Parte 6 - 6
Yuka acordou cedo na primeira manhã comigo. Deu-me um animado chacoalhão como despertador, tanto que quase me fez cair de susto do sofá. Aquele brilhante sorriso tirou rapidamente o mau-humor que eu sentiria em acordar naquele horário. O sono de mais de 9 horas lhe fez bem... Estava arrumada num vestido azul claro que ia até o joelho. Os cabelos penteados pra trás num rabo de cavalo, com uma franja longa até as sobrancelhas e afiadas pontas de fios até as bochechas. E seus lábios róseos estavam tão sorridentes... aqueles lábios que eu nunca me deixarei esquecer...
A felicidade que voltara ao meu rosto não me impedira de ainda ter os efeitos do susto. Um pouco tonto, levantei-me e dei-lhe erroneamente um bom dia: "Ohayogozaimatsu".
Ela respondeu risonha, mas em tom de correção: "Ohayogozaimasu".
Quem me dera poder apreciar ainda hoje seu sorriso ao acordar. Ou o café da manhã delicioso que se dispunha na mesa, à base de ovos e suco. É melhor do que encarar minha cara ranzinza no espelho e comer bolacha com café preto.
Seria muito bom se aquele meu sonho sobre ela ser minha pra sempre não passasse de sua premissa: uma fantasia da mente.
Com o passar dos dias de Yuka em minha vida, pude perceber certos comportamentos se enfatizarem nela. O choro, as dores de barriga, repentinos cansaços...
Foi numa tarde de domingo, enquanto assistíamos "O grande ditador", de Charlie Chaplin, que algo decisivo aconteceu.
Ríamos bastante com o filme, no qual mostrava o apreço pelo humor inglês dela, gênero que aprendi a gostar. Comecei tanto a gostar, que mal reparei que ela não estava mais a olhar pra tela da TV, e foi só rebobinando as memórias que consegui perceber tal detalhe na visão panorâmica. Estava mexendo no celular, quando levantou-se abruptamente, com as mãos na barriga, largando sem perceber o telefone no tapete.
Seus cabelos voavam com a presa do corpo, da sala ao banheiro. Levantei-me para segui-la, bati na porta e, antes que eu fizesse a pergunta óbvia, ouvi gemidos, vindo em seguida sons referentes a vômito e tosse.
Voltei até a sala e olhei seu celular (ignorando, inclusive, uma cena hilária na TV, onde o grande ditador "Hynkel" discursava). Ao ligar a tela, dei de cara com uma foto em preto em branco de um homem. Mais abaixo, uma imagem de pessoas ajoelhadas em frente a uma imagem emoldurada, esta cercada de flores. Pois é... minha dedução de que alguém próximo de Yuka morrera não podia ser mais óbvia. Não sei se foi uma perda recente ou seu aniversário.
O porquê dela acompanhar a vida da família na qual fugiu surgiu minimamente na cabeça. Mas passou, pois eu não fazia ideia do porquê da fuga. Foi aí que resolvi fuçar mais sua rede social. Fui no perfil dela, tentando achar publicações recente, menções a ela e qualquer foto que mostrasse sua vida social. Tinham muitas fotos em família, e de pouco tempo inclusive. E ela estava feliz nas lembranças, com sorrisos espontâneos e carinhosos, difíceis de serem comparados por qualquer um que eu já tenha visto nas falsas expressões das idols.
Exclui, então, a possibilidade dela ter fugido da família.
"Do que está fugindo, Yuka?", pensei, soando realmente curioso pela profundidade da garota pela qual eu julgava capaz de dar proteção. "Do que preciso te proteger, oras?"
Joguei o celular no sofá ao ouvir o som da chave interna do banheiro virar. Ela cruzou a sala em expressão envergonhada, um tanto brava, indo para meu quarto. A segui novamente. Quando a vi mexendo na mochila, perguntei em japonês se ela estava bem, mas ela não respondeu. Ao achar o que procurava (era uma máquina para cortar cabelo, soube posteriormente), acelerou o passo e se trancou novamente no banheiro, continuando a ignorar minha presença.
Aproximei-me de novo da porta onde ela estava, e, segundos depois, começou o som da máquina. Estava alto, como se estivesse em máxima potência. Bati insistentemente e com certa força na porta, bem preocupado, e quase em estado de choque ao associar a cena com as fotos no celular.
A máquina parou depois de minutos, e o intervalo de silêncio sumia com o som do choro. Meu nível de ansiedade já não estava suportável, então decidi, com o emocional no comando da ação, forçar a porta. Abriu após a terceira forçada que dei.
Mas eu me surpreendi. Esperava algo pior...
Yuka segurava a máquina em frente do espelho da pia, encarando-se, como se admirasse o próprio sofrimento. Em sua mão estava quase metade do cabelo, a que fazia parte do rabo de cavalo. Ela percebeu logo que eu estava ali, a encarando... E veio até mim, abraçando-me fortemente, dizendo em seguida numa voz sofrida, não intimidando o idioma natal: "Yuki ga nai!"
Ela não conseguiu.
"Você queria raspar a cabeça, mas recuou e só tirou metade do cabelo", eu conclui em mente naquele quente e longo abraço.
*
Aquele doce que vinha dela começava a amargar-me. Tinha um sentimento ruim que se transportava de Yuka a mim. Tal sabor tem moradia no que ela come. Em algumas frutas que antes tinham doçura, mas que ali portavam o sabor forte e estragado pelo tempo.
Primeiro descubro que ela queria raspar a cabeça, depois que ela comia comida estragada... Ela estava se torturando propositalmente. "E ao mesmo tempo a família", pensei. "Mas... ela parece amar muito sua família, e em reciprocidade... É isso! O motivo dos choros é a outra tortura: a proposital distância da família. Por isso ela quis se perder num país estranho, com outro nome e outra identidade!"
Nunca soube do porquê dela aceitar minha suposta proteção e menos ainda do motivo de tais penitências. Ela era uma filha ruim e com mal comportamento? Tinha decepcionado os familiares? Aquela morte no celular bastava para a atitude? Sinceramente, agora pouco importa tudo isso.
Importava naquele momento, mas não parei muito pra pensar nos tais porquês e resolvi ser mais objetivo. Minha aventura com Matsui Yuka tinha que acabar. Nada do que ela estava vivendo era saudável, de nenhum modo. Pois enfatizava seus problemas psicológicos e causava físicos, ao mesmo tempo que engrandecia meu egoísmo, aquela vontade que eu tinha de segurá-la nos braços e roubar cada gota de sua doçura.
E a coragem de agir veio, pois a estava afetando. Quando o pinguinho de caridade apareceu em mim, acabei com naquele sonho de uma semana numa ligação. Informei para o consulado do Japão que eu sabia onde estava "uma garota japonesa de 18 anos que estava sendo procurada pela família". Dei-lhe todas as informações que me eram alcançáveis, pedindo, inclusive discrição de quem me atendia, para que o caso do desaparecimento não ganhasse muita exposição.
Um dia antes dos de seus pais virem buscá-la, tivemos uma ótima tarde, onde a levei para alguns lugares de São Paulo, finalizando a noite no cinema. E quase que de hora em hora, ela tinha uma crise de choro, as quais eu não tentava mais deduzir, pois já entendia. Já sabia do assunto no qual ela não falara comigo. Somente acariciava seus ombros frente à mim, vendo as lágrimas caírem pesadas. O último choro, no cinema, durou mais, dando-me espaço também para beijá-la no rosto, em suas bochechas úmidas, que iniciavam um sorriso forçado de agradecimento.
Na manhã de despedida já fazia duas semanas desde nosso encontro físico. Eu já a conseguia deduzi-la bem em suas básicas emoções, então percebi que ela sabia que não duraria mais ali comigo. Eu não a contei que liguei para a embaixada, pois tinha medo de uma nova fuga.
Percebi, leitor, pois vi nos olhos pequenos e brilhantes um ar de agradecimento. Via uma expressão que traduzira-se à mim como nenhuma outra. Yuka estava satisfeita e preparada para voltar, com o sacrifício (seja lá qual tenha sido o motivo) completo. E a reciprocidade vinha em meu "obrigado", em português mesmo, abraçando-a, escondendo em seu ombro caído meu rosto de tristeza, encobrindo num sorriso a falta que ela me faria.
Sua mochila já estava pronta, e seus pais logo chegariam, quando, acariciando de frente suas macias mãos, senti vontade de beija-la. Não o fiz, mas não a impedi de, na ponta dos pés, tocar seus lábios com os meus.
Ela era mesmo doce... um doce que foi ficando amargo graças as lágrimas que separavam nossos rostos... Era seu pranto de despedida, como se soubesse que nunca mais nos veríamos.
Aquele momento foi mais especial do que qualquer noite mal dormida vendo imagens de falsos sorrisos e ouvindo sinfonias...
*
Dias tinham ido desde minha tentativa de voltar à rotina normal e monótona, quando recebi uma mensagem dos pais de Yuka, que agradeciam num português enrolado eu ter cuidado da filha deles, e que ela falava muito bem de mim. Aquelas letras digitais foram um sopro de calor em meu mundo que congelava-se de novo. Mas ele voltou a formar um gelo duro como pedra alguns dias depois, onde me avisaram que sua filha tinha sido internada após um desmaio, onde descobriu-se uma grave doença nela.
Eu não sabia como reagir aquilo... Não tinha muito o que fazer a não ser me questionar se fiz o certo em mandá-la de volta ou fiz o errado em mantê-la comigo.
"A cura para um tumor no esôfago não é ficar na casa de um recém conhecido que prometeu protegê-la. A culpa que eu tinha em não informar logo onde ela estava não era integral, pois não tinha ideia da gravidade... Mas queria que a total responsabilidade fosse minha. Queria que ela continuasse aqui, e eu precisasse ter não só a dor de matá-la aos poucos, mas também viver com ela. Eu me tornei tão dramático e egoísta, meu Deus... Um egoísmo teórico...", pensei logo em seguida.
O tal egoísmo trouxe na memória meu primeiro encontro com ela, o momento do verdadeiro início de nosso curto tempo juntos, e com a certeza de que nada disso teria acontecido se não fosse a recusa daquele senhor simpático cuja vida fez-se miserável.
Resolvi voltar na Catedral da Sé, tentar reencontrá-lo, pra ver se conseguia me aliviar em sua atenção. Não o vi ao redor da igreja. Olhei para o topo, como da outra vez, e meus olhos novamente marejaram com a brisa que o olhar alcançava. Entrei, ainda procurando o homem, mas tentado a rezar por Yuka. E o fiz, ajoelhado frente ao altar, após não o encontrar ali. Após terminar, um tanto abatido, levantei-me para ir, e ali estava o mendigo, olhando-me. Com um pouco de euforia por conta da surpresa, o cumprimentei, pensando nas perguntas iniciais de uma possível conversa que teríamos. Mas ele caminhou até a saída depois de responder meu cumprimento com um sorriso. Fui logo depois, lentamente, segurando as lágrimas do pedido que fiz na oração, me sentindo vazio, fraco... inútil... Como se, ao virar-me as costas, o homem me abandonasse...
Todos os domingos a partir dali, eu ia à mesma igreja, e sempre via-o de longe. Ou dentro, ou no escadão, ou por alguma praça da região.
E foi depois de uma missa que recebi uma nova mensagem dos pais e Yuka. Diziam-me que sua filha fora transferida para um hospital nos EUA, e que queria me ver. Eles eram surpreendentemente simpáticos, e pareciam querer sempre agradá-la. Sei porque ela chorava tanto pela família...
Pagaram-me as passagens de ida e volta. Animei-me, também com a mensagem, pois nela dizia que Yuka estava em processo de recuperação e que logo poderia receber alta. Acreditei, sem sequer pensar que sua doença não se curava com facilidade, e que os pais poderiam simplesmente querer esconder algo pior. Fui um tolo.
Cheguei ao hospital estadunidense e caminhei até a recepção, falando em meu inglês pouco fluente quem eu queria visitar. Ainda sorria timidamente, ansioso para rever Yuka, para suprir minha preocupação que aumentava nos segundos que eu tinha de espera até a seguinte notícia ser dada aos meus ouvidos e ser sentida em meu peito e em meus olhos.
Assim como o repentino, brusco e inevitável sentimento que eu tinha, o fulminante tumor se espalhou fácil e rapidamente pelo naquele corpo frágil. Com o choro dos pais, os meus e a compaixão dos profissionais em sua volta, Matsui Yuka foi para a eternidade, largando pra trás a impostora carne que tirou dela a alegria, o doce que abandonou aquela pálida e gélida pele.
*
O avião pousava no Brasil, e eu olhava desanimado para aquela lua cheia de 8 de agosto... Era grande... E se refletia em meus olhos vermelhos que não suportavam mais chorar, que não aguentavam mais criar umidade no rosto de luto. Um dia poderei entender o porquê. Talvez...
Talvez tudo o que aconteceu comigo naquele 2014 tenha sido uma lição... E minha fraqueza talvez não permita que eu entenda o motivo daquele soco no estômago que sofri das fotos e da melodia que viraram físicas. Quem sabe...
Quem sabe o maldito sofrimento não venha para algo bom e maior do que minha compreensão? Quem sabe aquele mendigo sorridente tenha me abandonado mesmo, e fosse somente um símbolo de minha mente para a situação? Não posso explicar porque ele não mais apareceu ao redor da catedral depois que Yuka morrera. Não entendia...
Não entendia e nem me questionava do porquê meu pedido ao divino não ter sido atendido, e me aproximei mais Dele. Então foi essa a lição? Por isso o soco no estômago?
Por mais que não consiga esquecer Yuka, tento não me prender novamente à felicidade deste mundo. A algo que é tirado para uma lição que talvez nunca seja aprendida com a visão fraca e chorosa da carne.
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Obrigado por ler! O que achou?
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