CAPÍTULO DOZE:Encurralada
Não falei para ninguém sobre o que aconteceu na piscina. Saí do prédio atordoada com vários pensamentos me assombrando. Monstro. Ele me salvou. Como isso aconteceu? E por que ele pulou na piscina para me resgatar?
É claro que ele havia sido o motivo de eu ter caído na água. Assim que eu vi o seu rosto no reflexo, meu coração pulou do meu peito e eu fiquei um pouco tonta. Quando vi já estava quase afundando, respirando com dificuldade. Por um momento eu pensei que eu fosse morrer. Pensei mesmo que ele me deixaria ali com a água enchendo os meus pulmões, mas não, ele pulou e me tirou de lá. Suas roupas ficaram tão encharcadas quanto as minhas. Isso acabou me fazendo pensar em algo impossível. Talvez bem maluco, mas eu não era tola o bastante para achar que fantasmas se molhavam.
Monstro não é um fantasma.
Monstro é real.
Monstro nunca morreu.
Monstro agora vive escondido em algum lugar do internato.
Monstro com certeza teve a ajuda de alguém.
Monstro teve ajuda do padre Lazaro.
Por que Monstro vive no internato com tantos outros lugares para se esconder?
Esses pensamentos me atormentaram o dia inteiro. Tive que inventar uma desculpa para irmã Madilte. Eu disse a ela que caí na piscina sem querer e que estava um pouco cansada e que por isso precisava ficar aquecida no meu quarto durante o resto do dia. Ela franziu o cenho e não acreditou muito na minha história, entretanto, irmã Judith, que era uma espécie de irmã enfermeira me deu aval para que eu pudesse descansar o resto do dia. Ela também me disse que logo iria até o meu quarto me levar uma xícara de chá e um pedaço de bolo de fubá. Agradeci e subi até o quarto onde fiquei me atormentando durante todo o dia. As meninas ainda não haviam voltado o que me deu uma certa privacidade. Eram tantas ideias passeando na minha cabeça. Primeiro era a minha mãe. Eu não tive notícias dela deste que cheguei no internato. Não consegui falar com ela por telefone e a cada dia que passava temia ainda mais pela sua vida. Segundo, eram aquelas estrelas de papel, a primeira estava destinada a Anita e a segunda era um aviso para mim. Monstro queria que eu fosse embora, mas por quê? Eu nem o conhecia? Não fazia nem uma semana que eu estava no internato, por que ele queria que eu fosse embora dali? Argh! Estava começando a odiar aquele lugar. Queria mais do que nunca estar na minha casa longe dos problemas. Longe do Monstro e daqueles olhos cinzentos dele que me encararam na piscina de um jeito tenso e assustador.
Mordi os lábios pensando em cada uma das hipóteses que eu pensara, mas não consegui chegar a nenhuma conclusão. Tentei então não pensar nele, mas era impossível esquecer aqueles olhos por baixo daquele saco de estopa.
Todas as meninas me inquiriram sobre o meu desaparecimento a tarde. Eu disse para elas o mesmo que eu havia dito para as freiras. Apenas Anita pareceu desconfiada, mas eu a ignorei. Anita nunca acreditava em nada do que eu dizia. Por que Monstro mandaria uma estrela para ela?
Eu tentei dormir. Até que consegui por algumas horas. Tive um sonho interessante. Na verdade, não era um sonho, mas sim uma lembrança. Eu e a minha família estávamos almoçando em uma vinícola de vinho no interior do Rio Grande Do Sul. Meu pai era gaúcho e mesmo sendo órfão ele sempre fazia questão de se lembrar das suas origens. Eu tinha treze anos. Sentamos em uma mesa bonita cercada de carne, polenta e vinho. A vista era esplêndida, verde com várias árvores e um pequeno riacho nos circundando. O ar fresco, o cheiro de churrasco e a música típica embalavam o nosso almoço naquele dia ensolarado de verão. Meu pai estava feliz. Ele sorria e ria como uma criança enquanto a minha mãe o enchia de beijos e repousava o seu rosto no ombro dele. Aquela era uma lembrança feliz. Uma das poucas:
— Sabe, Sofia. — Meu pai me levou para dar uma volta pelo campo logo depois do almoço. Eu ainda estava me sentindo um pouco cheia, pois tinha comido demais, e por isso caminhava com uma certa dificuldade e um pouco sonolenta. — Um dia o mundo vai mudar. Os negros vão entrar nas universidades, as mulheres vão ter os mesmos empregos e salários que os homens e de fato haverá democracia.
Eu estava tão preguiçosa e sonolenta que balancei a cabeça e concordei sem ao menos questioná-lo. Não que fosse necessário, pois tudo o que o meu pai dizia eu concordava. Ele era um homem sempre tão generoso, ficava pensando o tempo todo nas demais pessoas, as vezes eu acreditava que ele pensava mais nos outros do que em si mesmo.
— E você mocinha. — Ele me olhou, seus olhos negros brilhando por causa do sol. — Você poderá ser o que você quiser.
Retribuí o sorriso.
— O mundo é um lugar mal, pai. As pessoas são más, ninguém ama ninguém. Não há respeito.
— De onde você tirou tudo isso?
Dei de ombros, o meu pai riu.
— Concordo com você, o mundo não é um bom lugar para se morar.
— Podíamos ir morar em Marte.
Meu pai caiu em uma gargalhada gostosa que derramou lágrimas dos seus olhos.
— Quem sabe um dia? Os americanos já falam de ir para a lua, creio que logo Marte será o novo alvo. Vamos torcer para que os marcianos não sejam tão cruéis quanto os humanos.
— Sim. Eles devem ser legais sim. Eles são verdes. Eles são palmeirenses é claro que são legais.
—Você torce para o palmeiras? Desde quando? Pensei que você fosse gremista como eu.
— Mamãe é corinthiana, achei que seria legal se tivéssemos "algo não comum" — enfatizei.
Meu pai sorriu para mim, as covinhas apareceram. Era gostoso ter esses momentos com ele. Eu raramente tinha ele por perto, mas quando ele estava assim pertinho de mim eu me sentia acolhida.
Minha mãe acenou para nós do outro lado do riacho, ela queria que nos juntássemos ao restante dos nossos amigos.
Meu pai me olhou por cima dos ombros e encarou o horizonte. Ele parecia estar cansado, não era um cansaço físico, mas sim emocional.
— Estou cansado de guerras, Sofia. Estou cansado do ódio. Tudo o que eu queria era poder saber que o seu futuro vai ser melhor, mas acredito que ele não será nada fácil também.
— Não diga isso, pai. Nós não podemos salvar o mundo, mas podemos salvar a nós mesmos.
Então algo estranho aconteceu. As nuvens que antes eram azuis e brancas se tornaram sombrias e pesadas. Uma lufada de vento gelado atravessou as têmporas do meu rosto. Os olhos do meu pai saíram do negro e se tornaram cinzas. Papai enrijeceu. Seu corpo foi se esticando aos poucos, os seus ossos estalaram, parecia que estavam se quebrando. A sua face foi se contorcendo, abaixo dos seus olhos oleiras escuras apareceram enquanto papai se esticava e ficada cada vez mais grande.
De repente não era mais o meu pai, mas sim Monstro, vestido de palhaço com aquele saco cobrindo o seu rosto demoníaco. Ele estava enorme, grande demais. E uma risada maléfica saia dele, mesmo os seus lábios estando desenhados em forma de um sorriso mal naquele saco de estopa. Ele ria de mim, ria em alto e bom tom. Seu tamanho irregular e sua roupa assustadora com aqueles olhos me encarando. Amaldiçoei o dia em que pisei naquele internato.
Eu não sabia se estava com medo dele ou do medo de ter medo. Eu estava confusa, mas mesmo assim vê-lo naquele tamanho me deixou horrorizada. Estrelas de papel começaram a cair do céu macabro. Peguei uma que caiu próxima de mim, o palhaço ainda me olhava curioso o som dá risada foi se calando aos poucos.
"Eu mandei você ir embora" a estrela dizia. Uma mariposa negra pousou no meu ombro e dessa vez foi tão real. Acariciei as suas asas escuras, era real, eu sabia que aquilo era um sonho: o Monstro em tamanho gigante, o céu obscuro..., mas a mariposa era real, ela era crível demais para ser só um sonho. Um emaranhado de mariposas começou a voar ao meu redor, algumas pinicavam a minha pele. Comecei a me debater tentando afastá-las de mim, porém foi em vão, elas não saiam de perto de mim. Monstro ficou observando a cena sem fazer nada, com a cabeça para o lado com os olhos mais frios que uma geada. Debati-me, debati-me, debati-me..., mas nada, apenas pânico. Então gritei de medo suando frio e senti duas mãos se afundarem nos meus braços.
— Acalme-se, Sofia! É só um pesadelo! — Cida gritou me chacoalhando fortemente fazendo-me acordar dos meus devaneios.
Sentei-me na cama e coloquei uma mão no peito. Minha respiração estava fraca e suor salpicava o meu rosto.
— Desculpe-me — pedi.
— Está tudo bem — Cida falou.
Elas voltaram para as suas camas e não demorou muito para que Laura voltasse a roncar. Entretanto, eu apenas fiquei deitada na cama gemendo de frio e com a impressão de que aquelas mariposas ainda estavam na minha cama, passeando pelo meu corpo.
Então vi um pedaço de papel embaixo da minha cama. Era uma ponta de estrela, o papel parecia ser o mesmo papel amarelado e velho. Inclinei-me e estendi a minha mão para pegá-la. Abri a estrela, eu praticamente já sabia o que estava escrito lá.
"Eu mandei você ir embora".
O sangue ferveu, e uma raiva, um ódio percorreu todo o meu corpo. Então iria ser assim? Ele iria me atormentar até eu ir embora? Errado, pois eu não iria embora tão cedo. E mesmo com medo pois eu estava desafiando um assassino, eu decidi que ele não podia me mandar embora dali. Um dia eu iria embora do internato, mas por conta própria e não porque um suposto fantasma mandou.
Levantei da cama e peguei a minha mochila que estava do lado do meu criado mudo. Peguei um lápis e comecei a escrever na estrela:
Não vou embora! Me deixe em paz! Eu sei que você não é um fantasma! Se continuar me ameaçando eu vou contar a todos, incluindo a polícia, que você está escondido aqui no internato! Quem tem que ir embora é você!
*
Aula de Latim.
A professora tagarelava sem parar. Eu não prestei atenção nela e nem ao menos nas palavras que saiam dos seus lábios, palavras bem articuladas. Meus olhos se fixaram na chuva fina que caia lá fora ensopando os vitrais e pintando as nuvens de cinza.
Enquanto os meus olhos estavam lá fora em algum ponto fixo, meus pensamentos viajaram. Lembrei-me da minha antiga escola, das poucas amizades que eu deixei, do cheiro de café da minha mãe. Minha garganta ficou seca quando me lembrei dela, estava tudo bem? Afastei tais pensamentos, porque pensar nela não facilitaria a minha vida.
Então, os meus olhos se chocaram com os olhos cinzentos dele. Monstro.
Os seus olhos frios deitaram-se em mim. Ele estava ensopado pela chuva reforçando ainda mais a minha teoria de que ele não era um fantasma. Mesmo assim estremeci quando os nossos olhares se chocaram. Arfei quando um brilho sobrenatural em seus olhos encontrou os meus. Ele fitou-me por um bom tempo antes de inclinar a cabeça para o lado e acenar para mim um "tchauzinho" e então partir.
Levantei em sobressalto. A professora me fuzilou.
— Posso ir ao banheiro? — perguntei entredentes, antes mesmo que ela pudesse sibilar algum murmúrio. Ela assentiu e eu saí dali ouvindo atrás de mim os cochichos da sala.
Cerrei os olhos só de pensar naquele rosto com aquelas duas órbitas frias e sem brilho que eram os seus olhos. Esfreguei as minhas mãos e mordi os lábios tentando umedecê-los, pois a secura da minha boca os deixava ressecados. Meu estômago revirou, engoli em seco e corri pelo corredor estreito que levava até o vestiário.
Abri a torneira enferrujada. A água fria corria pelos meus dedos. Enchi as minhas mãos de uma porção generosa do líquido transparente e lavei o meu rosto, inspirando e respirando lentamente. Meu estômago continuava a se revirar numa dança agitada que me causava ânsias. Eu podia sentir o gosto do pão com manteiga que eu havia comido no café entalado na minha garganta. Desliguei a torneira. Droga! Assim que eu abri a porta de madeira devorada pelos cupins, caí de joelhos no chão e encharquei o vaso de um líquido viscoso, meio amarelado que tinha um cheiro ruim. Devo ter deixado todas as minhas tripas naquele banheiro. O piso frio roçou a pele do meu joelho à medida que as mãos estavam apoiadas no vaso branco de porcelana. Tentei manter o meu cabelo para trás, porém a franja insistia em cair nos meus olhos. Um suor frio molhou o meu rosto, arfei sentindo o estômago vazio. Ergui a cabeça e levantei com dificuldade, dei descarga e saí do banheiro.
Caminhei até a pia novamente desejando enxaguar a boca e assim tirar aquele gosto ruim dos meus lábios.
— Ingrata. — Ouvi uma voz grave falar antes mesmo que eu pudesse abrir a torneira. A voz masculina era grossa e imponente, estremeci ao ouvir aquela voz terrível. — Ingrata. Salvei a sua vida e é assim que me agradece? Com um bilhete mal-educado? Ingrata.
A voz foi ficando cada vez mais firme e furiosa.
— Ingrata! Ingrata! Ingrata! — ele gritava, o som reverberava por todo o banheiro, olhei assustada para todos os lados. Nada. A voz derivava das paredes. — Ingrata.
A voz cessou. Dessa vez parecia mais calma e um certo tom de deboche foi detectado.
— Tem medo de mim, garotinha?
Ele podia me ver. Eu conseguia sentir os olhos dele presos em mim se divertindo ao me ver tremendo. Ofeguei. Minhas pernas estavam bambas. Olhei para os dois dutos de ar a procura de algo estranho, mas nada, eu não via nada.
— O que foi? Você está com medo? Está me procurando? Eu estou aqui. Olhe para mim. — Pediu.
Um tremor subiu pelo meu corpo. A voz estava atrás de mim. Os cabelos finos da minha nuca se levantaram. Virei-me lentamente, respirando com dificuldade, e então encarei o meu reflexo no espelho. Meus olhos estavam sem vida, meus lábios pálidos e secos, o rosto molhado de suor. Nada.
— Não consegue me ver? — ele falou comigo novamente, gemi e balbuciei algo com a voz trêmula.
Então ele riu, gargalhou debochadamente, sua risada era assustadora como se ele tivesse me dado um soco no estômago e que agora me causará ânsias. Ele riu por um bom tempo de mim. Meus pés não se moviam e os meus músculos estavam tensos demais. Eu queria correr, fugir, mas uma parte de mim queria enfrentá-lo, mandá-lo calar a boca, e parar de me atormentar. "Mexa-se, Sofia". Pensei.
— Vá embora! — Ele gritou de um jeito rude depois de zombar de mim e ver que eu não havia corrido dali.
— Por...que quê? — balbuciei com a voz baixa e tensa.
— Por quê? Por quê? — indagou irritado. — Porque se você continuar aqui coisas terríveis vão acontecer com você.
— Está me ameaçando? Por que eu? — perguntei do jeito mais firme que pude. — O que eu fiz pra você? Por que ousa me ameaçar?
Ele ficou em silêncio por um tempo, os meus olhos percorreram todo o banheiro. Aonde ele estava?
—Você não tem medo? Não sabe do que eu sou capaz? Não sabe que eu sou um monstro, um demônio que percorre as paredes desse lugar? Se continuar aqui eu a roubarei e lhe trarei para viver comigo no inferno — ronronou.
Estremeci, o que ele queria dizer com isso?
— Eu não vou embora — falei de um jeito duro. — Sei que você não é um fantasma, por isso apareça.
Aquilo era uma espécie de jogo para ele? Que seja. Eu não iria cair nas garras dele. Tantos problemas, por que ele foi implicar justo comigo?
—Tudo bem. — a voz dele exalava uma calma sobre-humana. —Você fez a sua escolha, não diga que eu não lhe avisei, terá de arcar com as consequências agora.
*
" Ele me envolveu em seus braços fortes e me apertou contra eles. Eu perdi o ar que me restava quando seus lábios quentes e grossos se chocaram contra os meus. Sua boca saliente selou a minha com uma intensidade anormal..."
Cida lia o livro com uma expressão animada desenhada em seu rosto. Seus olhos se arregalavam e sua testa franzia toda vez que ela lia algo escandaloso. O quarto estava abarrotado de garotas dos outros anos que acompanhavam a leitura dramática de Cida com caras e bocas e soltando gritinhos carregados de surpresa e animação.
— E fim — Cida concluiu a leitura fechando o livro que não devia nem ter 200 páginas.
As garotas suspiraram cansadas e algumas pareciam desapontados com a leitura.
— Que livro horrível — Anita disse com as sobrancelhas franzidas.
— Tenho que concordar — Luiza falou enquanto estava deitada de bruços batendo os pés no ar. — É um absurdo que a mocinha tenha ficado com ele depois de tudo o que ele fez. Ele abusou dela. A ofendeu durante o livro inteiro, e ela o perdoou facilmente e ainda se casa com ele, e vive feliz para sempre? Desculpe-me Cida, mas você não fez uma boa escolha dessa vez.
— Tudo bem — Cida concordou calmamente. — Eu devia ter deixado a Sofia escolher, decerto estaríamos agora lendo a bíblia ou algo similar.
— Ei — Taquei meu travesseiro nela e Cida riu. — Luiza tem razão, esse livro é horrível.
— Bom, pelo menos há algumas cenas interessantes, cenas intensas e cheias de calor. — Cida falou em meio a sorrisos fáceis conforme se abanava com a mão.
As meninas riram e algumas concordaram com Cida. Ela se levantou e tirou de baixo da cama uma garrafa.
— Hora de comemorar — ela disse maliciosa.
— Isso é vinho? — perguntei abismada.
— É. Roubei da casa paroquial.
As meninas sorriram animadas com a bebida.
— Um gole para todas, OUVIU LUIZA? Da última vez você bebeu tudo — Cida reclamou.
Ela abriu a garrafa com um saca rolha e tomou um bom gole e depois passou o vinho tinto para uma outra garota e assim suscetivelmente até que a bebida chegou em mim. Tomei um gole e senti o álcool descer queimando pela minha garganta. Limpei a boca com as costas da minha mão.
— Vou pedir para o Felipe uma garrafa de vodca na próxima vez. Assim podemos fazer uma festinha — Cida riu.
— O padre Lazaro não vai saber que pegamos a garrafa de vinho dele? — perguntei.
— O padre Lazaro não se importa. Ele não dá a mínima para as coisas que fazemos. A única insuportável dessa escola é a irmã Matilde — Cida me respondeu.
— Como ela devia ser antes de ser freira? — Luiza inquiriu.
— Uma vaca arrogante, isso sim — Cida falou revirando os olhos.
Então um gemido assombroso e ecoou pelas paredes do quarto. Nos entreolhamos assustadas.
— Monstlo — Laura sibilou.
— Acho melhor irmos dormir — Luiza disse logo que o som fantasmagórico desapareceu. Ela bebeu bastante vinho tinto antes de passar a garrafa para Anita.
— Eu tenho uma ideia melhor. — Anita falou rapidamente levantando de sua cama apressada, e indo em direção ao velho guarda-roupa que ficava em um dos cantos do quarto. Ela tirou de lá um velho tabuleiro com várias letras.
— Um tabuleiro ouija? — Luiza ergueu sutilmente uma sobrancelha. — Onde você conseguiu isso?
— Era da minha irmã. — Anita sorriu. — Vamos jogar? Podemos tentar nos comunicar com o Monstro.
— Você enlouqueceu? — inquiri, eu já havia ouvido falar daquela brincadeira e aquilo não me agradava nem um pouco.
— Sofia está certa. — Luiza concordou comigo.
— Se você não quer participar o problema é seu. Faz muito tempo que eu quero fazer umas perguntinhas ao Monstro. — Ela olhou para as demais garotas no quarto, algumas meninas do primeiro ano recuaram, mas duas garotas do segundo ano concordaram em participar.
— É ridículo isso, mas tudo bem. Laura pegue o caderno e anote as palavras. Eu pego a lamparina e algumas velas. — Cida ordenou.
Luiza olhou para mim, acabei me encolhendo na minha cama. Por que diabos jogar aquilo?
Cida, Anita, Laura e três garotas do segundo ano que eu não sabia os nomes fizeram uma roda em volta do tabuleiro e das velas que estavam posicionadas em cada extremidade da tábua.
— Agora fechem os olhos e se concentrem — Anita mandou. — Eu convido você, Monstro, fale conosco e se revele.
Levantei e me aproximei delas curiosa. O ponteiro se mexeu e moveu-se até o "sim" notei que a mão de Cida tremia.
— Você é o Monstro? — Anita perguntou sem medo e sem hesitação, depois de alguns instantes o ponteiro ainda não havia se mexido, senti um leve arrepio na nuca.
— Você matou a minha irmã? — ela inquiriu e o ponteiro continuou parado no sim.
— Acho melhor a gente palar com isso — Laura disse nervosa.
— Quem você vai matar agora? — Anita perguntou ignorando o medo das companheiras.
O ponteiro se moveu de forma brusca nos deixando estupefatas deslizando de uma letra para outra de forma veloz como se o fantasma tivesse certeza de cada letra.
— S, O, F, I, A — as meninas pronunciaram cada letra em uníssono.
— Sofia — Luiza completou se inclinando sobre a cama com o rosto pálido. Todas as garotas me olhavam.
Comecei a me sentir fraca e me lembrei do que havia acontecido no banheiro. Para mim ele não era um fantasma, mas agora vendo o ponteiro se mexer e circundar nas letras que formam o meu nome, comecei a tremer, minhas pernas fraquejaram e eu tive que me esforçar para me manter de pé, um suor frio salpicava o meu rosto.
Anita me olhava de um jeito estranho, era como se os seus olhos fossem duas pedras de gelo. Ela se inclinou para trás erguendo a cabeça e começou a balançar de forma frenética, seus braços e o seu corpo chacoalhavam de um jeito apressado, como se ela estivesse possuída por algo maligno. Quando todas perceberam o que estava acontecendo com a garota, gritos de horror reverberaram pelo quarto. Apenas Luiza teve coragem para se aproximar de Anita, que naquele momento já estava esticada no chão se remexendo como um animal rastejante e fazendo barulhos estranhos e indecifráveis, os olhos cerrados.
— Anita! — Luiza gritou erguendo o corpo da menina de forma que ela se sentasse, e balançando ela sabe-se lá para que.
Anita parou de se mexer, ficou dura, o silêncio aos poucos foi voltando para o dormitório. Ela abriu os olhos lentamente e olhou bem devagar para cada uma das garotas até que os seus olhos pararam em mim e então ela relaxou os ombros e começou a rir como se estivesse zombando de nós. Ela estava brincando com todas nós, em especial comigo.
— Quantos anos você tem? — Luiza gritou impaciente empurrando Anita no chão. — Idiota. Ficamos preocupados com você.
Anita a ignorou e continuou rindo como uma louca. Eu ainda estava assustada com a peça que ela havia me pregado. Eu sentia a minha garganta seca e a língua presa. Não consegui pronunciar nenhum ruído até Anita falar tranquilamente:
— Calma, eu só queria assustar vocês. Principalmente a Sofia.
— Por quê? O que eu te fiz? — indaguei um pouco trêmula, as sobrancelhas levemente levantadas.
— O que você fez? — ela revidou a pergunta com tom de deboche. — Você fez aquela estrela.
— Eu não fiz estrela nenhuma — falei tentando manter a calma e o tom de voz baixo.
Ela cruzou os braços impaciente.
— É muito cínica mesmo — falou irritada.
— Já chega, Anita. Sofia está falando a verdade. — Cida me defendeu.
— Verdade? — Anita soltou uma risadinha nervosa. — Você contou pra elas, Sofia, sobre o seu pai?
O quê? O que ela queria dizer com isso? Será que ela sabia sobre o meu pai? Se ela soubesse certamente saberia que o meu pai era um bom homem, e que lutou por aquilo que ele acreditava. Ele era um herói. Mas observando a sua expressão ficou claro para mim que ela achava que o meu pai era um homem horrível, um bandido. Foi como se aquele pesadelo horrível que eu tivera na primeira noite no internato tivesse voltado. Senti o piso frio e áspero da cela em baixo dos meus pés descalços. O cheiro de podridão. O odor metálico de sangue. A umidade no meu corpo. Os gritos do meu pai batendo furiosamente contra os meus ouvidos. Os gritos de dor, de morte. Ele implorando para que parassem de o machucar, mas aqueles canalhas não ouviram. Eles riam, riam assim como Anita. Se divertiam machucando-o. Ferindo-o. Achando engraçado o sangue dele banhando o chão. Eu jamais compreendi o porquê de existir pessoas tão cruéis no mundo.
Era como se o meu pai estivesse ali na minha frente apanhando e sendo torturado por Anita, uma garota que teve a audácia de falar sobre ele, de julgá-lo sem conhecê-lo.
— Contou pra elas que o seu pai era comunista? Eu ouvi as irmãs falarem sobre ele. Eu ouvi que ele foi preso.
Uma raiva invadiu cada gota do meu sangue e se espalhou como veneno. Como ela ousou em falar do meu pai? Eu podia sentir o gosto amargo da raiva na saliva.
— Solta ela, Sofia! Solte ela! — eu ouvi Laura gritar, suas mãos se agarraram nos meus pulsos. Eu estava tão absorta na minha raiva que não percebi que havia pulado em Anita, semelhante uma cachorra defendendo os filhotes, e batendo nela, arranhando a sua pele translúcida, tapeando a sua face.
— Solte ela — Laura e as meninas pediam, mas eu não conseguia parar, estava irritada demais. Eu havia associado ela com os homens que torturaram o meu pai no meu pesadelo. Eu perdi o controle de mim mesma, deixei os sentimentos que eu tanto repudiava tomarem conta de mim.
— Solte ela sua infeliz — Não foi Laura quem gritou ou alguma das meninas, mas sim Irmã Matilde, que me agarrou, e me tirou em cima de Anita que chorava de um jeito tão falso.
— Ela enlouqueceu — Anita murmurou enquanto levantava do chão. — Pulou em cima de mim como uma louca e começou a me bater.
Ela começou a choramingar e irmã Matilde inspecionou o quarto até pegar raivosa o tabuleiro ouija e o livro de Cida. Todas nós nos olhamos preocupadas.
—Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? — ela instigou furiosa. — O que esse livro inapropriado está fazendo aqui?
Ninguém disse nada.
— E esse tabuleiro do demônio? — ela perguntou outra vez.
— É da Anita — Luiza respondeu prontamente. Anita a encarou furiosa. — Ela obrigou as garotas a jogarem com ela, disse que queria se comunicar com o Monstro.
— Ora! Mas que besteira! Monstro está morto e no inferno que é o lugar para onde pessoas malvadas e desobedientes vão — Irmã Matilde olhou para Anita com os lábios cerrados e o cenho franzido. Anita estava com arranhões no rosto e um vermelhão abaixo do olho esquerdo. — O livro também é seu, Anita?
— Não, irmã — Cida a respondeu. — Ele é meu. Responsabilizo-me por tudo o que aconteceu nessa noite.
Irmã Matilde olhou para ela furiosa e lhe deu um tapa que fez com que Cida girasse nos calcanhares e caísse em cima de Laura.
— Você irá ajudar durante duas semanas na cozinha, entendeu? E eu quero saber aonde você adquiriu esse livro. O coronel vai ficar muito feliz em saber disso.
Irmã Matilde se aproximou de Anita, ergueu o seu rosto e o analisou cuidadosamente avaliando os danos que eu havia causado.
— O feriado é semana que vem e como vou mandá-la para casa desse jeito? O que o seu pai vai achar do colégio? Que educamos animais, ao invés, de garotas decentes e bem-educadas? — Ela olhou para mim.
— Anita deve ser castigada também. Ela errou em trazer esse jogo para cá — Luiza disse com a voz um pouco trêmula.
— Calada. — A irmã acenou para que ela ficasse quieta. — Nada que a Anita fez se compara ao descaramento de Cida de trazer esse livro para cá, e dessa aluna nova de bater na pobre menina como se ela fosse um saco de pancadas.
— Isso não é justo — reclamei.
— Calada! — Irmã Matilde gritou. — Você anda me irritando muito desde que chegou. Primeiro, arma um escândalo e diz que viu um fantasma. Segundo é preguiçosa e inventa desculpas esfarrapadas para escapar da faxina de domingo. Eu já sei o que fazer com você. Você não diz ter visto um fantasma? Pois bem, você irá vê-lo novamente esta noite, vai dormir junto com ele no calabouço.
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