mais do que os da fugitiva, ladeavam o rosto inegavelmente belo e imortal, pingando desprezo. Os outros deram um passo à frente e o ar pesou a volta dos quatro, tensionando, dobrando-se ao ódio dos cães de caça.
— Sabe qual é o pior defeito dos Realblood, princesinha? Vocês falam demais.
A mulher, com a agilidade e a precisão imortais, ainda escondendo o rosto no capuz do sobretudo escuro, se jogou com as costas contra o vitral da janela. O vidro, fino como papel, se estilhaçou até não passar de pó e ela despencou vinte metros como uma bala em direção às árvores de copas altas que cobriam a serra. As nuvens frias arrepiaram todos os seus pelos.
Os Cães de Caça mal tiveram tempo para a segurar ou cortar seu pescoço antes que estivesse longe do alcance de suas mãos. Os três rosnaram alto, a amaldiçoando, os xingamentos interrompendo o murmúrio baixo da floresta. Que aquela vadia quebrasse o pescoço antes que o corpo respondesse à queda...
Natalie buscou com o olhar atento entre as copas, algum sinal do corpo da mulher, um rastro de sangue... Farejou o ar profundamente, rastreando o cheiro. Mas não havia nem sinal de castanhas ou do frio dela. O único frio no ar vinha da umidade das nuvens e da floresta, o cheiro do estrume de animais, de pelo molhado e folhas apodrecendo.
Ela escapou, protegida pela natureza da tundra, mascarada com o cheiro do mundo.
E carregava consigo o caos, a mudança e a reconstrução, em um líquido brilhante. Tão poderoso quanto o cataclismo liberado assim que a Lua de Prata tomou o ponto mais alto no céu.
Poder chamando poder, reconhecendo seu semelhante.
Que Mastar protegesse a Terra do que estava a caminho.
[NOTAS]
Oiie mis milhos pra pipoca! Como estão? Estou bem e melhor agora que o prólogo desta história está postado! Quais são as primeiras considerações de vocês? Bem misterioso, concordam? A Mulher é uma personagem muito ambígua neste livro e espero conseguir passar todas as facetas dela pra vocês. Antes que perguntem, sim, a história é ambientada no planeta Terra atual, garanto que entenderão tudo direitinho ao recorrer da história.
Deixem suas opiniões e teorias nos comentários e não esqueçam de votar e me seguir nas redes sociais, vai me ajudar horrores! Até domingo!
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