𝐂𝐇𝐀𝐏𝐓𝐄𝐑 𝐓𝐖𝐎
Na manhã seguinte, o sol se derrama suavemente pelas janelas do palácio, tingindo meu quarto de tons dourados e quentes. Estou sentada diante da penteadeira, enquanto Margareth segura duas opções de roupas. Sua postura rígida contrasta com o movimento delicado dos tecidos nos seus braços. A Srta. Carvalho está ao lado, observando com aquele olhar crítico que sempre parece pesar mais do que qualquer palavra.
Tudo parece igual, mas, dentro de mim, há algo irreversivelmente diferente. É como se anos tivessem passado desde ontem, como se um pedaço da minha alma tivesse se deslocado, mudado de lugar. Olho para os trajes refletidos no espelho: uma combinação previsível de saia e blusa cinza de corte clássico, e, ao lado, um vestido amarelo claro com mangas curtas e botões que descem pela frente. Já sei o que ela vai escolher. Sempre escolhem o cinza.
Mas hoje, algo em mim se rebela.
Lembro-me de uma história sobre Vincent van Gogh. Dizem que ele comia tinta amarela. Alguns achavam que ele fazia isso por desespero, como se quisesse pintar de luz até mesmo sua dor. Outros acreditavam que era um ato de esperança, uma tentativa de ingerir alegria, de sentir a cor vibrante preenchê-lo por dentro. Talvez ninguém saiba ao certo. Talvez ele tenha simplesmente olhado para o tubo de tinta e pensado: Por que não?
Levanto-me, e o ranger suave da cadeira no chão ecoa pelo quarto silencioso. Viro-me para as roupas penduradas nos braços de Margareth. Meu olhar repousa por um momento no amarelo, e há uma força inesperada crescendo em mim, como uma faísca que ameaça virar incêndio.
— Vou usar esse hoje. — Minha voz soa firme, cortante, quase desconhecida para mim mesma.
Margareth hesita. Seus olhos se arregalam por um breve instante antes de se estreitarem em algo que beira a reprovação. Ela ergue o nariz em sua pose característica e responde com hesitação. — Princesa Esther, esse vestido não é o que...
— Será esse. — Minha voz corta sua objeção antes que ela tenha tempo de ganhar força.
Por um instante, o quarto fica em silêncio. Mas dentro de mim há uma tempestade — não de dúvida, mas de certeza. Porque, naquele momento, percebo que algo mudou de fato. Não serei mais levada como uma folha ao vento, guiada pelas mãos dos outros, pelas escolhas que não são minhas.
Hoje serei amarelo. Amanhã poderei ser qualquer outra cor. Mas nunca mais serei cinza.
A vida é curta demais, brutal demais e cheia de curvas imprevisíveis para que eu viva à sombra dos outros. Se eu quiser dançar, dançarei. Se eu quiser vestir amarelo, então amarelo será. E, pela primeira vez em muito tempo, sinto o gosto do poder de escolher por mim mesma.
Palácio Aurora, 2021
Dizem que uma única pessoa tem o poder de mudar o curso do mundo. E, quando penso na minha família, não tenho dúvida de que isso é verdade. Somos uma linhagem marcada por feitos, decisões, influências. Mas o que eu não sabia, e só pude compreender nos últimos anos, é que uma pessoa também pode mudar a sua própria vida. Pode preencher os vazios que você nem sabia que existiam, fazer com que você enxergue novas possibilidades onde antes só havia espaço em branco.
Foi isso o que Nathaniel Valor fez por mim. Não em grandes gestos, não em revoluções de palavras ou feitos monumentais, mas de uma forma silenciosa e constante. Ele me transformou, sem querer ou saber, na pessoa que eu sou agora. Durante dois anos, ele foi a rocha onde eu encontrei estabilidade e a pedra divertida sobre a qual eu saltava, como se o mundo tivesse feito mais sentido com ele por perto. Ele foi, e talvez continue sendo, a peça que faltava em mim, mesmo quando eu não sabia o que procurar.
E foi assim, de um jeito simples e tranquilo, que ele se tornou não apenas um amigo, mas a pessoa que senti falta durante toda a minha vida.
— Aí está você — diz Nathaniel, com sua voz suave e cheia de leveza, vinda da varanda da Flynn House. — Eu só estava vindo ver você.
A tarde já cede lugar à noite, e o céu toma um tom escuro, profundo, enquanto até os grilos do jardim parecem ter se retirado para seus refúgios, prontos para o descanso. Não há pressa, não há movimento acelerado. É um desses momentos em que o tempo parece se esticar, envolto em um silêncio reconfortante.
— Você sentiu falta de conhaque e charutos? — Eu digo, um sorriso de canto se formando.
Conhaque e charutos na biblioteca depois do jantar são uma tradição na minha casa, um ritual dos poderosos. Meu pai sempre insiste para que eu participe, como se fosse uma regra não dita, uma peça-chave na engrenagem das relações políticas. Porque, no fim, ele diz, é isso que mantém o jogo funcionando: "Mantenha seus amigos por perto, mas seus inimigos ainda mais perto". E assim, quase todos os dias, lá estou, em meio a conversas que não me dizem nada, tentando encontrar um propósito onde só há formalidades.
Nathaniel coloca a mão sobre o coração, de forma cômica, com aquele toque irreverente que só ele sabe dar.
— E estou completamente devastado por isso. — Ele ri, como se a situação fosse a mais engraçada do mundo. — Tive que terminar de ler a legislação comercial para a votação de amanhã. Você já fez sua revisão?
Eu solto um gemido, quase como um estudante que, na véspera da prova final, se dá conta de que nada foi estudado.
— Não, estava pensando em esquecer tudo. — Minha voz é cheia de desgosto, mas também de uma certa diversão.
Nathaniel ri e, sem perder a compostura, enfia a mão no bolso de sua jaqueta impecável. A sua presença sempre foi assim, um contraste perfeito de leveza e elegância. E, então, ele tira uma garrafa de vidro verde, com um rótulo antigo e gasto, como se fosse algo raro e precioso.
— O que é isso? — Pergunto, arqueando uma sobrancelha, sentindo a curiosidade crescendo.
— Uísque irlandês. Antigo. Da coleção pessoal do meu pai. O bastardo costumava guardá-lo como se fosse ouro. — Ele diz, com um sorriso travesso que quase poderia ser chamado de travessura. — Pensei em abrirmos juntos. Talvez isso torne os ajustes na legislação mais fáceis de engolir.
Ele levanta as sobrancelhas, em uma expressão que mistura provocação e cumplicidade. Eu não sei se ele está falando sério ou se o uísque realmente pode aliviar as dores de um dia cheio de formalidades, mas, ao olhar para ele, percebo que a noite já se transformou. De repente, o peso do que eu deveria fazer desaparece um pouco, e o que importa é que ele está aqui, com seu jeito irreverente e inusitado, trazendo uma ideia simples, mas que muda tudo.
Porque, na companhia de Nathaniel, até os momentos mais enfadonhos podem se tornar algo muito mais interessante.
Olho para trás com um movimento furtivo, o coração batendo um pouco mais rápido, mas sem pressa de revelar a verdade que esconde. Não há ninguém à vista. Nenhum guarda patrulhando o caminho, nenhuma empregada com o olhar atento, nem mesmo o implacável secretário do juiz que, por mais que tente, não consegue esconder sua curiosidade inquieta. A área está livre, e isso só pode significar uma coisa.
— Venha, então. — A palavra sai de meus lábios como uma promessa. Sorrio, mal conseguindo esconder o prazer da liberdade que encontramos naquele momento. Ele me olha com um brilho de compreensão, e é como se o resto do mundo desaparecesse.
Nos dirigimos para o canto mais escondido do jardim, atrás de uma grande sempre-viva, cuja copa densa oferece um abrigo perfeito contra os olhos curiosos da muralha do palácio. O ambiente é fresco, o solo coberto pela grama que amacia os nossos corpos enquanto nos acomodamos ali, à sombra da árvore. Em mim, há uma sensação estranha, como se o tempo se esticasse e se tornasse mais suave, mais indulgente. E, com um suspiro, enfio a mão sob a árvore, como se estivesse abrindo um presente de Natal há muito desejado, uma surpresa que só nós dois podemos compartilhar.
Nathaniel, com um sorriso travesso, retira a rolha da garrafa com os dentes, uma exibição que faz o meu coração bater mais rápido. Ele toma um gole profundo e sorri, satisfeito com o sabor que lhe aquece a garganta. É a nossa forma de ser... elegantes de uma maneira peculiar.
Então, de repente, ele engasga, os olhos se arregalam e a garrafa escapa de suas mãos, como se o líquido fosse algo impossível de engolir. Ele tosse, tentando recuperar o ar. Eu rio, mas antes que ele possa protestar, pego a garrafa com um gesto rápido, quase instintivo, e levo-a aos lábios. Não posso hesitar, não com o olhar dele sobre mim, esperando. Engulo o conteúdo quente e, num instante, sinto uma explosão de fogo percorrendo a minha garganta.
E, logo, o arrependimento me invade, como uma sombra que se arrasta silenciosamente. A sensação é implacável, como se eu tivesse bebido uma chama. Como uma dama, o único som que sai é o sussurro, quase um lamento.
— Queima —, eu digo, a voz tremendo ligeiramente, os olhos se enchendo de lágrimas pela ardência.
Nathaniel me observa, os olhos brilhando de uma forma que só ele consegue. Ele pisca, como se estivesse se divertindo com minha reação.
— Isso significa que é bom —, ele responde, com a confiança de quem acaba de declarar uma verdade absoluta.
Rimos juntos e bebemos mais, e logo estamos rindo de novo, tossindo e tentando nos manter firmes. Mas a leveza, a sensação de estar flutuando, de ser tocada pela despreocupação da vida, toma conta de mim. Meus pés parecem estar flutuando sobre a grama, meu corpo leve como o ar. Nathaniel, então, tira de seu bolso um cachimbo de madeira, esculpido à mão, que ele começa a examinar como se fosse uma peça rara, algo valioso.
— Não, Nathaniel, não o cachimbo —, eu digo, antes mesmo que ele possa acendê-lo.
Ele olha para mim com um sorriso enigmático, quase desafiador.
— Eu gosto do cachimbo —, ele murmura, a voz baixa e cheia de uma certeza que me faz sorrir também. — Isso me faz parecer distinto.
Eu rio, sacudindo a cabeça com a ironia de quem já viu isso muitas vezes.
— Isso faz você parecer Sherlock —, eu brinco, o tom da minha voz cheio de zombaria.
Nathaniel apenas me encara, o sorriso malicioso não se desfazendo.
— Exatamente. Holmes é distinto.
Balanço a cabeça, rindo para mim mesma.
— Você continua dizendo essa palavra, acho que não sabe o que ela realmente significa —, eu digo, com uma leveza que vem do álcool e da diversão compartilhada.
Ele aponta para mim com o cachimbo, e é um gesto tão desafiador quanto carinhoso.
— Cale a boca, você. Ou vou guardar isso só para mim.
De repente, ele puxa um envelope de sua capa, com uma caligrafia firme e masculina. O tipo de letra que só alguém com um certo tom de autoridade usaria. Eu reconheço o envelope imediatamente, e meu coração dá um pequeno salto.
Nathaniel recebe uma carta de seu irmão a cada duas semanas. Essas cartas se tornaram uma parte inconfundível de nossa rotina. São, sem dúvida, o evento mais emocionante em nossas vidas. E, se eu pensar demais sobre isso, me sinto prestes a afogar-me no gosto amargo do uísque que ainda arde na minha língua.
Arranco a carta de seus dedos, e, sem pedir permissão, viro o papel em minhas mãos.
— Você já leu? — pergunto, curiosa, mas também com uma pontada de ansiedade.
Nathaniel a pega de volta com um sorriso.
— Não. Mas se eu fosse um cavalheiro, eu teria feito isso. Especialmente depois da última carta.
A safadeza que corre na família Valor é evidente, mas Solomon, seu irmão, tem uma natureza diferente. Mais resoluta, mais dominadora, mais... masculina. Como se o próprio ar ao seu redor fosse mais denso.
Eu reprimo uma risada tímida, pensando nas últimas histórias que ele me contou.
— Havia duas garotas egípcias. E ele também gostou delas, se me lembro bem. Ao mesmo tempo.
As cartas de Solomon são sempre uma mistura incomum de inteligência afiada, elegância e uma vulgaridade irresistível. Às vezes, ele desenha algo nelas, e, embora eu nunca tenha dito isso a Nathaniel, ele é um artista impressionante. As cartas de Solomon são mais emocionantes do que qualquer filme e mais divertidas do que qualquer espetáculo do palácio.
Elas são minha janela para o mundo exterior. O mundo real. O mundo onde os corpos suam, onde as pessoas amam com uma intensidade selvagem, onde as brigas podem ser resolvidas com palavras afiadas ou com punhos. Onde a vida não é regulada por títulos ou etiqueta, onde as regras não importam, onde tudo acontece no calor do momento. Um mundo onde as pessoas andam descalças na grama e comem com as mãos. O tipo de mundo que parece tão distante, mas, ao mesmo tempo, tão próximo.
Nathaniel segurava o envelope com a cautela de quem manipula um tesouro raro. O papel, já amarelado nas bordas, guardava um peso que ia além de sua fragilidade. Com um suspiro que parecia carregar um século de lembranças, ele desdobrou a carta, ignorando o breve protesto de tosse que escapou de seus lábios graças ao cachimbo, que ele insistia em usar, mesmo sabendo que não devia. E então, com um misto de expectativa e melancolia, seus olhos começaram a percorrer as linhas cuidadosamente escritas.
Querido Nathaniel,
Fiz uma breve parada na Suécia, apenas o suficiente para reabastecer os equipamentos antes de seguir rumo à Groenlândia, onde uma expedição de escalada me aguarda. Cheguei de trem, improvisado em um vagão de carga. Não é exatamente a forma mais elegante de viajar, mas há um certo fascínio em sua simplicidade, uma liberdade quase poética em carregar todo o seu mundo nas costas, amarrado a uma mochila. Experimente algum dia, se tiver a oportunidade. Garanto que vale a pena.
No caminho, dividi espaço com uma família de indigentes — uma mãe radiante em sua resiliência, um pai calado mas atento, um garotinho de olhos curiosos e uma menina com um sorriso que parecia desarmar o próprio universo. Jantamos juntos, um gesto tão simples, mas que iluminou a noite deles. Apesar de tudo, eles eram felizes. Não o tipo de felicidade ruidosa, mas uma calma, uma gratidão silenciosa que quase me fez invejá-los. O menino, Nathaniel, tinha algo de você. Talvez fosse o cabelo escuro ou os óculos grandes demais, ajustados apenas o suficiente para funcionar, mas houve um instante em que foi impossível não lembrar de nosso passado. Antes de partir, deixei algumas coroas ao lado dele enquanto dormia. Foi o mínimo que pude fazer, mas espero que tenha sido o suficiente para comprar mais algumas noites tranquilas para eles."
Ah, Solomon Valor...
É engraçado como ele vive em minha mente. Eu nunca vi uma fotografia sua, mas o homem que imagino é uma força da natureza: um herói moldado pela poeira e pelo sol, com olhos que convidam a se perder e uma risada que poderia derrubar as muralhas de um castelo. Ele é o tipo de homem que consegue fazer o impossível parecer trivial — trabalhar o dia inteiro sob o sol, resgatar um órfão de um incêndio, beber cerveja com amigos e, ainda assim, encontrar tempo para seduzir a mulher mais bonita no recinto. Solomon Valor, o homem que desafia qualquer descrição, porque nenhuma é suficiente.
Agora, escrevo para você deste canto tranquilo do mundo.
Minha tenda é iluminada por uma fogueira bruxuleante, e acima de mim, a aurora boreal transforma o céu em um espetáculo vivo. Ouvi dizer que é uma visão que desafia as palavras, e agora entendo por quê. Não há metáfora que capture o que é assistir às cores dançando: o verde que serpenteia como um rio, o vermelho apaixonado que se mistura ao púrpura profundo, todos juntos em um balé cósmico. É como se o próprio céu estivesse nos contando uma história, uma que só faz sentido quando vista. Gostaria que você estivesse aqui, Nathaniel. Gostaria de dividir isso com você.
Ficarei na Suécia até o final da semana. Envie sua resposta para o endereço que deixei na Groenlândia. Espero que esteja bem, irmãozinho. Quero ouvir de você mais do que consigo expressar. Ah, e um conselho: mantenha-se longe de problemas. Ou, se não puder evitá-los, ao menos não seja pego. E, por favor, não faça nada que eu não faria — embora, admito, essa lista seja absurdamente curta.
Com todo meu afeto,
Seu irmão,
Solomon Hadrian Valor
Por vezes, ele se permite ficar em um lugar por algumas semanas, talvez meses, mas nunca o suficiente para criar raízes. É como se algo invisível o puxasse para longe, como o vento que empurra as folhas sem rumo certo. Vejo os olhos de Nathaniel reluzirem na última linha da página, uma faísca brincalhona antes que seus lábios se curvem em um sorriso que parece guardar segredos que jamais saberei.
A assinatura de Solomon vem logo abaixo, fechando a carta com um toque que só ele poderia dar. "Estrela."
Estrela. Esse é o apelido que ele me deu, um nome que desliza pela página como um sussurro. É o que Nathaniel lhe contou sobre mim — um nome simples, despretensioso, que ele transformou em algo luminoso, quase etéreo.
E, mesmo sabendo o quão bobo isso soa, sinto aquela onda de calor percorrer meu corpo, rápida e fugaz, como uma descarga elétrica inesperada. É ridículo. Ridículo como um nome tão simples pode me atingir tão profundamente, mais ridículo ainda é admitir que espero suas cartas apenas para vê-lo escrito novamente.
Ao terminar de ler, Nathaniel ficou imóvel por um instante, como se as palavras ainda pairassem no ar ao seu redor, criando um casulo de emoções. Ele dobrou a carta com cuidado, o peito apertado por um misto de saudade e reverência. Lá fora, o mundo continuava seu curso, mas, dentro desses muros, era como se a existência inteira estivesse suspensa, orbitando em torno de uma folha de papel.
— Está corando, Esther? — Nathaniel pergunta com aquele sorriso travesso que ele sempre usa quando está prestes a me provocar.
Eu reviro os olhos, tentando esconder o calor subindo até minhas bochechas. — Não estou corando. É só o seu maldito uísque irlandês fazendo efeito. Não deveria beber isso tão rápido.
Para disfarçar, estico a mão, pego a carta que ele acabou de trazer e me deito na grama úmida e fresca, sentindo o aroma da noite ao meu redor. A luz da lua ilumina o papel em minhas mãos enquanto eu o examino atentamente, certificando-me de que Nathaniel não tenha deixado nenhum detalhe importante de fora. É um hábito meu: confiar desconfiando. Mas então, quase sem pensar, levo a carta ao nariz e inspiro fundo. Há algo no cheiro – um toque de pinho e madeira cortada – que me transporta para um lugar distante e reconfortante.
— Espera aí... — Nathaniel inclina a cabeça, os olhos brilhando com diversão. — Você acabou de cheirar a carta do meu irmão?
Congelo por um instante. Talvez meu gesto não tenha sido tão sutil quanto imaginei.
— Não sei do que você está falando. — Respondo com a melhor cara de inocência que consigo, o tom firme como o de um político bem treinado.
Nathaniel ri, uma gargalhada baixa e arrastada que faz meu estômago revirar. — Você cheirou, sim! Minha pequena princesa sorrateira e farejadora. Não negue, eu vi!
— Você é maluco. — Tento afastar o assunto, mas já sei que ele não vai deixar barato.
O tom dele muda para uma provocação cantarolada. — Acho que você tem uma queda pelo Solomon.
Reviro os olhos novamente, mas desta vez com mais força, enquanto mantenho meus lábios cerrados. Sei que se abrir a boca, ele terá ainda mais munição. Nathaniel se inclina um pouco mais perto, como se quisesse arrancar uma confissão de mim à força.
— Você acha que ele é incrível, não acha? — Ele insiste, um sorriso perigosamente convencido se espalhando pelo rosto.
— Acho que o cheiro do seu cachimbo está afetando seu cérebro. — Respondo finalmente, tentando parecer indiferente.
— Ah, vou contar para ele. — Nathaniel provoca, quase em um sussurro, como se fosse um segredo compartilhado entre nós. — Vou dizer: "Solomon, a princesa Esther está completamente apaixonada por você."
A essa altura, já estou farta. Em um movimento rápido e certeiro, minha mão dispara e arranca um pequeno punhado de cabelo da nuca dele. O som de sua exclamação de dor é uma doce vitória.
— Ai! Isso foi covardia! — Ele protesta, massageando o ponto dolorido enquanto me lança um olhar de falso ultraje.
— Só estou me defendendo. — Digo, finalmente deixando escapar um sorriso satisfeito, enquanto volto a me concentrar na carta.
Rindo de um jeito que parecia fazer o ar ao nosso redor vibrar de leveza, Nathaniel guardou a carta no bolso interno do casaco. Em seguida, deitou-se na grama ao meu lado, tão próximo que as nossas cabeças ficaram separadas apenas por um sopro de distância. A noite estava fresca, o aroma de terra e orvalho nos envolvendo como um abraço silencioso.
— Acho que seu novo secretário gosta de você — murmurou ele, a voz tingida de um tom brincalhão que não conseguia esconder completamente a sinceridade.
Harry, o mais recente acréscimo à minha equipe, era um homem envolto em um mistério cortante e austero, como se carregasse no olhar mais do que qualquer um pudesse decifrar. Revirei os olhos, já cansada desse tipo de insinuação.
— Que absurdo.
Nathaniel virou a cabeça em minha direção, os olhos fixos nos meus, como se quisesse arrancar a verdade que eu me recusava a admitir.
— Estou falando sério. Há algo na maneira como ele observa você. Não é só profissional, você sabe.
Suspirei, desviando o olhar para o céu. As estrelas estavam espetacularmente brilhantes naquela noite, como se mil fragmentos de prata tivessem sido derramados sobre um véu negro. Minha mente, porém, não estava ali; vagueava pela lembrança da carta de Solomon.
— Você já desejou trocar de lugar com Solomon? — perguntei, quase em um sussurro. — Que fosse você quem tivesse ido embora, e ele tivesse ficado aqui?
Nathaniel permaneceu em silêncio por um momento, e quando olhei para ele, seu rosto parecia quase etéreo sob a luz pálida das estrelas, como uma escultura de mármore viva, marcada por um toque de humanidade rebelde.
— Não. — Sua resposta foi firme, mas não sem um tom de melancolia. — Não pude ir para o exército por causa da asma, mas sempre quis encontrar o meu propósito. Algo além de simplesmente herdar o dinheiro dos Valor. O Parlamento é minha chance de fazer isso, de deixar minha marca. Quem sabe, talvez, se eu fizer isso direito, alguém em algum lugar se lembre de mim. Acho que eu gostaria disso... ser lembrado.
Virei-me para ele, capturando aquele instante de vulnerabilidade que raramente escapava da armadura de Nathaniel.
— Eu vou me lembrar de você.
Ele sorriu de leve, um sorriso tão suave quanto a brisa que nos envolvia.
— Bem, pelo menos já tenho uma pessoa — brincou, embora houvesse um brilho verdadeiro em seus olhos.
— Sou herdeira do trono, bobo — repliquei, arqueando uma sobrancelha. — Minha lembrança vale muito.
Nathaniel soltou um suspiro curto, quase um riso abafado, antes de virar o jogo:
— E você? Já desejou ser Olivia?
Pensei em Olivia, minha irmã mais nova, cuja rebeldia parecia não ter limites desde que mamãe se foi. Se eu me atrevia a dobrar regras aqui e ali, Olivia as destruía por completo. Saias foram trocadas por calças, e o sutiã, às vezes, ficava esquecido. Ontem, ela havia sido flagrada pela segunda vez naquele mês com um menino no quarto, um parente distante e, para o horror de papai, filho de um conde. Era um escândalo que parecia crescer a cada dia.
— Não. — Balancei a cabeça, sentindo a convicção crescer dentro de mim. — Eu não trocaria de lugar com Olivia. Esta vida pode ser sufocante, estúpida até, mas eu sei que vou fazer algo incrível, Nathaniel. Sinto isso nos ossos. Ser a primeira a romper barreiras nunca é fácil, mas quando eu conseguir... — Respirei fundo, encarando o brilho das estrelas. — Vou mudar o mundo.
Nathaniel me observou por um longo momento, um sorriso enigmático nos lábios, como se enxergasse algo em mim que eu ainda não podia ver.
— Tenho certeza de que vai — disse ele, tão baixo que parecia uma promessa gravada no silêncio da noite.
Inclino a cabeça para o céu, deixando que o frescor da noite acaricie minha pele, mas, em minha mente, não há escuridão. Em vez disso, vejo redemoinhos vibrantes: verde vivo, roxo profundo e um vermelho-alaranjado ardente, como fogo correndo livre. A imagem é clara, quase tangível, mesmo que nunca tenha visto nada parecido.
— Ainda assim... aurora boreal... deve ser incrível — murmuro, e minha voz carrega um tom de saudade que nem tento disfarçar. O anseio escapa como um sussurro involuntário, revelando um desejo maior do que qualquer muralha que me cerca. Quero algo além do previsível, algo selvagem, que não obedeça ordens ou protocolos. Algo real.
— Eu adoraria ver isso.
Nathaniel, sentado ao meu lado na grama, arranca distraidamente algumas folhas e as deixa cair. Ele me olha, seus olhos castanhos brilhando com uma mistura de provocação e sinceridade.
— Então, foda-se tudo e vá ver.
Sua resposta é tão direta que quase me faz rir. Ele fala como sempre falou: sem rodeios, sem cerimônias. Nathaniel é um homem de impulsos; faz o que quer, sem pedir permissão ao mundo.
— Não é tão simples assim — balanço a cabeça, sentindo o peso invisível da responsabilidade. — Meu pai nunca permitiria. E mesmo que eu conseguisse convencê-lo... Não seria como Solomon, acampando em uma colina sob as estrelas, só com uma fogueira e uma tenda. Haveria seguranças, fotógrafos, empregados. Seria um espetáculo, não uma aventura.
Nathaniel solta uma risada curta, mas há algo de cúmplice nela, como se entendesse mais do que deixa transparecer.
— Sim, pobre princesa lamentável — brinco, erguendo as mãos em um gesto dramático.
Ele se levanta com um movimento fluido, estende a mão para mim e me puxa para cima, o toque dele firme, caloroso. — Então, hora de dormir, Princesa Lamentável.
Sorrio, apesar de mim mesma. — Vou. Assim que terminar minha leitura obrigatória.
Nathaniel leva uma das mãos ao céu, o sorriso se transformando em pura teatralidade. Com seus cabelos escuros bagunçados e uma expressão deliberadamente séria, ele recita: — Espelho, espelho meu, qual é a coisa mais chata de todas?
— Legislação comercial! — respondemos juntos, e o som das nossas risadas ecoa na noite.
Descobri recentemente um termo curioso em um programa americano: nerds. Acho que, por definição, é exatamente o que somos. Um príncipe e seu conselheiro nerd, discutindo comércio às vésperas da madrugada.
Nathaniel me acompanha até a porta.
— Boa noite, Nathaniel.
Ele faz uma reverência exagerada, o tipo de gesto que deveria ser respeitoso, mas nele sempre tem um toque de irreverência.
— Bons sonhos, Esther.
E com isso, ele enfia as mãos nos bolsos e se afasta, assobiando uma melodia tão leve e alegre que me faz desejar, por um breve momento, ser como ele. Livre de amarras, dono do próprio destino.
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