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Sonhador faminto

  A viagem comercial de Caparo até Oropuche recaiu como uma maldição acima do teto de lona do circo Vertlea, desviar para o oeste enquanto precisávamos seguir para o norte não era, de fato, a melhor notícia que ecoava através dos trapézios. As estradas lamacentas já haviam consumido muitas de nossas rodas e duas, das dezessete bailarinas, não saíam de baixo dos cobertores ásperos se não fosse por uma tigela de sopa quente e remédio para tosse. As chuvas que os deuses guardavam para o fim de ano chegariam em breve e meus bolsos estariam vazios se não fosse pelos rolos de ingressos.

Nenhum de nós, desde os malabaristas pintados com fuligem até as bailarinas delicadamente vestidas com suas roupas de lantejoulas, possuíamos o mesmo sangue apesar de nos considerarmos uma família, mas nem mesmo nossa matriarca seria capaz de manter todos sob a tenda sem moedas o bastante para agraciar-lhes o ego. Parecia-me que o simples amor diminuía a cada dia, juntamente ao tintinar do dinheiro contra as bandejas de alumínio.

Tehan nos chamava de órfãos perdidos, embora muitos de nós ainda possuísse pais, mas o que ele era além de um contador de histórias? Com os bolsões escuros sob os olhos celestes e mãos agitadas, bem como um maestro. Verdade fosse dita, ninguém preocupava-se em negar suas mentiras enquanto pudesse fazer o público suspirar com seus gestos dramáticos e farsas dolorosas. Particularmente, passei a odiar os discursos de Tehan quando ele começou contar a verdade, encolhido em seu fraque remendado e puído ao alcance da luz das velas de papel, onde jurou jamais usar nossa mácula como forma de enaltecer a si mesmo. Mas o que eram os contadores de história além de mentirosos natos? E eu já deveria ter me acostumado a não confiar em promessas de circo.

A falta de dinheiro nos obrigara a fazer dois espetáculos ao dia, o que significava respirar fundo e repudiar minhas lembranças enquanto os discursos sujos de Tehan percorriam as arquibancadas mofadas, apinhadas de gente tão suja quanto nossos porcos.

Eles tinham moedas. Era o que importava.

Durante as tardes quentes que se seguiam pela estrada, enquanto esfregava fuligem nas pálpebras e nas bochechas o cotoco vermelho de batom que uma das bailarinas atirou pela janela, pensava nos dias gloriosos que mesclavam-se a poeira. Levei a mão ao pescoço, ao cordão escondido abaixo da pelerine cor de malva com o brasão do circo, aquele que certa vez roubei de um homem morto, e segurei o pingente em formato de pirâmide entre os dedos com força, como se este pudesse simplesmente desaparecer caso não o fizesse. Trouxe aos lábios e depositei um beijo frio sobre a superfície de cobre antes de sair pela cortina dos fundos do meu vagão, pulando para a estrada sem me importar com o trote seco do cavalo.

Os malabaristas já haviam arregaçado as mangas há muito, e procuravam um espaço ideal para montar a tenda, com seus olhos famintos que me assustavam durante as madrugadas. Sigo meu caminho sozinha, atravessando pelo descampado em direção ao vilarejo no caminho de Oropuche, com casas de madeira equilibrando-se umas nas outras. Então bato os sapatos com guizos e jogo-me sobre minhas mãos, dando cambalhotas afiadas através das ruas de terra enquanto proclamo as mesmas palavras que pronuncio em cada cidade. Oferecendo a eles não uma noite abaixo de um teto de lona, mas os sonhos que suas mentes pequenas não sonhariam sozinhas.

O discurso não é meu, roubei de Tehan.

Bato os calcanhares ao pular, arranco ingressos das orelhas das crianças mais novas e lanço piscadelas aos moços que seguram as mãos de suas jovens esposas.

"Venham ao melhor espetáculo que verão em toda a sua vida" mas eu sei que é mentira.

  Assim como em todas as outras cidades colo alguns cartazes e continuo fazendo gracinhas pelas ruas escuras, sendo seguida por pelo menos duas dúzias de rostos que esqueceria quando partíssemos para próxima. É assim quando se está no circo, não temos nada para agarrar.

  Betty, a que dança através das argolas com os cabelos repuxados pintados de azul, e um vestido que mostra mais do que os homens estariam dispostos a pagar, disse-me uma vez que o circo era o lugar de fracassados ou daqueles que desistiram da vida, perguntei "qual dos dois você é?", receio que ela ainda não saiba a resposta.

  Entrei pela abertura de lona do Vertlea pela primeira vez quando ainda tinha dedos o bastante para contar minha idade, Tehan me pescou de um vilarejo do qual não quero lembrar o nome. Procurando comida através dos becos com meu vestido de trapos e dedos velozes.

  O fracasso me trouxe ao circo, para baixo do teto sacolejante do vagão onde dormia com três equilibristas, tão perto da cortina dos fundos que o vento frio se infiltrava nos meus cobertores durante a madrugada. Roubando restos de maquiagem e panos usados, para que durante as madrugadas brilhantes dos circos, as luzes das lantejoulas não me ofuscassem tanto.

  Mas quanto a Tarquin, ele não era um fracassado.

  Os olhos conspícuos ainda me seguem pelo picadeiro, através das barras das jaulas dos leões, azuis como a ferocidade impiedosa do mar, e faminto como o sussurrar do vento deslizando pelas ruínas de gelo. Terno ao alcance dos meus dedos, mas tempestuoso em lugares dos quais não posso tocar. Cercados pela floresta de cílios negros que roçavam as bochechas pálidas. Os mesmos olhos que calavam homens e derrubavam muralhas, que me procuravam através das sinuosas curvas das cortinas diáfanas de seda do camarim das bailarinas durante os espetáculos. Os mesmos olhos que faziam minha alma declarar guerra contra tudo o que se opusesse ao roçar acidental de seus dedos tingidos contra meus antebraços.

  Mas os olhos de Tarquin que perseguem hoje, não são de Tarquin. Mas, uma lembrança.

  Ele era a apresentação do meio, ficava antes do engolidor de espadas e depois do ilusionista, precisávamos içar barras em frente à plateia quando Tarquin subia majestosamente no picadeiro. Preenchendo as paredes de lona com sua presença e fazendo com que nos retesássemos em nós mesmos sem nunca pedir por isso, com seu tricórnio negro de seda espetado de penas azuis saudando as barreiras de ferro com seu brilho. O rosto encoberto pela máscara branca de marfim, bem como todos os outros, sem expressão alguma nos lábios petrificados tingidos de azul. Meu coração palpitava quando ele entrava em cena, dolorido e inchado bem ao alcance de meus dedos, ansiando pelo rosto abaixo da máscara, pintado com ternura de mãos habilidosas e pincéis macios.

  E, então, eles soltavam os leões.

  O circo parecia triplicar de tamanho, as vigas de metal estendiam-se em direção ao céu e as estrelas porcamente costuradas na lona do teto brilhavam por conta própria, a arquibancada rangia, me lembro bem do som da madeira quando todos se levantavam. Incrédulos o bastante para experimentar o pavor, e esperançosos feito crianças para esperar por mais. Todos nós parávamos para ver, claro que alguns nunca admitiam mas todos os olhos voltavam-se para Tarquin quando os leões corriam em sua direção. Entorpecidos.

  O chamavam de Príncipe das Feras.

  Mas não por tempo o bastante para que se lembrassem disso.

  Na noite em que tudo aconteceu ele não vestia a máscara, os olhos azuis contornados por uma fina linha negra voltaram-se para plateia como nunca havia feito, eles estremeceram antes que as barras caíssem, eu estremeci antes que as barras caíssem. O circo estremeceu antes que as barras caíssem. Ele vestia os sapatos de cetim que Tehan conseguira para ele, o com pequenos saltos que o faziam parecer maior do que já era, e o casaco azul-turquesa com finas correntes douradas presas aos botões, pelos quais eu passava hora deslizando os dedos como se dedilhasse minha própria pele. E as calças largas que eu costurara para ele.

  Ele tirou o tricórnio cerimoniosamente do cabelo negro antes de colocá-lo rente ao peito, com os dedos devidamente calçados nas luvas brancas. O casaco encontrou o chão com delicadeza, por baixo dele a camiseta perfeitamente engomada branca perolada. O tricórnio deslizou até seus pés, as barras caíram, e os leões...

  Fizeram o que leões fazem.

  Me encontrei com Betty, limpando o resto de fuligem do rosto com um dos trapos de seu vagão, a mulher fez questão de me analisar antes que eu me sentasse em sua frente, no balde de boca para baixo. "Não devia passar fuligem nos olhos, vai acabar sem eles" ela disse, não pela primeira vez, mas fiz questão de ignorar como todos os outros dias. Não estávamos ali para conversar, nem para criar um vínculo, Betty precisava pintar meu rosto e me deixar apresentável para receber os aldeões hoje à noite.

  Quando se passa algum tempo no circo, você descobre que criar laços é um erro. Ninguém permanece o suficiente para transformá-los em nós.

  "Aquela época do ano está chegando, Cinira" sussurrou meu nome como se ainda não o aceitasse, "vai participar da festa dessa vez?"

  "Tehan não me deixa ir" respondi, a língua queimando, mesmo que fosse a verdade. A mulher deu de ombros.

  "Você deveria, é divertido".

  No circo, acima de tudo, vivíamos de esperança. As moedas não seriam capazes de oferecer o que realmente buscávamos, mas a maioria não percebera isso ainda. Fomos atraídos pelas paredes de lona muito antes de subir no picadeiro pela primeira vez, escutamos a música adocicada do acordeão antes que nossos nomes caíssem nas graças do público. O circo esteve dentro de nós antes que o encontrássemos de verdade.

  Subíamos no picadeiro com as mãos manchadas de pó com a desculpa de que dávamos esperança ao público, mas a verdade era que nós a comprávamos. Não éramos nada além de um amontoado de erros e fracassos abaixo de uma tenda, mesmo que essa tenda tenha nos dado um propósito.

  A festa significava que havíamos conseguido.

  Na noite de ano novo a tenda era montada, mas não para os convidados. As lanternas acesas e nos vestíamos com nossas melhores roupas, pescávamos as máscaras que havíamos guardado e escondíamos o cabelo com turbantes de linho. Tudo para que não soubéssemos quem éramos mas que pertencíamos uns aos outros, como família, como circo. No ano anterior, pouco antes da festa de ano novo, encontrei-me com Tarquin em seu vagão.

  "Por que todos usam máscaras iguais?" Perguntei, ele me encarou através da escuridão, cortando o ar com o olhar frio que me derretia e contou a mesma história pela centésima vez.

  "Precisam de máscaras iguais para que a deusa da noite se confunda e não leve a alma de nenhum de nós" ele meneou a cabeça, os cachos negros molhados de suor reluzindo a luz baça da madrugada, e os dedos ainda tingidos de negro pousados sobre os joelhos.

  "Você não acredita nisso? Na deusa devorada de almas?" Lembro-me de perguntar, presa nas curvas delicadas do rosto parcialmente encoberto pela penumbra. Tarquin sorriu, os lábios, deliciosamente macios, curvando-se para cima com resquícios de ironia. E os olhos azuis desafiando a escuridão.

  "Não sou adepto de superstições" devolveu. Esfregou as mãos nas calças e foi embora. Diferente de todos os outros, Tarquin não buscava pela magia medíocre que dançava através das máscaras da festa de ano novo, talvez tenha sido isso que o matou tão depressa.

  Eu não ia a festas, Tehan, como meu guardião, me obrigava a esfregar os barris de cidra nas ocasiões especiais, com a desculpa de que se fosse para desperdiçar meu tempo, que fosse com algo útil. Mas o que seria mais útil para nós, órfãos desprovidos de esperança, do que poder ser qualquer coisa além de nós mesmos?

  Alma poética, Tehan dizia, é o que vai te matar.

  Mas os barris esquecidos na terra, incrustados de gordura e lama em padrões intrincados, não me impediam de espiar através da tenda. De observar as saias bufantes farfalhando através da rosa dos ventos costurada na lona do chão. De moças mascaradas rodopiando umas tão perto das outras que as barras rendadas se beijavam num contentamento tenro. E os moços, tão bem apertados em seus fraques escuros que me lembravam das gravuras dos grandes bailes da nobreza, despidos da arrogância, cingidos de doçura. A ternura das luvas de algodão quanto ao enlace dos dedos suados de desconhecidos. Meu coração pulsava, numa confusão desonesta de encaixes e desencaixes que moviam-se conforme os passos no salão, tão inquieta dentro de meus ossos que poderia simplesmente explodir a qualquer instante. Pronta para romper a barreira silenciosa de Tehan e adentrar na confusão de braços e rodopios.

  No último ano, enquanto os barris de cidra me esperavam e meus joelhos ficaram imersos na lama, Tarquin me encontrou com os lábios ainda pretos escancarados em frente ao fio de luz que escorria da lona. Ele deslizou ao meu lado, com a graça macia da qual seus movimentos gabavam-se. Os dedos gelados tocaram meu cotovelo, anunciando sua presença, e o sorriso travesso em seus lábios era o sinal de confidencia que procurava, deixei-me apoiar sobre seu ombro, suspirando sem tirar os olhos da confusão brilhante em minha frente. "Por que não entra?" Ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta chamava-se Tehan. Apertei seu pulso com meus dedos enquanto Tarquin me puxava para longe da pitada de esperança, arrastando-me pelos vagões vazios e cavalos sonolentos, encobertos pela escuridão como dois ladrões.

  Lembro-me de entrar em seu próprio camarim, montado nos fundos do circo, cercado por cortinas grossas de camurça azul. Tracejou minha escápula exposta com o polegar, demoradamente, sentindo a textura de minha pele. "De alguém que partiu há anos" ele disse ao estender um vestido carmim em minha direção, com uma fenda coberta de renda nas pernas e pérolas no lugar das alças. Eu sabia que não adiantava perguntar a quem ele pertencera, as pessoas iam e vinham como a água numa torrente, o circo nunca fora nada além de um ponto de passagem. Vesti-me, protegida apenas pela carícia da noite, enquanto Tarquin me ajudava com os botões e me entregava sua máscara. A de marfim que usava durante os espetáculos que tiravam-me o sono, que tocava seu rosto noite após noite debaixo das estrelas de lona. A apertei contra meu rosto, beijando o espaço frio e endurecido no qual seus lábios deveriam tocar e imaginando a sensação de ser beijada de volta. "Se divirta, Cinira" seus dedos empurraram meu último cacho negro para dentro do turbante rosado, "e quanto a você?" Perguntei. "Os barris de cidra não vão se limpar sozinhos" sorri por baixo dos lábios de marfim e corri em direção ao sonho que me fora negado.

  Brinquei de braço em braço durante horas, dançando desajeitadamente sobre os pequenos saltos. A própria deusa poderia estar dançando entre nós, vestindo uma máscara de marfim igual a todas as outras, escolhendo a dedo qual órfão a acompanharia até sua morada, um corpo novo para dedilhar durante o passar dos anos.

  Levei o colar com o pingente triangular aos lábios e o beijei, a noite já havia começado a cair e Tehan já arrastava seu banco para o meio do picadeiro enquanto eu me dirigia a entrada para recolher os ingressos, apenas uma figura manchada na porta do circo, não algo do qual algum deles se lembraria após os aplausos. Ao lado do vagão com barras de metal, no qual os leões descansavam sobre as patas como gatinhos após o pires de leite.

  Puxei novamente a pirâmide contra os lábios.

  Da mesma forma que vi Tarquin fazer dezenas de vezes quando o cordão ainda enlaçava seu pescoço delgado. Sentia o vazio no picadeiro quando passava os olhos pela lista na qual riscaram seu nome, sentia falta da camiseta engomada que permanecia limpa até o final do espetáculo e das mãos tingidas de preto que dedilhavam o ar com a maestria de um deus. Dos sapatos brilhantes, do cabelo de seda, do rosto escondido abaixo da máscara de marfim. Ele subia pela escada escondida no canto, segurando um chicote que descartaria antes que os leões fossem soltos. O Príncipe das Feras caminhava entre a imensidão de pelos caramelos e dentes expostos, sempre um passo mais perto da morte do que qualquer um de nós. Ele beijava a pirâmide e os leões caíam aos seus pés, fazendo gracinhas ao comando de seus dedos, pulando obstáculos, rolando pelo chão.

  Me pergunto quando foi que os leões deixaram de obedecer.

  Quando Tarquin encontrou minha lista de desejos, cuidadosamente escondida sob minhas cobertas, e revelou ter lido cada um deles, não pude conter a vergonha de consumir minha face. Encolhi os ombros feito uma garotinha pronta para o impacto de suas risadas, mas Tarquin apenas estendeu uma caneca em minha direção. "Uma lista de desejos, jamais pensei que pudesse ter isso" ele falou ao bater seu copo no meu, num brinde delicado, "você não anseia por alguma coisa?" Perguntei. Ele fitou o chão, procurando por alguma resposta palpável, e naquela imensidão azul dos olhos que não procuravam os meus, eu vi meu próprio coração à deriva no mar tempestuoso. Como a carcaça de uma baleia sendo jogada pelas ondas, tão grande e ao mesmo tempo tão insignificante perto do oceano. Sem controle sobre qualquer sentimento que poderia vir a ter. "Alguma coisa para chamar de minha" sua voz preencheu meus ouvidos, beijando minhas têmporas. No circo não tínhamos nada além de nossas próprias vidas, e nem isso nos pertencia de verdade. O desejo de Tarquin ecoaria por meus sonhos durante as semanas que se seguiriam.

  "Licor de cereja?" Perguntei atônita, encarando meu próprio reflexo no líquido avermelhado. Ele ergueu sua caneca, o riso escapando dos lábios adocicados, "é o terceiro desejo da sua lista, não é?".

  Colocar licor de cereja na minha lista de desejos certamente o deixara espantando, como poderia contentar-me com desejos tão pequenos? A verdade é que na vida nômade das tendas de lona, aprendemos a saborear os pequenos prazeres que ainda podemos alcançar. Vivíamos de esperança, mas esperança em níveis alarmantes são chamadas de sonhos, se nossos desejos idiotas não nos matassem, o circo e a estrada se encarregariam disso.

  Tarquin era um sonhador, acima de tudo.

Um ano atrás, na festa de ano novo, eu rodopiava através do espaço entre os corpos dançantes, com meus sapatos cor de malva escondidos abaixo da renda áspera do vestido carmim, com a máscara de Tarquin tão apertada contra minhas bochechas que me contentava em lembrar das outras noites em que o rosto dele estivera ali. Sem pensar na deusa que espreitava dos cantos, pronta para devorar a alma de algum de nós.

E o ano novo se aproximava novamente, eu podia senti-lo se arrastando através dos dias, e sem Tarquin do lado de fora da tenda, com os olhos de mil braças de profundidade, o encanto não passava de uma maldição.

Levei os dedos ao pescoço, ao lugar onde o cordão com a pirâmide deveria estar, e não alcancei nada além dos meus próprios ossos. Um vazio instalava-se em frente ao meu peito, contemplando o vazio protegido pelas costelas. Talvez a alma de Tarquin o tivesse reclamado de volta, mas o simples fato de não poder beijar uma das faces do pingente me afligia.

Algo para chamar de meu, já não o tinha. Nem todos os desejos da lista superariam a ânsia que não me pertencera.

Quando Tarquin beijou a pirâmide pela última vez, ele tremia sobre o picadeiro, levou o cobre frio aos lábios e deixou os dedos brincarem com ar, como tantas outras vezes enquanto comandava as feras. Os leões saíram das jaulas e caminharam ao redor da rosa dos ventos com suas bocas famintas, Tarquin deu o comando, como fizera em todos os outros dias e as feras se viraram contra o príncipe.

Gostaria de dizer que o amava, mas o que nós, órfãos de circo, sabíamos sobre o amor? Não tinha um nome para a sensação aterrorizante que ocupava minha cama nas noites em que descia os dedos pela cúspide do umbigo, procurando algo que saciasse a fome entre as pernas. Nem compreendia a necessidade de encarar os orbes azuis. Um segredo que ninguém sabe sobre aquela noite é que Tarquin me beijou antes de subir no picadeiro.

Tomou meu rosto entre entre os dedos tingidos e pressionou os lábios açucarados contra os meus, num fulgor contido e palpável.

E então os leões, e então os gritos.

A noite de ano novo chegou rapidamente. Pesquei a máscara de Tarquin do fundo do cesto, juntamente ao vestido carmim de pérolas, esfreguei os olhos com o pouco de brilho que encontrara sobre a mesa de Betty enquanto ela desviara o olhar. Beijei a parte interna dos lábios de marfim, sentindo minha própria respiração bater contra o rosto, e amarrei o turbante na cabeça, procurando pelo cordão em meu pescoço. Sentindo a nudez que a falta de meu amuleto proporcionava, sem nada para chamar de meu.

Entrei na tenda, a música já soava por sobre os ombros de vestidos remendados e ignorei os convites para dançar até chegar ao centro da rosa dos ventos, onde uma mácula pisoteada me encarava de volta, a mancha do sangue seco sobre a lona do ano anterior.

Tarquin havia subido delicadamente, sem a máscara, parecia há tanto tempo mas os momentos ainda latejavam. Os leões fazendo círculos ao seu redor até que ele fechasse o punho, a plateia manteve-se quieta por um instante, esperando que ele se levantasse do monte de ossos e sangue. Mas Tarquin não era mágico. E no fim da noite nós não tínhamos terra e nem algo para enterrar. Não sabia se o amava, mas os encantos do circo calaram-se para mim quando puxei o cordão embebido em sangue da lona sob minhas botas.

Me enfiei na massa dançante, cedendo aos toques desajeitados e giros rápidos, lembrando da firmeza em que os dedos de Tarquin fecharam-se aquela noite, o punho erguido em direção das lanternas de papel, o hesitar das patas dos leões, o resmungo baixo que escapou dos lábios açucarados, "obedeçam, simplesmente obedeçam". A ironia presa na imensidão azul atrás dos cílios negros enquanto abraçava as feras que atravessavam seus ombros com os dentes.

Acariciando-lhes as orelhas macias com os dedos tingidos de vermelho.

Busquei rapidamente a deusa da noite no meio do mar de máscaras, para dizer-lhe que devolvesse seu escolhido, mas ela não estava, assim como nos outros anos. Então cedi ao som do acordeão, dançando no espaço entre as notas enquanto as memórias tomavam frente aos meus olhos. Não lembranças da noite dos leões, mas de duas semanas antes dela.

Tarquin havia agarrado meu pulso e me levado até a jaula das feras, parado frente a frente dos olhos de caramelo. "Descobri uma coisa" ele dissera, a animosidade escorrendo pelas mãos, "o quê?".

Tarquin lançou os olhos impiedosos sobre mim, os mesmos olhos que me afogavam e me puxavam para superfície, "quando você cerra o punho" encarou os leões "eles atacam".

Então, como em todos os outros anos, o deus da noite escolheu a si mesmo.

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