Sete horas depois
Sete horas depois
As horas da escola nunca demoraram tanto para passar quanto naquele dia, longas e intermináveis.
Quando acabaram, eu saí correndo.
Scott tentou me parar no corredor e eu disse que ligaria para ele depois; uma loucura visto que ele estava sem celular por eu estar com o objeto em questão.
Fui para a única pessoa que me parecia ser confiável no momento e eu não havia brigado. Pelo menos não diretamente.
Abri a porta da loja do senhor Gutcher arfando, uma mão no coração e a outra limpando o suor de minha testa. Não queria encontrar com o filho dele.
— O que você quer? — pelo jeito o seu filho comentou sobre a nossa briga.
Tenho certeza que ele se esqueceu de comentar as mentiras e omissões.
Não que fizesse muita diferença, não para um pai como o senhor Gutcher.
— Eu preciso de um favor — retirei minha bolsa das costas e peguei minha carteira — eu pago, mas eu preciso de você.
Eu preciso de você?
Eu realmente disse aquilo?
Senti vergonha de mim mesma.
— Eu não tenho tempo Elisabeth — ele virou de costas para mim e começou a limpar uma sujeira imaginária do balcão enquanto assoviava uma melodia tentando me ignorar.
Em uma situação normal, eu não me importaria e iria embora, mas aquela não era uma situação normal.
Eu não queria ser tão idiota quanto William, porém eu poderia acabar sendo ainda mais, pois ele não sabia o que estava fazendo, ele entrou inconsequente, eu sabia de tudo e mesmo assim aceitei entrar naquele jogo.
— Por favor — joguei-me contra o balcão retirando as notas de minha carteira, teoricamente eu deveria comprar algumas provisões para minha casa, entretanto eu estava disposta a passar fome se eu pelo menos resolvesse aquele problema — você não está entendendo. Eu preciso de alguém que seja melhor do que o meu pai. Eu não posso pedir para ele, ele não fala comigo há semanas depois da nossa briga. Eu... eu quero pedir desculpas, mas isso não vai mudar nada, ele não vai mudar, vai continuar...
— Chega Elisabeth! — era a segunda vez que ele me chamava pelo nome e eu sabia que ele estava irritado, mas eu não poderia entregar o celular a Scott sem saber se eu estava certa em minhas suposições ou se era mera coincidência, uma infeliz coincidência.
— Por favor, senhor Gutcher? — ajoelhei no chão.
Adeus orgulho. Adeus dignidade. Adeus tudo o que eu prezava. Adeus.
— Você... — ele olhou para mim e viu o meu estado.
Eu sabia como poderia estar aparentando para as pessoas. Uma louca tremendo desesperada.
Eu só esperava que ele visse além desta fachada, visse os meus medos e receios, que ele visse que eu realmente, verdadeiramente, precisava de alguém para me ajudar.
— O que você fez? — ele colocou dois dedos contra suas têmporas.
— Eu não tenho certeza, mas pode ser que seja algo muito ruim — eu sussurrei.
Ele deu a volta pelo balcão e estendeu a mão para mim, eu a aceitei e me levantei, ele me levou para a oficina, fechou a porta e sentou na cadeira de madeira ruim que eu havia sentado da última vez.
Eu estava com a poltrona confortável.
— Desde o começo, por favor — ele fez um gesto de mão para eu prosseguir.
Sorri para ele decidindo se eu deveria falar desde o começo, há meses atrás quando William estava vivo ou sobre sua morte.
Ao invés disso eu retirei o celular de Scott da minha mochila e coloquei minha carteira de lado.
— Eu preciso acessar as informações deste celular — entreguei o aparelho a ele.
— Esqueceu a senha? — ele gargalhou de mim. Antes fosse esse o meu problema, fofinho.
— Não é meu — comentei encolhendo-me na cadeira.
— Bisbilhotar é feio — ele disse tentando me devolver o aparelho.
— A verdade é essa: este aparelho pertence a uma pessoa que pode ou não estar envolvida com algo extremamente sério e pode afetar pessoas que eu amo. Eu preciso saber se minhas suspeitas estão certas ou não — empurrei o celular contra a mão dele.
— O que você fez desta vez? — ele me olhou recriminando.
— O mesmo problema do fax e do datilógrafo, porém um pouco mais complexo, com mais variantes — eu tentei dar uma risada descontraída, saiu como um ganido esganiçado.
Calei-me.
— Eu não sei mexer nisso — ele meneou a cabeça e meu mundo desabou — posso esperar sinceridade de sua parte?
Eu já previa o que ele iria dizer.
— Pode.
— O que aconteceu entre você e Jason? — ele coçou a cabeça como um tique nervoso — eu tinha o pressentimento que vocês iriam se tornar próximos, eu só não esperava que fosse... terminar.
— Não me pergunte isso, por favor — eu pedi abraçando meus braços.
— Por quê?
— Eu vou mentir se responder — joguei uma mecha de cabelo atrás de minha orelha e suspirei.
Eu teria que dizer a verdade, se o preço do celular fosse a verdade, ele valia o preço.
Pensei muito no que Gabriel havia me dito na noite anterior e decidi que era verdade, talvez ele tivesse exagerado um pouco para ser mais enfático, contudo foi este exagero que me convenceu.
Eu falava que William era influenciável, eu também era, quase tanto quanto ele.
— Apenas diga a verdade que pode — ele pediu, uma oferta muito boa para ser recusada.
— Eu gosto do seu filho, gosto muito — as palavras estavam fora de meus lábios de súbito e eu não consegui me arrepender de tê-las pronunciado — mas nós brigamos, o motivo pouco importa agora, o problema é que eu não consigo ser amiga dele gostando o tanto que eu gosto.
— Por que vocês não voltam? — parecia ser tão simples.
Eu considerei aquela hipótese na noite anterior enquanto minha mão latejante me mantinha acordada — olhei para ela, ainda estava dormente pelo anestésico que eu passei pela manhã mesmo contra o que Gabriel disse sobre ter noção da dor para não expô-la a extremos.
Não era ele com uma mão quase decepada.
Olhei para o curativo e vi que ele estava ficando avermelhado, precisava trocá-lo. Movi minha mão, os dedos e tentei fechá-la em punho, porém senti um toque de aflição, um arrepio amedrontador. Soube que em pouco tempo o anestésico não funcionaria mais.
— Ele está saindo com Becca Senes, uma garota da escola, ela é legal, você iria gostar dela — tentei parecer animada com aquilo, aceitar a perda como uma boa competidora.
No entanto eu não era uma boa competidora e eu sabia que ele tinha que estar comigo.
Não! Eu o queria longe de mim com as suas mentiras deslavadas.
Eu estava muitíssimo confusa.
— Ele nunca falou dela — o velho senhor Gutcher suspirou e meneou a cabeça — minha esposa sugeriu que ele fosse estudar no continente e ele estava animado com a possibilidade. Até você aparecer. Agora ele diz que quer conduzir a oficina, não quer sair da ilha.
Certamente não era por minha causa, mas não seria eu a pessoa a alertar o pai de Jason do seu equívoco.
— Ele é a única pessoa que pode ajudá-la, peça ajuda a ele.
— Eu não consigo olhar para ele — murmurei fazendo gestos gigantescos.
— Olhar para quem? — perguntou uma voz de fundo que me fez afundar na poltrona e respirar fundo.
— Elisabeth estava apenas dizendo que sua mãe colocou uma senha em seu celular e a esqueceu, queria saber se você não poderia desbloqueá-lo — o velho Gutcher se levantou e colocou o celular na mão do filho indo embora.
Muito discreto da parte dele.
— Oi — eu disse um pouco desconfortável.
— E aí? — ele perguntou ao olhando na minha direção — o que ela fez? Não tem uma senha reserva? Não pode ligar para a operadora?
Não? Não poderia fazer isso.
— Não exatamente, você pode desbloqueá-lo? — levantei-me da cadeira e andei para a mesa que ele havia decidido usar como local de trabalho.
Conectou o celular no computador com um cabo universal e eu vi que o aparelho começou a carregar enquanto ele digitava freneticamente sempre que aparecia uma nova página negra com letras brancas a sua frente.
— Tem muitas senhas internas. Sua mãe deve ter pavor que alguém descubra o que tem aqui — ele deu risada e parou, pelo jeito se lembrou de quem se tratava. Eu.
— Ela é um pouco... paranoica — comentei para concordar com ele.
— Parece.
— É.
— Aham.
— Hum.
Eu não conseguia mais criar uma comunicação saudável com ele! Que tipo de ser humano eu era?
— Vai demorar um pouco — ele disse depois de um tempo digitando incessavelmente.
— Quantas horas? — eu não queria ter que voltar tarde demais para que ele tivesse visto de quem se tratava o aparelho.
— Alguns minutos — ele respondeu.
— Isso não é muito tempo — repliquei tentando calcular quanto tempo para ele era pouco tempo.
— Para mim é.
Ele só não terminou a frase: para mim alguns segundos ao seu lado são como a eternidade. Acabem logo.
— Entendi — mordi meu lábio e andei de um lado para o outro tentando não pensar mais em nada, até que eu vi uma foto de dois garotos, uma foto relativamente recente.
Era Jason e... William.
Peguei a foto e olhei.
Os dois tinham rostos inocentes, estavam jogando xadrez, estavam sorrindo, olhos alegres, porém os olhos de William eram olhos de quem estava compartilhando um segredo com o seu amigo e mais ninguém teria o direito de saber daquilo.
Escrever uma carta não era o mesmo que ouvir da voz dele.
Ele me ligou...
Para se despedir!
Ele iria embora e queria dizer adeus.
— Agora você é uma mentirosa também? — sua voz estava cheia de ódio e rancor, coloquei a foto para baixo e olhei para ele.
O celular estava em sua mão, desbloqueado, o garoto era um gênio, esqueci-me do pequeno e insignificante detalhe.
Ele deve ter descoberto que era de Scott.
— Seu namorado pediu para você desbloquear já que esqueceu a senha? — ele cuspia as palavras como se o seu cuspe fosse físico e ele o estivesse acertando em meu rosto.
— Eu não tenho namorado! Eu estou cansada das pessoas acharem que eu estou namorando uma pessoa apenas por conversar com ela — ele não era o primeiro a chamar Scott de meu namorado — Ele não é meu namorado.
Peguei o celular da mão dele, retirei uma nota de cinquenta reais, coloquei-a em cima da mesa com um tapa e senti minha mão arder, soltei um gemido segurando-a contra a minha barriga.
Eu queria ter feito uma saída de efeito.
Meus dedos estavam se contraindo involuntariamente e eu sentia os nervos de meu braço tensionados como uma reação reflexiva pelo meu tapa.
— Você está bem? — ele me olhou e estendeu a nota — não precisa me pagar, foi um favor.
— Você não faz favores para mim — apontei o dedo da mão boa para ele — agora eu preciso ir.
— Li... Elisabeth — agora ele também iria mudar a maneira como ele me chamava? Bem, eu pedi para ele não me chamar mais de Lise, mas mesmo assim... eu gostava do apelido — você está com uma expressão um pouco assustadora.
E eu deveria estar mesmo.
— Minha vida é um inferno, eu estou queimando e não tem água para me salvar — parei antes que eu concluísse a minha epopeia clássica e trágica — obrigada pelo celular.
— Pelos velhos tempos — ele sorriu para mim e colocou o dinheiro dentro do bolso da sua calça.
— Certo — tentei sorrir de volta, mas era mais difícil do que as pessoas faziam acreditar que era. Minha boca não me obedecia — preciso ir.
— Você ainda está procurando o assassino de William?
Dentro de sua pergunta havia outra implícita que eu percebi.
Scott está envolvido.
— Eu acho que sim.
— A senha dele é Melody — ele comentou e esperou pela minha reação.
— Vejo você por aí — disse já abrindo a porta.
— Lise? — ele me chamou e eu parei. Ele andou até mim — você está bem?
Fingi o meu melhor sorriso e virei meu rosto em sua direção, tentando irradiar felicidade.
Ele colocou a mão perto de minha cintura.
— Claro, diga a Becca que ela é uma garota de sorte, tudo bem?
— Eu não tenho nada com ela.
— É mais do que eu tenho.
Fiquei olhando para ele, quando ele fez menção de se aproximar ainda mais, eu saí correndo.
Não queria falar daquele assunto.
Por que eu simplesmente não poderia ter saído correndo enquanto tinha um vestígio de dignidade restando? Por que eu falei aquilo? Por que eu mesma acabei me sabotando?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro