𝑃𝑎𝑟𝑡𝑒 5
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ESTHER
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Esther não gostava nada de funerais; mas, quando soube da morte do avô de Jaine, ela rapidamente trocou de roupa pela manhã. Sua mãe estranhou o fato, pois Esther odiava qualquer evento social (principalmente velórios), mas não questionou a escolha da filha. Esther não era obrigada a ir — não era íntima o suficiente de Jaine ou de sua família.
Ela iria por respeito ao seu vizinho (pelo menos, era aquilo que estava tentando se convencer). Recusava-se a pensar que estava indo a um funeral para ver Jaine. Aquilo era egoísta de sua parte. Entretanto, quando chegou ao pequeno cemitério da cidade, percebeu que havia muito mais que a vontade de vê-la mais próxima — Esther estava preocupada.
Pobre Jaine. Justo na véspera de Natal.
Sua vizinha estava vestida com uma camisa de mangas compridas pretas e calças da mesma cor. Seu rosto estava inchado, como se tivesse chorado por um bom tempo. Os cabelos escuros estavam presos em um rabo-de-cavalo alto e seu rosto parecia mais pálido que o normal. Esther desejou se aproximar e abraçá-la, mas ela não faria isso — elas não tinham intimidade o suficiente e a moça era tímida demais para isso. Jaine provavelmente queria ficar só por algum tempo; cansada de abraços tristes e pêsames. Então, Esther ficou distante dela durante todo o funeral, mas observando-a a todo momento. Jaine mal parecia estar prestando atenção às palavras ditas e às poucas pessoas presentes.
Jaine ficara o tempo todo com os braços cruzados e o olhar cabisbaixo. Foi a primeira a sair do cemitério, seguindo para a praça. Sem pensar muito, Esther foi até ela. Viu a mulher sentada no balanço, segurando nas correntes como se aquelas fossem seu único apoio no momento.
Quando entrou em seu campo de visão, Jaine olhou de longe para ela. Esther se aproximou, um pouco hesitante. Não sabia se estava fazendo a coisa certa. Seu coração aos pulos e seu nervosismo não ajudavam.
— Posso me sentar aqui? — ela apontou para o balanço ao lado da mulher.
— Acho que está estragado — Jaine respondeu.
Esther se sentou mesmo assim. Fitou os próprios pés, em silêncio, tendo a plena consciência de Jaine ao seu lado. Ela não sabia dizer se era o clima pesado pós-funeral ou a proximidade de Jaine que a fez sentir-se mal. Talvez os dois. Não era exatamente a presença de Jaine que a fazia mal, mas a certeza de que sentia algo por ela. E não podia fazer nada.
O peito de Esther saltava exageradamente, as mãos suadas escorregando da corrente. Estava tão concentrada em seus pensamentos e seu corpo que só percebeu o olhar de Jaine segundos depois. Esther arregalou os olhos, passando-os pela melancólica figura ao seu lado.
— Estou te incomodando? — Esther começou a se levantar do balanço. — Se quiser, eu posso sair.
Jaine balançou a cabeça.
— Não. Estou surpresa que esteja aqui, na verdade.
Esther levantou uma sobrancelha. Ela não parecia muito incomodada. Mas por que ela estaria surpresa?
— Hã? — Esther não conseguiu dizer nada além disso. Jaine deu de ombros, dizendo que estava apenas pensando alto. Esther passou a mão pelo cabelo, ainda um pouco trêmula. O que ela deveria fazer àquela hora? Pela primeira vez, não se sentia irritada com Jaine e nem nada do gênero. Talvez por finalmente estar cedendo àquele sentimento... Ou porque estavam em frente a um cemitério e em uma praça com aparência bizarra.
Jaine apertou os olhos e baixou a cabeça. Esther quis abraçá-la novamente. Ela estava com uma expressão tão triste que a moça queria arrancar-lhe todo aquele mal sentimento. Mas ela tinha que respeitar seu luto. Naquele momento, ela quis contar-lhe tudo o que sentia — o que ela não faria, pois era uma hora um tanto inconveniente. Contudo, o coração não via hora e nem lugar para querer explodir em pedacinhos.
— Jaine — Esther soltou sem pensar. Jaine olhou para ela, e a moça se arrependeu na mesma hora. Ela tinha que sair dali.
— O que foi? — Jaine respondeu em voz baixa.
Esther desviou o olhar, levantando-se e balançando a cabeça. Sentia-se uma idiota.
— Eu tenho que ir. Você...fique bem.
Sem olhar para trás, Esther apressou os passos para longe de Jaine. Ela quase disse o que sentia. Quase. A moça duvidava que Jaine se importaria com aquele fato — e, em situações normais, ela riria da cara dela — como riu na festa ao vê-la bêbada.
Tudo começou naquela merda de festa.
⁂⁂⁂
Era agosto daquele mesmo ano. Como em todos os anos, comemorava-se o aniversário da cidade durante uma semana. Era uma festa típica, onde os moradores iam para o pequeno centro da cidade para comer e comemorar. As barraquinhas estavam sempre cheias e os coloridos vendedores ambulantes passavam para chamar atenção das crianças.
Esther nunca havia bebido daquele jeito na vida. Ela havia acabado de brigar com sua mãe por um motivo besta e resolveu ir a pé para comprar algum pastel — mas acabou comprando cerveja também. Ela odiava bebidas alcoólicas com todas as suas forças, mas algo malígno a fez perder toda a dignidade naquele dia.
Ela não sabia que tinha um interesse por sua vizinha até vê-la com o braço ao redor da cintura de uma loira. Algo a incomodou ao ver aquela cena, mas Esther estava atônita demais para avaliar os próprios sentimentos. Ignorando Jaine, ela pediu um pastel. Ela não sabia que pastel com cerveja a fariam tão mal — de fato, não era uma combinação muito boa para ela. Além disso, estava gorduroso demais.
A moça se arrependeria de ter saído de casa minutos depois. Seu corpo não estava acostumado com aquele tipo de ingestão — e muito menos com pastéis gordurosos. Por isso, logo sentiu seu estômago pedir socorro. Esther sentiu-se um pouco tonta e jogou-se em uma cadeira branca que estava na calçada. Se alguém estava sentado ali antes, ela não sabia.
Esther não se lembrava de quanto tempo ficara ali até que teve a ideia maluca de ir para a praia. Era apenas a algumas quadras dali. Precisava ficar longe daquela gente e, quem sabe, vomitar. Ela sentia um gosto estranho na boca e uma dor no estômago.
Trôpega, ela chegou à praia e quase se jogou na areia. A maré havia subido e o mar estava mais agitado que o normal. Esther olhou ao redor, avistando uma mulher de camisa amarela e cabelos negros. Ou melhor: duas mulheres. Então, Jaine tinha uma irmã gêmea e Esther não sabia?
Segundos depois, a moça descobriu que não se tratava de uma irmã, e sim da mesma pessoa — pois também havia duas luas no céu. Ela riu quando percebeu que estava bêbada e enxergando tudo em pares. Jaine, escutando sua risada rouca, olhou rapidamente para trás. Estava sozinha, sem a loira; apenas contemplando o mar à sua frente.
— Esther? — a mulher se aproximou, colocando a mão em seu ombro. Esther fechou os olhos, escutando a risada baixa de Jaine. — Meu Deus, você está bêbada.
— Eu vou vomitar. — Esther sorriu apaixonadamente para ela. — Sai.
Jaine franziu o cenho, apontando para uma lixeira na calçada. Ela puxou a moça bêbada, mas Esther não saiu do lugar.
— Não quero sair daqui. Quero ver o marrr — ela pediu, fitando a areia sob seus pés.
— O mar está ali — Jaine levantou o queixo da moça, que insistia em pregar os olhos no chão. — Você precisa ir para a casa. Vai se afogar se entrar no mar assim.
— Minha mãe vai me matar — Esther disse com a voz embolada. — Tomei pastel e comi cerveja. Ela vai arrancar meu rim e vender na deep web. Já entrou na deep web, Jaine? Meu primo já, não éé legal. — Esther fitou os olhos da mulher a sua frente. — Seus olhos são bonitos, Jaine. Verdinhos como...alguma coisa verde.
Jaine parecia se segurar para não rir. Ela pegou no braço de Esther, levando-a para a calçada. A moça continuava fitando suas íris, admirada.
— Venha, eu te levo para a casa. — ela disse. — Antes que você arranque meus olhos.
— Você tem quantos anos? — Esther não saiu do lugar. Agarrou a mão de Jaine, apertando exageradamente seus dedos. A moça nunca teria coragem de fazer aquilo se não estivesse bêbada. Quando lembrava disso, se perguntava o motivo de ter sentido o que sentiu. A pele de Jaine contra a sua. A mão de Jaine em seu ombro. Aqueles olhos verdes irritantes.
Jaine suspirou, colocando o cabelo atrás da orelha. Ela usava um brinco esquisito. Que merda era aquela? Uma mandala? Bom, seja o que fosse, aquela coisa ficava bem nela. Tudo ficava bem nela. O amarelo de sua camisa também — combinava com sua pele dourada. Suas covinhas eram tão bonitas que Esther queria mordê-las.
— Trinta e quatro, Esther — Jaine respondeu, cruzando os braços. Esther fez um bico quando sentiu que não estava mais amassando seus dedos.
— Oh. Você é velha — Esther soltou, impressionada. — Hmmm espera... Você é dez anos mais velha que eu?
— Se você está dizendo... — Jaine deu de ombros, imitando o bico dela. Esther achou fofo. Ela queria apertar aqueles lábios, o que era estranho. A dor na boca do seu estômago se misturou com uma sensação que Esther não conseguia explicar naquela hora.
— Eu vou vomitar — ela repetiu, olhando para o véu escuro que cobria o mar naquele momento. Ela tropeçou nos próprios pés e quase caiu, mas Jaine a segurou.
— Eu te levo. Venha — ela disse, passando o braço pelo seu ombro. Esther mal conseguia andar naquela hora. Estava nervosa e com vontade de regurgitar. — Você já viu o mar o suficiente por hoje.
E então, Jaine a levou para casa. As duas atravessaram as ruas vazias, iluminadas apenas pelos postes. A maioria das pessoas estavam no centro, aproveitando a festa da cidade — menos a sua família, que iria no dia seguinte. Se sua mãe a visse daquele jeito, ia levar uma surra.
Esther mal percebeu quando estava em frente ao portão de sua casa. Ela estava com a cabeça apoiada no ombro de Jaine, que a segurava com força. Seu enjoo ainda permanecia, mas estava tão imersa no cheiro de amaciante e perfume da camisa de Jaine que poderia dormir ali mesmo. A mulher lhe disse algo, mas Esther não se lembrava do momento em que Jaine resolvera acompanhá-la até em casa.
Só pelo fato de não ter vomitado em Jaine naquela noite, a moça ficou aliviada. Ainda sim, sentia-se envergonhada pelo ocorrido. Esther só esperava que Jaine não tivesse notado a súbita atração que sentira por ela. Sabia que não era nada de mais. Era tudo culpa da cerveja com pastel.
Esther queria que tivesse sido culpa de embriaguez. Depois daquele dia, fora só ladeira abaixo — ela não conseguia se esquecer daquelas mãos delicadas e fortes dando apoio ao seu corpo, muito menos do seu cheiro. Os pequenos olhos cor de folha. Sua cara de deboche quando Esther dizia alguma bobagem.
A moça deconfiava que estava estupidamente apaixonada pela sua vizinha. Depois daquele dia, ela passou vários dias pensando em Jaine e de uma forma de se aproximar dela. Investigou todas as suas redes sociais, sem achar nenhum indício de que ela namorava. E quem era aquela loira, afinal?
Aquela informação se tornou irrelevante, pois logo Esther parou de pensar em Jaine. Estava aliviada. Havia se enganado. Fora apenas atração momentânea — o que era estranho o suficiente, pois Esther era hétero (ou não).
Esther descobriria que estava enganada em todos os pontos meses depois. Ela começara a pensar nela novamente quando viu que, da janela do seu quarto, conseguia ver Jaine entrar e sair da porta de sua sala. Não conseguia ver muitas coisas, pois a casa da vizinha era coberta por árvores. Entretanto, aquela pequena visão já a fazia querer saltar da janela e pular o muro.
Quando Jaine apareceu na Doce Sonho, tudo piorou. Vê-la tão próxima novamente a fez sentir a mesma sensação daquela noite de agosto. Mas, dessa vez, ela não estava bêbada. Ficara um pouco envergonhada — sobretudo porque não agradeceu devidamente sua ajuda — e, principalmente, porque não conseguia aceitar o fato. Jaine começou a irritá-la pelo simples fato de não parecer ligar muito para ela — e por existir. Será que Esther teria que ficar bêbada de novo?
Ela nunca imaginaria que um funeral poderia aproximá-las daquela forma. A morte fora mais útil que uma lata de cerveja e um pastel gordurento.
⁂⁂⁂
— Esther, me passe o frango. — vovó Edith pediu, balançando as pequenas mãos enrugadas na direção da travessa fumegante. Esther obedeceu, passando-lhe o recipiente. A família almoçava junta e em silêncio. Henrique, em sua inevitável fase de crescimento, já comia o segundo prato de comida. Júlia comia um pedaço de frango com a mão, enquanto a avó reprovava sua atitude nojenta.
Sua mãe começou a falar algo sobre estarem atrasadas para preparar a ceia de Natal, mas Esther estava tão distraída que não escutou. Desde o velório naquela manhã, a moça não conseguia parar de pensar em Jaine.
— Esther! Você está com cera no ouvido? — a mãe aumentou o tom de voz. Esther piscou algumas vezes.
— Hã...Eu limpei hoje cedo — a moça respondeu. A mãe fez uma careta.
— Preciso que faça as tortas de frango. — Daiana continuou. — As formas estão guardadas na parte de cima da despensa.
— Tudo bem — Esther concordou. — Posso levar uma para a Jaine?
Vovó Edith a olhou de soslaio. A mão enfiou uma colher de arroz na boca.
— Vocês viraram amigas? — Edith perguntou. — Você sabe que ela é sapatão?
Henrique disfarçou a risada tomando um gole de suco.
— Vovó... — Esther consertou a postura. — Isso não é importante.
— O que é isso? — Júlia perguntou. — Ela usa sapatos grandes?
— Não, Júlia — Esther disse, séria. — Ela gosta somente de mulheres. E isso não é um problema — ela olhou para Henrique e para Edith.
— Bem... — Daiana finalmente disse. — Vamos ser solidárias. Ela acabou de perder o avô.
— Obrigada, mãe — Esther disse, aliviada.
—...cuidado pra ela não te agarrar — Henrique disse com uma expressão perversa.
Esther revirou os olhos.
— Você é ridículo, Henrique — murmurou, sem conseguir evitar de imaginar a cena. Jaine nunca a cortejaria, mas só de imaginar aquilo Esther sentiu seu estômago borbulhar.
— Jaine nem parece lésbica — a mãe disse casualmente. — Ela é tão feminina.
Esther quase engasgou com o frango. A moça tossiu, aliviando a garganta com o suco de laranja. Ela queria dizer que aquilo não tinha nada a ver, mas Edith começou a falar que precisava comprar calcinhas novas e Júlia começou a rir — o que acabou causando a saída repentina de suco pelas suas narinas.
Sua família era maluca.
A moça passou a tarde ajudando a preparar a ceia. Era tradição fazer várias tortas e distribuir entre os vizinhos mais próximos. Esther, que já sabia da receita há anos, começou a preparar cinco tortas. Saber que uma delas se destinaria à Jaine a fez ter um cuidado e uma dedicação maior a elas. Não podia errar nada.
No final da tarde, tios e primos começaram a chegar. Alguns só se reuniam no Natal e iam para a casa de Daiana para comer e fazer piadinhas ofensivas. Esther achava um tanto hipócrita a ideia de se reunirem apenas no Natal — como se fosse o único dia do ano que importava para a família. Aquilo era irritante, mas Esther não podia fazer nada. Todos os anos ela desejava que o Natal fosse apenas com aquelas pessoas que ela convivia todos os dias — até mesmo Henrique, seu primo idiota — e não com pessoas que apenas compartilhavam de seu sangue. Ao contrário de sua mãe e sua avó, Esther não gostava de casa cheia.
Logo quando o primeiro grupo de parentes esfomeados chegaram, Esther teve que esconder as tortas. Escolheu uma delas e embrulhou-a com um pano vermelho. Pensando em Jaine, ficou olhando para o recipiente redondo coberto por algum tempo.
— Esther, venha cumprimentar seus tios! — Daiana passou pela cozinha, batendo a mão sobre o balcão. Esther escondeu a torta no fundo do forno já frio, desanimada.
Infelizmente, ela teria que suportar alguns primos irritantes e piadas sobre pavê por algumas horas.
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