Capítulo 3
Vinha distraída pela rua, olhar baixo, coluna ereta e os pensamentos presos na conversa que acabara de escutar no armazém, acerca da nova república e a repercussão política e social que a pequena cidade esperava sofrer - embora Triana muito duvidasse que qualquer coisa chegasse àquele lugar, que não fosse o vento trazendo poeira.
Do lado oposto da rua, alguém a observava atravessar a praça. Triana tinha um porte altivo, semblante completamente desinteressado de tudo e uma aura que atraia olhares que ela nem mesmo parecia notar.
Giuseppe encantou-se com a cena. Pareceu-lhe cena retirada de livros românticos, sobre mulheres admiráveis.
Ele apreciava Triana e imaginava que se houvesse tido uma filha, certamente gostaria que fosse como ela. Ele podia perceber todo o potencial da menina. Algo naquela moça lhe dizia que havia muito mais força, caráter e hombridade por trás daquela beleza irrepreensível.
- Triana!
Ela estancou e buscou quem a chamava. Então, sorriu ao avistar o senhor simpático e de bochechas coradas, segurando duas cestas de vime, uma em cada mão.
- Senhor Giuseppe! - E apressou-se ao seu encontro. - Não havia algum rapazote na feira que pudesse ajudá-lo com estas cestas? - E foi logo se apressando em pegar um dos balaios das mãos de Giuseppe - Permita-me ajudá-lo, por favor.
O homem entregou-lhe a cesta mais leve, contendo hortaliças e algumas verduras.
-- Obrigado, menina. Não pensei que fossem ficar tão pesadas, após os primeiros quinhentos metros.
Ambos divertiram-se com a pilhéria e caminharam lado a lado, conversando amenidades.
Apesar de conhecer o Giuseppe há anos, Triana nunca havia tido motivos para ir visitá-lo em sua casa. Na verdade, tratava-se de uma casa que ele mantinha, quando vinha para o sul, já que o homem parecia não ter pouso certo.
Sabia-se que era um homem solitário e contava apenas com a ajuda de uma criada, que tomava conta de sua casa quando estava em uma de suas longas viagens.
O sobrado erguia-se na rua estreita e, àquela hora da manhã, o sol alcançava apenas o telhado e parte do primeiro andar. Era uma casa muito bonita, apesar de parecer um tanto descuidada, com suas árvores carentes de poda e folhas secas cobrindo-lhe a entrada.
- Venha, menina, entre. - Giuseppe abriu a porta e deixou que Trianna cruzasse-a primeiro. - Não ligue para esta bagunça. E não me faça observações. Já bastam as de Tereza.
Era impossível não reparar em tanta bagunça. A sala era pequena e de móveis simples. Apenas uma espreguiçadeira, uma grande e pesada mesa de trabalho, duas cadeiras e estantes que iam do chão a quase o teto. Havia livros por sobre a mesa, abarrotados nas prateleiras das estantes e sobre a espreguiçadeira. Livros de contabilidade formavam duas grandes pilhas sobre a mesa e somente após um segundo olhar, Triana pôde perceber uma pequenina mesa de canto.
A menina estava atônita. Ela deslizava o olhar pelas estantes. Um olhar embevecido.
- Deixe a cesta aí, Triana. - E enfiou a cabeça para dentro da casa, gritando para o corredor. - Tereza! Tereza!
Tereza, certamente era a sua criada. Mas mesmo com todos os berros de Giuseppe, a mulher não apareceu.
- Deve ter saído. Venha, venha. - E tomou a cesta das mãos de Triana. - Vou levar isso para a cozinha. O que acha de um chá?
Triana o olhou surpresa. Não era de bom tom permanecer sozinha na casa de um homem, ainda que este tivesse idade para ser quase o seu avô.
- Senhor Giuseppe, eu o agradeço imensamente, mas não posso...
- Ora, deixe disso, menina. Todos aqui me conhecem e sabem do apreço que sinto por seu pai e toda a sua família. Ninguém irá maldar a sua vinda aqui. Além do mais, você deve estar com sede. - Antes que Triana pudesse protestar, Giuseppe concluiu - Hibisco ou damasco?
- Humm... Hibisco! - disse, não antes de titubear.
O homem desapareceu corredor adentro, deixando-a a admirar aquele amontoado de livros. Sempre gostara de ler e, na medida do possível, conseguia passar algumas tardes na biblioteca do convento. Claro que lá ela não encontrava títulos muito interessantes, mas dentre as moças, que por gostarem de leitura frequentavam a biblioteca, havia o secretíssimo "contrabando" de romances.
Triana aproximou-se de uma das estantes e deslizou as pontas dos dedos pelas lombadas dos livros. Vitor Hugo, Shakespeare, Brönté, Dostoievsky... Autores que sempre desejou conhecer. Retirou um livro com dificuldade, por causa do amontoado, e abriu a capa dura e amarelada. O título era "Diva" e Triana pôs-se a folheá-lo cuidadosamente.
- Gosta de ler, menina Triana?
Após recompor-se do pequeno susto, Triana fechou o livro e o devolveu à estante.
- Sim, senhor. Gosto muito. E o senhor tem uma biblioteca respeitosa. Parabéns.
Giuseppe sorriu orgulhoso, enquanto pousava as duas xícaras sobre a discreta mesinha de canto.
- Foram muitos anos de viagem e solidão. - Ele olhou ao redor, para as estantes repletas de volumes dos mais variados temas. - Estas crianças me fizeram companhia e me livraram da loucura.
- Deve ser um tanto enfadonho, viajar todo o tempo, não?
Giuseppe sentou em uma das cadeiras e ofereceu a espreguiçadeira para que a menina se sentasse.
- Nem tanto, pois sempre tenho pessoas queridas onde aporto.
Ela sorriu sutilmente, enquanto sorvia o chá quente.
- E você, menina, do que gosta?
A jovem pousou a xícara no pires, sobre a mesa e respirou, sentindo-se leve.
- Está falando de livros?
- De tudo. Vejo-a sempre ajudando sua mãe, cuidando da casa... Mas o que gosta de fazer?
- De coisas simples, senhor Giuseppe. Gosto de observar a natureza, enquanto penso. Gosto de ler, de cuidar do jardim... Coisas simples.
- E não te apetecem os passeios, as confeitarias e conversas com as garotas da sua idade?
Triana sorriu e um som suave escapou entre este sorriso.
- O senhor já deve ter percebido que não tenho muito em comum com as moças daqui. Algumas, talvez. Mas estas, assim como eu, não têm paciência para as revistas de moda, coquetearias e frivolidades. Às vezes, as encontro na biblioteca do convento e conversamos um pouco. Mas elas, assim como eu, têm pouco tempo livre.
- Na biblioteca do convento? Tem inclinações para a vida religiosa, Triana?
Desta vez, a moça riu e exibiu todo o seu sorriso e brilho no olhar, enrubescendo as faces e relaxando os ombros. Giuseppe a olhou encantado com o que via. Como se tornava a mais linda jovem, quando sorria assim. Como podia esconder aquele brilho radiante, em um olhar tão triste e severo?
- Não, senhor Giuseppe. Não conseguiria viver em um convento nem por um mês.
- Bom saber disso. O que eu diriam os rapazes, se perdessem a concorrência para Jesus?
Ela tornou a rir, cada vez mais à vontade e encantadora.
- Jesus não teria concorrência. Absolutamente.
Giuseppe esticou o braço e colocou sua xícara vazia sobre a mesa.
- Por que diz isso?
Ela sorriu.
- Esqueça, senhor. É uma tolice. - E voltou seus olhos para a estante de livros, no local onde ela havia mexido, anteriormente.
- Gosta de José de Alencar? - Giuseppe tornou a buscar assunto, vendo a garota deslizar a mão sobre os livros do autor.
Triana enrubesceu, mas estava gostando do novo rumo da conversa.
- Sim, especialmente de "Diva". - E apontou para o volume a folheara há pouco.
- "Diva" é um romance um pouco audacioso, não acha? Sabia que alguns tolos comentam que as senhoritas que leem este tipo de literatura, tendem a adotar o mesmo comportamento da heroína?
Triana corou completamente, recordando as cenas e diálogos um tanto indecorosos para seus costumes.
- Não posso crer nisso! É como se todos que andassem emigrejas e lessem a Bíblia fossem realmente cristãos!
Giuseppe não pôde se conter e gargalhou. Triana achou engraçado, como o homem tornava-se extremamente vermelho, quando ria. Terminaram o chá com uma conversa mais frívola e, então, a garota se despediu, crendo que deveria visitar o amigo mais vezes, quando ele estivesse na cidade.
Mais um vestido voava sobre a cama para fazer companhia aos outros três, que já haviam sido descartados. Por trás do biombo, surgiu uma Triana emburrada, com as faces rosadas pelo esforço de experimentar roupas, preenchendo um vestido azul com delicados bicos de renda branca, contornando o decote.
- Este está muito bom. - Triana não parecia tão satisfeita com a análise do irmão, mas Breno simplesmente ignorou a cara amarrada e as mãos na cintura. - Aliás, está perfeito!
Apenas para não retornar à maratona de trocas de roupas e acabar usando algo mais espalhafatoso, Triana deu-se por vencida. Trançou e prendeu os cabelos em uma velocidade fenomenal e adornou o pescoço com um cordão de ouro discreto.
- Pronto? - perguntou, enquanto erguia uma sobrancelha e pousava as mãos na cintura.
- Não. Agora coloca um sorriso no rosto. - Breno sabia como driblar o mau humor da irmã.
Triana simplesmente ergueu um dos lados dos lábios com o dedo, forçando um sorriso sem qualquer disfarce e arrancando risos do irmão.
- Então, vamos lá.
Desceram as escadas de braços dados e uniram-se ao resto da família. O caminho até a casa de Damião seria feito de charrete, enquanto Jesus e Otelo seguiriam lado a lado, a cavalo.
Os vizinhos ofereciam um almoço pelo aniversário da bela Domitila, uma jovem galega que irradiava beleza e graça no alto dos seus dezoitos anos. Boa parte da vizinhança fora convidada e haveria dança, comida e bebida.
Jesus, claro, não via aquilo tudo com bons olhos. Para ele, não passava de uma esnobação. O que Damião queria era esfregar na cara de todos como vendera bem a sua safra e como era excelente comerciante, segundo seu julgamento.
Otelo seguia ao lado do pai, escutando suas opiniões e afundando-se em lamentos de amor, sem saber o que fazer para ter Domitila. Já haviam até mesmo cogitado uma fuga, mas a vergonha não seria apenas das duas famílias. Domitila era símbolo de virtude e exemplo para as moças de toda a cidade. Ele sabia que aquela festa era um último ato desesperado de Damião, a fim de não dar o braço a torcer e admitir que fora cruelmente enganado e que a ruína batia à sua porta. O orgulho parecia ser um traço genético nessa família.
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