CAPÍTULO OITO:Monstro
Acordei no meio da noite com o som de um assobio ecoando no corredor. Trinquei os dentes e me sentei na cama, ainda um pouco sonolenta e com as pálpebras pesadas. Estiquei a minha mão e peguei o meu relógio de pulso que estava abandonado na pequena escrivaninha posta ao lado da minha cama. O ponteiro marcava 2:30 da madrugada. Escancarei as outras camas para ver se as garotas estavam tão assustadas como eu, entretanto todas estavam cobertas dos pés à cabeça e a falta de luz impediu que eu inspecionasse com mais calma. Apenas um leve reflexo do luar que estava atrás de mim iluminava um pouco de luz na escuridão e olhei para a porta. O que estava acontecendo?
Do lado de fora o assobio continuava em um tom melancólico, cantarolando em notas musicais muito baixas e precisas. Alguém assobiava o que eu deduzi ser uma canção de ninar. A voz era tensa, grave e o assobio era afinado. Havia uma certa tristeza naquela voz.
Enquanto o estranho assobiava no corredor a chuva lá fora estava cada vez mais violenta. Uma chuva que caía com força em longas e furiosas rajadas. Eu respirava de forma rítmica e uma leve camada de suor cobria o meu rosto. Com uma súbita fúria um barulho nas paredes estremeceu o local. Alguém batia nervosamente nelas. Levei a mão ao coração assustada e olhei ao meu redor. Todas as meninas estavam tão assustadas como eu. O medo pairava no ar e eu senti um leve calafrio na espinha.
— O que está acontecendo? — eu perguntei em um sussurro. As batidas continuavam cada vez mais rudes. Uma voz masculina bradou um rugido terrível que me fez me encolher na cama.
— Voltem a dormir — Luiza balbuciou e eu tive que ler os lábios dela para entender.
Do outro lado do quarto Laura tremia e se revirava na cama. Anita — que estava na minha frente — parecia pálida com os lábios secos e os cabelos grudados no pescoço por causa do suor. Cida seguia o mesmo exemplo de Laura e estremecia à medida que as batidas e passos eram cada vez mais bruscos. Apenas Luiza tentava manter a tranquilidade, porém o seu rosto estava sem cor, praticamente sem vida, e os seus olhos estavam esbugalhados e atentos a cada movimento.
As batidas foram se aproximando cada vez mais do nosso quarto e elas esvaíram-se ao chegar no dormitório. Era possível ver que alguém estava atrás da porta. Respirei fundo, tentando encher de ar os meus pulmões. Ninguém se mexia. Qualquer barulho, qualquer gemido poderiam nos colocar em perigo. Já que não sabíamos quem estava atrás da porta, ou sabíamos? Olhei para o rosto das minhas companheiras de quarto. Elas estavam em choque, aquilo nunca tinha acontecido antes.
A maçaneta da porta girou. Imediatamente todas nós nos encolhemos na cama. Me embrulhei dos pés à cabeça e apenas os meus cabelos ficaram expostos.
Abracei o meu corpo embaixo da coberta. Cerrei os olhos e mordi a língua para não sair nenhum som da minha boca. Senti o gosto metálico do sangue descer queimando a minha garganta e engoli em seco. A porta se abriu gemendo nas dobradiças enferrujadas e passos sorrateiros adentraram no lugar. Encolhi-me ainda mais e tentei imaginar algo bom, mas o meu cérebro não me obedecia e eu fui inundada de pensamentos assustadores. Senti frio. Era como se um ar gelado tivesse atravessado o tecido grosso do cobertor e atravessado a minha têmpora. Um gemido assustado escapou e eu tapei a minha boca com força pressionando o meu rosto contra o travesseiro. Estiquei ainda mais o cobertor e o pressionei em baixo da minha cabeça impedindo que a minha face fosse revelada.
Foi quando eu ouvi os passos sutis se aproximarem de mim e pararem ao lado da minha cama. Os passos eram tão leves no chão que somente um bom ouvido poderia escutá-lo. Era como se ele não quisesse acordar ninguém, mas o seu plano havia dado errado, e aqui estava eu, encolhida embaixo da coberta feito um cordeiro se escondendo do lobo faminto pronto para me devorar.
Eu conseguia sentir a sua presença me observando. Eu conseguia sentir os olhos dele me fitando contra a coberta. Os pelos do meu braço se arquearam. Meus lábios ainda secos e o gosto de sangue na minha língua. Rezei mentalmente todas as orações que eu conhecia para afastar aquela assombração de mim. Pensei que ele fosse me tocar. Retirar a coberta do meu rosto e finalmente olhar nos meus olhos. Ao invés disso, apenas a sensação dos olhos dele em mim, ficou. Ele correu e fechou a porta com força. Acho que percebeu que nenhuma de nós estava dormindo, mas sim apavoradas com a sua presença. Um pensamento bobo, eu sei, já que parecia que ele queria mesmo nos assustar com aquelas batidas violentas na parede. Aquilo era uma espécie de jogo para ele? O que queria? Nos matar de medo?
Respirei aliviada com a partida dele. Nunca tinha sentido tanto medo. Quando ele saiu senti os meus músculos relaxarem e sentei na cama afastando o cobertor.
Vi as meninas fazerem o mesmo. Todas se entreolharam com um pouco de medo presente em seus rostos.
— Ele nunca entrou no nosso quarto — Cida sussurrou nervosa.
— Verdade. — Luiza balançou a cabeça vagarosamente. — O que ele queria?
— De quem estamos falando? — perguntei baixinho com medo que ele voltasse. — Ouvi boatos na lanchonete da cidade de que o internato era mal-assombrado. Isso é verdade?
As quatro trocaram olhares e depois Luiza desembuchou:
— Sim — a voz dela estava cansada. — Os primeiros dias foram difíceis, mas acabamos nos acostumando com os barulhos. Passamos até ignorar, já que ele nunca se aproximou de nós e nunca machucou ninguém. A cidade toda é estranha. Cheia de lendas. O padre Lázaro e as irmãs não acreditam que o internato é mal-assombrado. Eles dizem que como o prédio é antigo é natural ouvir barulhos e rangidos. É claro que eles nunca vão acreditar na gente. Eles dormem na casa paroquial, e lá o fantasma não vai.
— E vocês se acostumaram com isso? — perguntei indignada, porque se todas as noites fossem como está certeza que eu fugiria para bem longe daquele lugar.
— Não — Cida se intrometeu —, a maioria das noites são tranquilas. Não é sempre que ouvimos barulhos. E o que aconteceu hoje nunca tinha acontecido antes. Monstro nunca entrou no nosso quarto daquele jeito antes.
— Monstro — falei baixinho quase como um sussurro. Aquele era o nome que eu tanto perguntara e tinha sido ignorada.
— É assim que nós o chamamos — Luiza falou me olhando um pouco atormentada por causa dos acontecimentos recentes.
— Uma das garotas o viu uma vez. Ela já se formou, mas nos contou que a aparência dele é horripilante.
— E vocês convivem com isso e não fazem nada? — indaguei.
— E você queria que fizéssemos o quê? — Cida perguntou com o cenho franzido. — Não temos como fugir. Não temos como voltar pra casa. O padre e as irmãs não acreditam na gente e ninguém aqui sabe fazer um exorcismo. Você sabe por acaso?
Eu balancei a cabeça. Não, eu não sabia fazer um exorcismo e eu nem sabia se nesse caso era disso que precisávamos. Encolhi os ombros e abaixei a cabeça envergonhada. Cida tinha razão. O que um bando de pirralhas poderia fazer? Expulsar o fantasma a pontapés? Claro que não. De fato, ele iria rir das nossas caras de bobas.
— Não há o que fazer — Luiza ponderou seriamente. — Você terá que aprender a conviver com isso, Sofia. Notei que você é cristã e que carrega um crucifixo no seu pescoço. Peça para que Deus nos proteja.
Apertei a joia que a minha mãe havia me dado. Eu certamente pediria.
Anita parecia nervosa com aquilo tudo, mexendo de forma impaciente nos seus cabelos lisos e negros. Se a minha teoria estivesse certa ela era irmã da vítima do assassino que agora assombrava o internato. Os olhos dela estavam vermelhos. Eu percebi através do seu olhar de pânico o quanto aquela situação deveria ser terrível para ela.
— Vamos dormir, temos que acordar muito cedo e só nos sobrou poucas horas de sono — Cida falou.
Eu assenti puxando os lençóis e cobrindo o meu corpo até que um grito agudo nos pegou de surpresa.
Me ajeitei na cama assustada. Anita colocou a mão na boca abafando um gritinho. Meu coração saltou e eu senti um calafrio e o pavor voltarem ao meu corpo. Minha cabeça começou a latejar ao perceber que os gritos não acabavam. Alguém estava em apuros:
— Socorro! — uma voz feminina gritou. — Me ajudem!
— O que aconteceu? — perguntei olhando para as garotas.
— Alguma desavisada deve ter ido ao banheiro e dado de cara com o fantasma — Anita falou de um jeito duro com o maxilar tenso.
— Socorro! Alguém me ajude! — ela continuava a gritar e o peso da sua voz esmagou os meus pensamentos.
— Temos que ajudá-la! — gritei exacerbada. Laura me olhou espantada. Até eu me assustei com a minha súbita coragem.
Levantei da cama enquanto os gritos ecoavam. Acendi a minha lamparina e olhei mais uma vez em busca de uma alma corajosa. Eu não conseguiria dormir com alguém gritando lá fora. Se algo acontecesse eu jamais me perdoaria. Eu não era corajosa, mas naquele momento reuni toda a adrenalina do meu corpo e obriguei os meus pés se mexerem. Calcei os meus sapatos e respirei fundo voltando a minha atenção a lamparina e aos gritos contra a porta.
—Não seja burra, Sofia! — Anita berrou.
Como elas conseguiam ficar ali enquanto alguém precisava da nossa ajuda? Cada vez mais os gritos da garota me incomodavam. Fui tomada por um sentimento de dever e também de curiosidade. Comecei a arrastar os meus pés até a porta. Anita murmurou algo e voltou a dormir enquanto as demais observavam a minha caminhada.
Minha visão ficou turva. A mão que segurava a lamparina pesada demais. E os gritos da garota já não eram mais tão audíveis. Ao invés disso, ouvi um zumbido e de repente a voz da minha mãe falava dentro da minha cabeça. Ela sussurrava uma oração.
Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.
Dei mais um passo firme no chão. O grito da garota estava cada vez mais alto.
Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.
Mais um passo rumo à porta, desta vez os gritos se esvaíram–se, e soluços altos batiam contra a porta. A voz da minha mãe orando ainda estava nos meus pensamentos.
Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia. Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.
Minha mão tocou a maçaneta frouxa e a empurrou. Sussurros atrás de mim me amedrontavam e os meus pés não queriam se mexer. "Coragem" sussurrei para mim mesma com o meu coração quase saltando do meu peito. Eu me perguntara se o monstro poderia ouvir as batidas pesadas do meu coração. Pulsando dentro de mim.
Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido.
Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios.
Quando eu saí do quarto uma lufada de ar quente roçou o meu rosto de um jeito feroz. Virei-me em direção ao banheiro. Escuridão. Fui pega por uma vasta escuridão. Até que vi um ponto vermelho brilhando. Era os cabelos dela, deduzi. Me aproximei ainda mais da menina que estava agachada com a cabeça entre as pernas inclinadas. Ela soluçava muito alto.
Porque tu, ó Senhor, és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação.
Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.
Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra.
Me aproximei dela e inclinei o meu corpo.
— Está tudo bem — eu tentei acalmá-la. — Vou te levar até o seu quarto.
Estendi minha mão para ela. Nem consegui analisar o seu rosto, já que os seus cabelos cor de fogo tampavam alguns traços da sua face. Ela tremia, eu soube quando os meus dedos foram de encontro com os dela. Sua pele era fria e os seus olhos estavam sem vida. Ela sim tinha a aparência de um fantasma.
— Vai ficar tudo bem — eu disse me sentindo mais forte.
— Não vai não. — Ela apontou para trás de mim com uma expressão de pânico e gritou tão alto que eu pensei que ficaria surda com tamanho barulho.
Meu corpo não quis virar para olhar para ele.
Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente. Porquanto tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque conheceu o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei.
Um palhaço. Era um palhaço. Com sapatos e tudo. Ele usava um macacão branco com algumas listras vermelhas e era alto, muito alto. A parte clara da sua roupa estava imunda e os sapatos encardidos, sujos de lama. O rosto dele estava coberto com um saco de estopa, apenas um par de olhos cinzentos cercados de cílios espessos estavam expostos em dois furos. Logo abaixo havia outros dois furinhos no nariz, e um sorriso macabro costurado com linhas negras no que eu imaginei ser os seus lábios. Apenas isso, mais nada. O seu rosto era apenas aquele sorriso costurado e estranho e aqueles olhos frios que agora me olhavam com curiosidade enquanto ele inclinava a cabeça para o lado, me observando de um jeito bizarro.
Aqueles dois olhos me tiraram o fôlego. Eu não conseguia respirar, senti todas as forças que eu havia captado minutos atrás saírem, elas foram embora do meu corpo me deixando fraca e impotente. Meu corpo estremeceu e a minha vista começou a ficar turva, por conta da fraqueza. Meus músculos não obedeciam às minhas ordens de se mover. Eu estava paralisada diante daquela figura peculiar, mas não parecia ser só eu que estava assim. Ele também me olhava com estranheza. Havia algo nos olhos dele, algo que eu jamais conseguiria explicar. Seria dor? Por que ele não fazia nada? Por que ele não correu ou nos fez algo? Nada. Ele apenas continuou ali parado me encarando, sugando toda a minha força.
Fartá-lo-ei com longura de dias, e lhe mostrarei a minha salvação.
A voz da minha mãe sumiu. A oração chegou ao fim. Minha cabeça latejava com tantas vozes: o murmúrio da garota ruiva, os zumbidos vindos do meu quarto, a voz da minha mãe... A minha vista foi ficando cada vez mais turva, e a imagem de monstro, ali parado, me olhando foi se desfazendo aos poucos. Aqueles olhos inflexíveis e curiosos, o meu coração foi se encolhendo no meu peito. O som da lamparina se espatifando no chão foi a última coisa que eu me lembro.
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