𝐂𝐇𝐀𝐏𝐓𝐄𝐑 𝐓𝐇𝐑𝐄𝐄
Palácio da Aurora, 2024
Começou como todas as calamidades realmente começam: com uma sombra quase imperceptível, uma hesitação que se poderia confundir com distração, um vislumbre de dor que um homem orgulhoso tenta esconder, mas que um filho atento não pode ignorar. Meu pai mascarava bem, como sempre fez, mas era impossível não notar os rumores que, como um eco distante, logo tomaram os corredores do palácio. Sussurros que pareciam emanar das paredes de mármore, crescendo como uma umidade que impregna tudo, até se tornar impossível ignorar.
Os sinais vieram devagar, mas se tornaram irrefutáveis. Reuniões adiadas sem explicações, compromissos públicos delegados a mim em silêncio, dias em que ele sequer deixava seus aposentos. Até que a verdade foi inegável: o rei, meu pai, estava sucumbindo. E agora, tudo culmina aqui, no limiar entre a vida e a história, nos aposentos reais que mais parecem um altar sombrio, onde o destino se apresenta sem piedade.
Na antecâmara, rostos que já me eram familiares formam um mosaico de expressões tão contraditórias quanto as correntes que movem o coração humano. Meu tio, o visconde de Monteclair, está entre eles. Apesar de suas diferenças e de uma relação fria com meu pai, sua presença é protocolar, como membro do Conselho Consultivo. E, no entanto, vejo nele o que vejo em outros ali: um misto de condolência e expectativa, como abutres que, apesar da plumagem elegante, não podem esconder o que realmente são.
Porque é assim que o poder funciona.
Dois dias atrás, o primeiro-ministro disse-me as palavras que todos temiam ouvir:
— O rei está morrendo.
E agora, tudo segue o roteiro ensaiado pela tradição e pela necessidade. O segredo é crucial. Porque transições nunca são simples, mesmo nas monarquias mais regulamentadas. Antigamente, significavam sangue, guerras, cabeças que rolavam por espadas e intrigas. Hoje, somos mais contidos, talvez até civilizados, mas as motivações – ambição, medo, ganância – nunca desaparecem, apenas mudam de forma.
A porta dos aposentos reais se abre. Olivia e Liam saem. Sempre tão reservado em suas emoções, traz o rosto marcado por lágrimas que ele tenta conter. Ele me olha e força um sorriso, mas o gesto é tão frágil que parece quebrar algo dentro de mim, algo que mantive intacto até agora. Olivia, por sua vez, não tenta esconder a dor. Sempre tão sincera, minha irmã soluça com uma intensidade desarmante, enquanto um jovem lacaio loiro a guia para longe, com uma mão protetora em seu ombro. Um toque que, em outro momento, eu notaria como excessivamente íntimo. Agora, simplesmente não consigo reunir energia para me importar.
— O rei está perguntando por você, Alteza — diz o primeiro-ministro, sua voz medida e formal.
Olho para Nathaniel ao meu lado. Seus olhos verdes, sempre tão tranquilos, encontram os meus e parecem sussurrar em silêncio: Estou com você. Você não está sozinho.
Mas tudo isso ainda parece um sonho nebuloso, um daqueles momentos que sabemos que virão, mas nunca realmente acreditamos que chegarão.
Quando entro no quarto interno, vejo o corpo do meu pai, frágil como nunca imaginei que ele pudesse ser. Os fios dos monitores e os tubos que administram sua medicação são testemunhas silenciosas de sua luta contra o inevitável. O médico inclina-se em uma reverência antes de recuar, respeitoso, enquanto o Ministro do Interior observa de seu posto, como uma estátua fria, uma lembrança de que até os momentos mais íntimos da realeza são assuntos de estado.
Aproximo-me da cama e, por um momento, hesito. Minha mão paira sobre a dele antes de tocar sua pele fina como papel. E, naquele toque, sinto o peso de algo que está além das palavras, além do título, além de qualquer preparação. Sinto o fim de uma era e o início de algo que ainda não consigo compreender.
— Sou eu, pai. Esther. Estou aqui.
Minhas palavras flutuam no ar, hesitantes, mas carregadas de uma força que nem eu sabia possuir. Lentamente, seus olhos entreabertos me encontram, e há um som rouco, quase como um suspiro preso, vindo de seu peito cansado. Seus lábios estão rachados e tingidos de um azul pálido, mas, mesmo assim, ele sorri — um sorriso que carrega tanto cansaço quanto amor.
— Esther... — Sua voz é frágil, um fio tão fino que me obriga a me inclinar para escutá-lo. — Minha querida menina... eu te amo.
As palavras me atingem como uma onda inesperada, fria e avassaladora. O que? É tudo que consigo pensar. Meu coração tropeça na surpresa, e mesmo que eu não diga nada, ele percebe. Seu sorriso vacila, frágil como o resto de seu corpo, e um brilho de arrependimento sombreia seus olhos.
— Você não sabia... — Ele sussurra, e cada palavra parece pesar toneladas. — Eu deveria ter feito melhor por você, Esther. Ensinar mais... mostrar mais. Eu... falhei.
Meu peito aperta ao ouvir aquilo, e, quase por instinto, seguro sua mão entre as minhas. É uma mão frágil, esquelética, mas cheia de histórias que ele nunca contou. Sinto sua pele fria e fina sob meus dedos, e algo dentro de mim começa a mudar. Como uma cortina que se abre lentamente, vejo algo que antes estava escondido. Ele pode não ter sido o pai que eu sonhava, cheio de gestos efusivos, cócegas e risos despreocupados, mas me deu tudo o que era necessário — tudo o que ele podia dar.
E eu não vou deixá-lo partir com a ideia de que falhou.
— Não diga isso, pai. Não... — Minha voz falha, e preciso respirar fundo para continuar. — Você fez tudo certo, tudo. Você me preparou para isso, mesmo que eu não visse. Eu vou te fazer orgulhoso, prometo. Servirei Aethyria com honra e dignidade. Você verá.
Seus dedos trêmulos apertam os meus, e há um brilho em seus olhos, mesmo na exaustão.
— Orgulho... sempre tive orgulho de você, Esther. — Ele faz uma pausa, cada palavra uma batalha. — Mas não... sirva. Reine. Com um punho de ferro... e um toque de veludo. Confie... apenas... em si mesma.
Minhas lágrimas ameaçam cair, mas eu as contenho. Não aqui, não agora. Ele precisa da minha força, não da minha fraqueza.
— Eu prometo, pai. — Minha voz sai baixa, mas firme.
Seus olhos se fecham lentamente, e a sala mergulha num silêncio pesado, quebrado apenas pelo bip constante da máquina e pela respiração irregular dele. Cada segundo parece se arrastar, e o peso da responsabilidade que ele acaba de transferir para mim repousa em meus ombros como uma capa que nunca desejei vestir.
O ministro se aproxima, interrompendo meus pensamentos.
— Princesa Esther, deseja voltar para a antecâmara? Eles estão tomando chá.
Chá. É claro que estão. Porque, no final, o mundo sempre acha que chá pode consertar tudo.
— Não. Ficarei com ele.
Os Reis são homens, afinal. Eles nascem, governam e, no fim, morrem como qualquer outro homem.
Mas este homem, meu pai, não morrerá sozinho. Não enquanto eu estiver aqui.
Levanto-me devagar, sentindo o peso do momento nos ombros, e me inclino para beijar a bochecha de meu pai. A pele dele está áspera, endurecida pelo tempo e pelas responsabilidades que carregou por toda uma vida. É o primeiro beijo que lhe dou assim, de forma tão íntima e vulnerável. Também sei que será o último. Sento-me novamente ao seu lado, entrelaço minha mão na dele — agora fria e imóvel — e começo uma conversa silenciosa, um diálogo que só existe em minha mente.
Conto-lhe tudo o que nunca tive coragem de dizer em vida. Falo sobre Nathaniel e sobre os desafios que enfrentamos juntos, os momentos em que duvidei, chorei e lutei para seguir em frente. Compartilho com ele os meus sonhos para Aethyria, as visões de um futuro que talvez ele nunca tenha imaginado. Revelo um pedaço de mim que ele nunca conheceu — a parte que é livre, que ri alto, que é tola e, às vezes, descontroladamente impulsiva. Confesso o quanto ser quem sou pode ser exaustivo, como a solidão às vezes aperta o peito, e como logo depois me sinto culpada por sentir isso, sabendo que, apesar de tudo, sou incrivelmente sortuda. Digo que sou grata. Pela força que ele me deu, pelo amor em seus olhares discretos, pela sabedoria em suas palavras poucas, mas certeiras.
E então, com o coração apertado, digo adeus.
Mas, mesmo enquanto falo, nada disso parece real. Nada no ar daquela sala diz que ele realmente partiu. Nem quando o som do monitor finalmente cessa, nem quando o médico confirma o óbvio: não há mais respiração, nem pulsação. Nem quando a hora exata é anotada e registrada, ou quando o Ministro do Interior sussurra algo ao Primeiro-Ministro com um ar grave e formal.
— Sua Majestade... — a voz interrompe meus pensamentos.
Não me movo. Não levanto os olhos. Minha mente ainda está presa no instante anterior, onde o mundo parecia intacto.
— Vossa Majestade — ele repete, dessa vez com mais firmeza.
É nesse momento que compreendo. Ele está falando comigo. Não há mais um rei. Agora, sou eu. Pode haver muitos títulos reais em uma linhagem, mas só existe uma majestade que carrega a coroa.
A mão ossuda do ministro se estende para mim, e eu a aceito com hesitação enquanto me levanto. A porta do quarto se abre, revelando a sala ao lado, cheia de rostos que esperam, que observam, que já conhecem o que está para acontecer.
A proclamação do ministro corta o ar como uma espada:
— O rei está morto. Viva a rainha.
As palavras ecoam, preenchendo o espaço vazio e atingindo minha alma. Os nobres respondem em uníssono, como ditam as tradições ancestrais:
— Viva a Rainha Esther!
E então, nesse instante — nesse único instante — tudo se torna tão terrivelmente claro. A névoa de negação e incredulidade se dissipa. A realidade me atinge com toda a força. Sou Esther. Sou a rainha.
Pronta ou não, a coroa está vindo.
Dois meses depois
Catedral de Solarys
O dia da minha coroação chegou envolto em um frio cortante, como se o próprio inverno tivesse decidido marcar presença na cerimônia. Do alto das torres do palácio, pingentes de gelo brilhantes pendem como pequenos cristais, enquanto o vapor de cada respiração toma forma no ar, dançando em rajadas brancas e efêmeras.
Meu vestido, uma obra-prima de cetim, é ao mesmo tempo delicado e imponente. A cauda se arrasta longa e majestosa, enquanto o corpete justo realça a curva da cintura. Na saia, a Rosa de Aethyria surge bordada em fios de prata, cada pétala parecendo pulsar com vida própria. Nos lábios, o vermelho rubi contrasta com a palidez do dia, enquanto meus cílios negros, tão espessos quanto fuligem, criam um olhar digno de uma pintura. Brincos de diamantes, herança de minha mãe, pendem dos lóbulos das minhas orelhas, e o manto da coroação repousa sobre meus ombros, estendendo-se atrás de mim em metros de pele branca, imaculada, como a neve intocada.
Por um instante, sinto-me como uma figura de lenda – uma caçadora mítica dos gelos eternos, uma Rainha do Inverno, senhora e regente de um reino de neve e gelo.
A carruagem que me trouxe é antiga, uma relíquia familiar, marcada pela história. Foi nela que meu pai viajou para esta mesma catedral, assim como o pai dele antes dele. Quando as portas se abrem e a luz do dia me atinge, sou saudada por uma explosão de flashes – câmeras capturando cada detalhe, como estrelas em um céu escuro, piscando incessantes. A multidão reunida ao longo das ruas ruge como uma tempestade distante. Mas não olho para eles. Meus olhos permanecem fixos no caminho à frente, na grande escadaria de pedra que me levará ao centro da cerimônia sagrada.
Subo os degraus com a cabeça erguida, como se cada passo fosse cravado na eternidade. Celebrações grandiosas estão por vir – uma coroação é sempre um evento de júbilo – mas isso pertence ao futuro. No presente, só há o peso da tradição e o sussurro da história.
O átrio da catedral me acolhe em uma quietude quase solene, quebrada apenas pela dança das cores vivas que se espalham dos vitrais. Os feixes de luz transformam o mármore em algo quase divino, como se a própria catedral estivesse viva. Então, as portas duplas se abrem com um rangido profundo, revelando a congregação lotada. Em uníssono, os presentes se levantam, suas roupas brilhantes criando um mar de opulência.
O som de tambores enche o espaço, reverberando em um ritmo imperial que ecoa em meu peito. É a mesma batida que já acompanhou outros membros da realeza – tanto em suas coroações quanto em seus momentos finais no bloco de desbastamento.
Os rostos ao meu redor, por um breve momento, perdem sua humanidade. Em um lampejo de terror, os olhos de todos parecem se escurecer, seus sorrisos se contorcem, transformando-se em algo sinistro, como se um pesadelo tivesse invadido a realidade. Meu coração vacila, meus joelhos ameaçam ceder, e por um instante, parece que a terra fugiu debaixo de mim.
Fecho os olhos com força.
E então, no meio do pavor, ouço uma voz familiar – suave como uma melodia esquecida.
"Respire, minha querida. Apenas respire."
É a voz da minha mãe, envolvente como um abraço. E logo, outra voz se une a ela, firme como o aço: meu pai, com sua última ordem.
"Reinado."
O tremor se dissipa. Meus joelhos estão de volta, sólidos como mármore. Minha coluna se endireita, e meu peito se enche de ar. Porque eu sei que fui moldada para este momento.
Fui criada para isso.
Nasci para isso.
Dou meu primeiro passo no corredor, mantendo os ombros erguidos e a coluna firme como um pilar que sustenta um templo. Cada movimento meu ecoa pela catedral, onde os olhos de todos parecem repousar sobre mim, mas os únicos olhares que realmente me importam são os de Nathaniel, Liam e Olivia. Eles estão lá, alinhados como sentinelas, e, no fundo, sei que é por mim. Eles me apoiam, me ancoram. Mas enquanto avanço, algo inescapável me atravessa como um vento frio: ninguém estará à minha frente para me proteger novamente.
Nunca mais.
Eu serei o escudo e a espada da minha própria história. Estarei sempre na linha de frente — e sempre sozinha.
Quando finalmente chego ao altar, onde o Arcebispo me aguarda, o peso da jornada que me trouxe aqui se mistura com o peso maior do que está por vir. Subo os degraus em direção ao trono, consciente de que cada passo meu é uma renúncia ao que já fui. A cerimônia começa com uma solenidade quase sobrenatural. O Arcebispo derrama óleo sobre minha testa, murmurando palavras em latim que reverberam como feitiços antigos. Recito o juramento que foi ensinado, moldado e exigido de mim. Cada palavra soa certa, mas distante, como se fossem de outra pessoa e não minhas.
Então, um dos Lordes se aproxima, com mãos tão firmes quanto o ouro do cetro que ele me entrega. Logo em seguida, o orbe de joias reluz sob a luz filtrada dos vitrais da catedral, e um anel desliza em meu dedo direito. Peças de um quebra-cabeça que dizem que agora sou algo mais. Algo maior.
E, por fim, o ápice: a Coroa de Santa Amélia. O Arcebispo a ergue com uma reverência ensaiada e a deposita em minha cabeça como se ela fosse uma chave capaz de destrancar algo escondido dentro de mim. Espero pelo momento. Pela faísca. Pela mudança que deve me transformar de Princesa em Rainha. Pela onda avassaladora de poder ou pela realização avassaladora de responsabilidade. Espero pelo eco da história me atravessando.
Mas tudo que sinto é... o peso da coroa. E um silêncio interno desconcertante.
Pisco. Será que deveria ter sido mais dramático? Um clarão de sabedoria ancestral? Uma força irresistível correndo por minhas veias? Mas nada.
Ainda sou eu. Eu, com um vestido pesado demais e uma coroa que ameaça escorregar se eu me inclinar para o lado errado. Eu, com todas as expectativas do mundo repousando sobre os meus ombros, mas nenhuma epifania para me guiar.
Olho furtivamente para os bispos. Eles estão imóveis, compenetrados, como se tivessem acabado de testemunhar um milagre que só eu não senti. A congregação nos bancos mantém os olhos fixos em mim, suas expressões cheias de devoção e crença. Ninguém parece notar o quanto tudo isso parece... vazio.
Levanto-me, ajustando-me ao peso simbólico e físico da coroa, e desço pelo corredor como se cada passo fosse uma lição de majestade ensaiada. As cabeças se curvam à minha passagem, os gestos de deferência mais meticulosos do que qualquer coisa que já vi antes. Lá fora, flashes das câmeras e gritos de aclamação me cercam, mas não consigo me sentir mais alta ou mais poderosa. Apenas... cansada.
Quando chego à carruagem, sigo de volta ao palácio em um percurso cheio de pompa e multidões. Durante a hora seguinte, cumprimento ministros, embaixadores e dignitários que me parabenizam com sorrisos ensaiados e palavras cuidadosamente escolhidas. E eu faço o mesmo. Dou os mesmos sorrisos, aceno as mesmas vezes, digo as frases certas.
Mas por dentro, tudo parece uma performance em um palco grandioso demais para uma atriz que ainda não decorou suas falas. Um faz-de-conta. Um jogo que não escolhi, mas que agora sou obrigada a jogar.
A única coisa que me pergunto é: quanto tempo vai demorar para eu realmente sentir que me tornei Rainha? Ou será que esse dia nunca vai chegar?
Sob o manto do entardecer, chega o momento de pisar na varanda – aquele instante tão aguardado, a cereja do espetáculo que a imprensa tanto adora.
Eu avanço sozinho, cruzando o limiar com passos que carregam o peso da expectativa e o brilho de uma promessa. A brisa que me encontra é fria, um abraço etéreo que desliza pela minha pele como dedos delicados e gelados, enviando arrepios que parecem mais emoção do que clima. Meus dedos encontram a pedra fria da balaustrada, e meus olhos são atraídos para o mar de vida abaixo.
Há uma vastidão de rostos, um oceano humano que se estende até onde a vista alcança. Homens, mulheres, crianças – cada um com um sorriso que poderia iluminar a noite mais escura. Eles gritam, aplaudem, acenam com uma paixão tão palpável que parece elevar o ar ao meu redor. Há lágrimas brilhando nos olhos de muitos, rastros líquidos que refletem a luz, mas nenhuma tristeza. Só há devoção, uma reverência quase inacreditável.
Eles estão ali. Por mim.
A realização é tão grande, tão avassaladora, que quase me faz vacilar. Já estive diante de multidões antes. Já vi rostos incontáveis olhando na minha direção, mas nunca, nunca assim. Isso é diferente. Eles não são apenas espectadores. São algo mais. Algo maior.
Meu povo.
E, pela primeira vez, compreendo o peso e a beleza desse termo.
Porque não se trata apenas de vê-los, trata-se de senti-los. O calor da energia que emana deles é quase tangível, como um cobertor invisível que me envolve. Eles me oferecem sua alegria, sua esperança, seu amor incondicional, e eu recebo tudo isso como um presente precioso. Cada célula do meu corpo parece pulsar com aquela força, como se minha alma estivesse dançando em uníssono com as batidas dos corações abaixo
É assim que deve ser, penso. Assim deve ser se apaixonar – um mergulho inesperado e vertiginoso em algo que te tira o fôlego. Ou talvez seja como segurar seu filho recém-nascido pela primeira vez, aquele instante em que você entende que daria tudo de si para proteger, cuidar, amar. É um juramento silencioso que faço, um compromisso de retribuir cada migalha desse amor com devoção absoluta.
Enquanto me perco nesse turbilhão de sentimentos, o céu decide acrescentar sua própria magia. Flocos de neve, leves e reluzentes como poeira de estrelas, começam a dançar ao meu redor. Eles caem devagar, pousando nos ombros, no cabelo, como se fossem uma bênção silenciosa enviada pelo próprio universo. É irreal. Quase sagrado.
Eu levanto a mão, acenando para eles com um sorriso que não consigo conter. "Obrigado! Obrigado a todos vocês! Olá!"
Sei que eles não podem me ouvir. Minha voz se perde na imensidão da noite e nos gritos e aplausos ensurdecedores. Mas quero que sintam o que eu sinto: que eu os vejo. Que eu os ouço. Que, assim como me entregam tudo o que têm, eu também me entrego a eles. Nunca os decepcionarei. Nunca.
Então, percebo a umidade quente escorrendo pelo meu rosto. São lágrimas – lágrimas que chegam sem aviso, mas com toda a intensidade de um coração pleno. Não de tristeza, mas de pura alegria, de um alívio que carrega a certeza de que estou exatamente onde deveria estar. Aceno até que meu braço doa, até que minha alma cansada e extasiada diga que é hora de voltar.
Com o coração ainda galopando como um cavalo em campo aberto, dou as costas ao espetáculo e entro novamente. A mágica desse momento ainda pulsa em mim, uma chama que sei que jamais se apagará.
— Quero descer. Quero falar com eles, apertar suas mãos, estar entre eles — minha voz quebra o silêncio imponente da sala, cheia de tradição e de rostos que já viram décadas de poder.
Os olhos na sala, alguns curiosos, outros nitidamente contrariados, recaem sobre mim como pesos. Uma dúzia de rostos severos me observa com uma mistura de desaprovação e incredulidade. Cada linha em seus rostos parecia uma ruga esculpida por gerações de obediência a protocolos imutáveis.
Um dos Lordes, o mais idoso e com o ar mais condescendente, dá um passo à frente. Ele limpa a garganta de forma quase teatral antes de falar, como se quisesse sublinhar a gravidade do que diria.
— Vossa Majestade... isso nunca foi feito antes.
Sinto uma pontada de frustração e deixo meu olhar passear pela sala, examinando aqueles homens que pareciam mais peças de uma relíquia do que figuras de autoridade contemporâneas. Eles viam o poder como uma máquina, um sistema intrincado de engrenagens onde cada parte tinha sua função específica. A Coroa era a chave, claro, mas o Parlamento, os Conselhos, os Lordes e os Secretários eram as partes móveis que garantiam que o grande mecanismo continuasse a funcionar. Para eles, meu papel era claro: estar no topo, intocável e distante.
Mas meu coração — e minha visão — não se encaixavam nesse molde.
— O que você quer dizer é que isso nunca foi feito antes — rebato, mantendo o tom firme, mas sem perder a suavidade necessária para não parecer desafiadora demais. — Não que não possa ser feito.
O Lorde hesita, suas sobrancelhas franzindo levemente, mas ele mantém sua postura.
— Não é seguro, Vossa Majestade. A multidão é imprevisível.
"Imprevisível." A palavra ecoa em minha mente. Não posso deixar de sorrir internamente. O povo não é imprevisível; ele é humano, real, cheio de vida e emoção. Quero me conectar com eles, quero mostrar que essa Coroa — esta responsabilidade que agora carrego — pertence tanto a eles quanto a mim.
Procuro Aidan, meu guarda-costas pessoal. Ele está encostado discretamente contra a parede, com seus olhos escuros sempre atentos, sempre prontos. Há algo na maneira como ele me olha que é mais do que devoção profissional; é como se ele pudesse ver além do peso do título, direto para a mulher que sou por baixo disso tudo.
— Aidan — chamo, minha voz agora carregando uma firmeza que até me surpreende. — Quero descer e ver as pessoas. Você pode me ajudar a fazer isso?
Ele endireita o corpo de imediato, seus olhos encontrando os meus antes de se moverem em direção ao Lorde que ainda tentava me dissuadir. Há uma determinação silenciosa em seu olhar, quase desafiadora, como se ele estivesse dizendo sem palavras: "Você ouviu a Rainha."
— Se é isso que Vossa Majestade deseja, então é isso que será feito — ele declara com firmeza. — Meus homens e eu garantiremos sua segurança.
O silêncio na sala é quase palpável. Olho novamente para o Lorde idoso e ofereço meu sorriso mais doce, um contraste calculado com o peso de minhas palavras.
— Veja só, meu caro, parece que não há problema algum.
Com isso, atravesso a sala, deixando os murmúrios abafados e olhares estupefatos para trás. Aidan e sua equipe se aproximam, formando um círculo protetor enquanto descemos as escadas em direção aos portões do palácio.
Ao atravessar os portões, o ar fresco me atinge como uma onda de liberdade. O povo está lá, suas vozes vibrando como um mar agitado, cheio de expectativa e curiosidade. Olho para eles e sinto algo se ajustar dentro de mim, como se essa fosse a última peça que faltava para que tudo se encaixasse.
E pela primeira vez, enquanto a multidão começa a se mover em minha direção, percebo que esta coroa, com todo o seu peso, é minha. E que talvez, só talvez, ela tenha sido feita sob medida para mim, afinal.
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