"Boa noite, criaturas do meu coração! Aqui quem fala é o seu radialista preferido, direto do abismo dessa cidade fodida. Hoje, um programa especial pra vocês: 'A Importância da Educação Infantil'. Quem diria, hein? Até parece que eu entendo de criança! Mas a gente finge, porque, né... o show não pode parar! KOFF-KOFF! Maldita garganta! Enfim... Hoje, temos uma convidada especial. Por favor, recebam com aplausos a dona... Como é mesmo seu nome, amor?" Ah, Luciana! Diga olá pros ouvintes."

"Boa noite... é, boa noite a todos."

"Olha só que docinho de voz, gente! Luciana, você tem filhos, não é? Dois, um casalzinho. Ah, que coisa mais linda, meu Deus! 

Sim... Joãozinho, de oito anos, e Maria, de seis. Eles...Parem! Pelo amor de Deus, parem! Maria, solta o cabelo do seu irmão agora! Olha, desculpa... Eu... Eu tô cansada, pra ser sincera. Muito cansada."

"Calma aí, calma aí! Antes de você começar, eu quero ouvir os anjinhos! Joãozinho, Maria, dá um oizinho pros nossos ouvintes!

Maria solta o cabelo de João por um segundo, olha para o microfone e diz, com a voz cheia de malícia.

"Vão todos à merda, filhos da puta!"

"É isso aí! Capetas!" completa Joãozinho.

"HAHAHAHAHAHA! EU NÃO ACREDITO! Meu Deus, isso é ouro puro! Vocês ouviram isso, galera? Essas crianças são geniais! Falam o que eu mesmo queria dizer a vocês! Maria, manda mais uma!"

"E você, tio idiota da rádio, vai se foder! Que proglama, plogla...plo...ploglammm... aqui pra você ó!

"HAHAHAHA! João, sua vez! Fala pra mim o que você acha do tio."

"Você é um desgraçado que nem minha mãe, que não serve pra nada!

A coisa ri descontroladamente.

"HAHAHAHA! EU NÃO AGUENTO MAIS! Essas crianças são perfeitas, Luci! Que criação maravilhosa! Diga pra gente: como é ser mãe desses dois?"

"É... complicado. Eles brigam muito. Muito mesmo. Eu não consigo mais... Eles se atacam por qualquer coisa!"

"Brigam? Oh, não! Mas o que eles fazem? Xingam? Puxam cabelo? Ah, me conta, não economiza nos detalhes!"

"Eles... eles se machucam de verdade. Semana passada, Joãozinho jogou água fervendo nas costas da Maria. Ela perdeu parte da pele. E ontem, Maria arrancou dois dedos dele com um alicate. Eu não consigo mais conversar, dormir, ou sequer pensar direito."

O menino pega uma tesoura do bolso e começa a afiá-la na beirada da mesa.

"JOÃO! Larga isso agora! Você tá maluco?!"

Joãozinho começa a rir histericamente, apontando para a irmã.

"Eu... eu tento conversar. Tento explicar que não pode brigar, que isso é errado... PAREM! Maria, solta isso agora! João, se você chutar ela de novo, vai ver só!"

Maria grita, descontrolada.

"Ela só fala, mas nunca faz nada, tio. E eu vou arrancar o outro dedo do Joãozinho se ele pegar meu lugar no sofá de novo."

"HAHAHA! Eu amei esses moleques! Melhor que qualquer filme de terror! Mas me responde uma coisa, Lu, quando foi que isso começou?"

"Bom... Isso tudo começou quando eu disse uma vez... eu disse pra eles revidarem, sabe? Quando alguém batesse neles na escola. Queria proteger eles, mas agora...

"Vocês ouviram, queridos ouvintes? A instrução é clara: se baterem, revidem. E Luciana, como você se sente vendo seus filhos assim? Isso não tá te consumindo?"

A mulher hesita, segurando as lágrimas.

"Sim... Eu não aguento mais. Eu amo eles, mas... às vezes eu sinto que falhei como mãe."

A coisa inclina-se para frente, a voz mais séria e envolvente

"Você não falhou, meu amor. Você só precisa retomar o controle. Que tal começar agora? Dê um tapinha, só pra testar. Mostre que você ainda é a mãe."

"Eu... eu não sei se consigo, eu... não posso bater nos meus filhos..."

"Mas você já perdeu o controle, Luciana! Olha pra eles! Você acha que eles precisam de amor? Eles precisam de limites! Um simples tapa, meu anjo. Apenas UM TAPINHA. Vai ser o suficiente para mostrar quem manda."

"Eu..."

"O que você tem a perder? Dignidade? Ah, faça-me o favor! Paciência? Foi-se há tempos, não é? Então me diga, mulher, o que sobra? A chance de salvar sua sanidade. De salvar... sua vida."

Os soluços baixos da mulher preenchem a transmissão, e seus olhos cansados se enchem de lágrimas enquanto vê Joãozinho puxando tão forte o cabelo de Maria que parte do couro cabeludo da garotinha se desprende da cabeça.

"Faz logo, Luciana, ou eles vão acabar um com o outro... E com você também."

A coisa não para, ele... simplesmente não vai parar até conseguir o que quer.

Um leve som de cadeira arrastando. Os gritos da pequena Maria, que pareciam preencher cada canto do estúdio, foram abafados com um simples movimento da mão de sua mãe que estala em seu rosto.

Um som seco, um pouco fraco, mas ainda assim...

Completo silêncio no estúdio.

"HAHAHAHA! VOCÊS OUVIRAM ISSO? Que magnífico! E não acabou não! Lá vem o segundo!"

Os ouvintes ouviram... Só não conseguiram ver o Joãozinho recuando, os pequenos olhinhos arregalados, a boca aberta em estado de choque.

"LAPADA SECA DA MOLESTA!" HAHAHAHA. Finalmente! Finalmente essa cadela mostrou ao que veio!

"A mamãe nos bateu..."

O menino não consegue acreditar.

"A mamãe nos bateu..."

Maria repete, como se ela mesma precisasse acreditar.

O até então sepulcral silêncio é interrompido pelo som de passos rápidos.

"MEUS OUVINTES... MEUS DEUSES! Eles estão indo! Eles... VÃO PRA CIMA DELA! Ah, isso é magnífico! MAGNÍFICO! Não,  Isso não pode ficar sem uma trilha sonora!"

Kanye West - Gold Digger Dr. Jamie Foxx

Caro ouvinte, caso seja sensível, por favor, desligue seu rádio imediatamente.

"NÃÃÃO, NÃÃÃÃO, EU SABIA, SEUS DEMÔNIOS! O QUE FIZERAM COM MEUS FILHOS?"

"EU NEM AO MENOS VOU PRECISAR PAGAR INGRESSO, MEUS OUVINTES!

A coisa chegou em seu ápice, sua voz fica distante... Ele está andando nas paredes como uma aranha, ele quer ver em mais ângulos.

"DEUS, ME AJUDA! ME AJUDA!"

"GRITA A VONTADE, VAGABUNDA! AQUI NEM O DIABO TE OUVE!"

A coisa se mexe ao ritmo da música, suas pernas cabeludas fazem um chiado horrível.

"Joãozinho é um verdadeiro artista, meus caros ouvintes! Olha como ele abre pequenos talhos na orelha de sua mamãe! PUTA MERDA, GAROTO! EU NEM SABIA QUE TINHA ESSA COISA DENTRO DO OUVIDO!

"POR FAVOOOOR, PARA, PARAAA! AAAI! DEMO...GAHHEGEG"

"Vocês ouviram isso? Ela está IMPLORANDO, IMPLORANDO! HAHAHAHAHAHA"

A coisa ri, esganiçada.

"Isso mesmo, Maria, não fique atrás! Segura o braço dela! KOFF-KOFF! Ai, porra, isso tá bom demais! Que merda é essa que você arrancou... MEU DEUS, É PELE?! É PELE! HAHAHAHAHAHA!

Um som forte e constante escapa dos auto falantes dos rádios.

JOÃOZINHO, MEU PEQUENO PRÍNCIPE! Que ideia genial, isso! AFUNDE OS DENTES DESSA VADIA NA PANCADA, BATE, BATE, BATE! QUEBRA, QUEBRA, QUEBRA!

"Mariazinha, você precisa pisar com mais força, querida! O TIO TE AJUDA! HAHAHAHAHAHAHA.

Eu nem sabia que era possível quebrar crânios pisando...

"É  SANGUE, É DOR, É DESGRAÇA, MEUS OUVINTES! EU TÔ VENDO DE PERTINHO E NÃO CONSIGO PARAR! EU NÃO CONSIGO PARAR! AHAHAHAHAHAHA!

Essa massa disforme nas pontas de suas patas... isso era a mãe, e os filhos a comem.

"Não, crianças, não! Hahahaha, faz có... cócegas, hahahaha, HAHAHAHAHAHA! Não tem filme, não tem livro,  NÃO TEM PORRA NENHUMA QUE SUPERE ISSO AQUI!"

Transmissão encerrada.