Capítulo único
Julia acordou com o celular vibrando debaixo de seu travesseiro. Com a visão turva apertou os olhos e viu novamente um número privado, desligou e afundou a cabeça no travesseiro. Era a terceira ligação que recebera desde a meia-noite, as duas anteriores ela atendeu e ouviu a mesma voz de sempre, no entanto, dessa vez parecia um pouco alterada, com mais rancor, com mais violência e com profundo escárnio.
Depois de levantar-se e arrumar-se, decidiu checar sua caixa de e-mail e deparou-se com seis mensagens, todas com títulos ofensivos como: Aberração, Morre diabo!, Bicha safada, Tá querendo se aparecer?, Eu vou te matar, e a pior de todas, aquela que a fez gelar o sangue, HC9horas?
Julia olhou para o relógio e engoliu em seco, sentiu as gotículas de suor brotarem em sua testa e suas mãos perderam a sensibilidade, todo o seu corpo estava gelado e trêmulo.
O maldito que a insultava pela internet e lhe fazia ameaças, de alguma forma sabia onde ela trabalhava e a que horas entraria. Pegou o telefone e ligou para Daniel, pedindo-lhe uma carona.
No percurso o amigo a percebeu inquieta, olhando o celular a todo momento, limpando o suor das mãos e olhando ao redor cada vez que o carro parava num semáforo, pigarreou e indagou:
— Tá tudo bem com você?
Julia o encarou aturdida e sorriu desviando o olhar. Abraçou a mochila e pôs-se a chorar copiosamente. Daniel parou o veículo assim que encontrou uma vaga e apoiou a mão em seu ombro.
— Julia, eu sei que tem alguma coisa errada há meses. Só quero ajudar, mas só funciona se você falar.
— Você sabe? Como assim? — Ela enxugou as lágrimas com o dorso da mão.
— Todo mundo percebeu. Você não atende mais o celular ao primeiro toque, vive grudada na tela dele, sempre fica inquieta quando lê alguma mensagem. O que está acontecendo?
— Nada. É só uma fase. — Consultou as horas e sem olhar para o amigo, pediu: — A gente pode entrar pelo subsolo hoje?
— Como quiser. Mas vai ter que me contar o que há.
Ela concordou com a cabeça e afundou-se no banco como uma criança entediada. O restante do caminho foi silencioso, mas não menos tranquilo, Julia consultava o celular de tempos em tempos e suspirava aliviada, Daniel não queria forçar a barra ainda mais, e mesmo depois que entraram no elevador ele manteve o silêncio respeitoso.
Já com seu jaleco branco, Julia caminhava pelos corredores do hospital com uma prancheta de prontuários de pacientes que deveria verificar. Entrou no primeiro quarto e encontrou um senhor com uma perna amputada, resmungando e mastigando a comida sem nenhuma vontade. Ao vê-la, ele mudou o semblante de ranzinza para curioso, e sem nenhuma distinção observava-a da cabeça aos pés.
— Bom dia, seu Adelson! Eu sou a doutora Julia e vou cuidar do seu caso. Já tomou seus medicamentos hoje?
— Seu nome é Julia mesmo?
Ela bateu a caneta duas vezes sobre o crachá e sorriu. O velho recostou-se nos travesseiros e conversou de forma cortês, porém esquiva. Julia estava acostumada, eram novos tempos e algumas pessoas das gerações mais antigas demoram para se adaptar.
Depois de alguns pacientes, Julia sentia-se cansada e um pouco irritada, pois, seu celular vibrava em curtos intervalos de tempo, mas ela não ousou verificá-lo, pois deduzia o que encontraria. Quando entrou no último quarto, encontrou uma senhora muito magra, quase sem cabelos e com os membros trêmulos. Ela aproximou-se e fez a apresentação formal. A velha sorriu e perguntou sem nenhum pudor:
— Você é homem ou mulher?
Julia estremeceu. Não previa que uma pergunta tão direta viria de uma senhora tão recatada como a dona Sônia, ao menos era a imagem que passaram dela.
— Nenhum dos dois. — Julia respondeu olhando os prontuários e ficou ainda mais perturbada quando ouviu a voz da mulher responder sua fala.
— Como é bela a juventude.
Julia sentia-se feliz por ter encontrado uma senhora que não a julgasse, mas que ao contrário, achasse lindo sua forma de existir. Caminhou distraída pela cantina até ser cutucada por Daniel, sentou-se à mesa com mais quatro pessoas e iniciou sua refeição.
Os amigos falavam de pacientes, procedimentos, complicações cirúrgicas e sobre os novos equipamentos que o hospital havia recebido, Julia mantinha-se quieta, concentrada em sua alimentação.
O celular vibrou diversas vezes e ela tentava a todo custo ignorá-lo, mas após terminar o almoço, tomada por uma curiosidade incontrolável pegou o aparelho e abriu as mensagens.
Instantaneamente empalideceu e largou o celular sobre a mesa com um baque oco, todos olharam para ela, Daniel estendeu a mão e pegou seu telefone, passou as vistas pelas mensagens e deu um tapa na mesa.
— Isso é um absurdo! — Passou o celular para a moça ao seu lado, segurou as mãos de Julia, que se encontrava em prantos e questionou: — Por que escondeu isso de nós?
— Eu não sei... — respondeu com a voz entrecortada. — Achava que ia parar, mas não para.
— Que horror! — A amiga ao lado estava atônita com as mensagens ofensivas que lia. — Você precisa ir à polícia Julia.
— Não posso. E se ele tiver acesso aos meus dados durante o processo? Vai saber onde eu moro e ai vai ser pior.
— Pior é que esse sistema não ajuda, né? — comentou um amigo mais afastado.
Depois de muitas indagações, Julia contou o que estava acontecendo há meses. Uma pessoa anônima havia lhe mandado uma mensagem em seu perfil social, e o teor da mensagem era completamente ofensivo e preconceituoso. Ela apenas ignorou a mensagem, mas o usuário fantasma continuou com as ofensas a respeito de sua condição humana, e acreditando que se não desse atenção o indivíduo desistiria, não fez nada, porém, o teor das mensagens evoluiu.
No início eram apenas palavras: monstro, aberração, pervertido, viado, sonso, cusão etc. Com o passar do tempo, as palavras se tornaram frases: Você vai pro inferno! Gente igual você tem que morrer. Não-binário não existe. Você deve fazer programa pra te aceitarem no hospital. Por que não responde traveco de merda? Você virou mulher pra se aparecer, né? E outras mais. Julia decidiu bloquear o usuário fantasma, no entanto, todos os dias uma nova conta era criada única e exclusivamente para ofendê-la, e a partir daí ela não teve mais paz.
De alguma forma o indivíduo descobriu seus e-mails pessoal e profissional e enchia sua caixa de mensagens, com diversos textos desumanos e repugnantes. Mesmo ela marcando os endereços como spam, eles continuavam vindo, e outros e-mails eram criados para essa única função. Julia não conseguia mais abrir os e-mails e se deparar com mensagens de ódio, passou a ignorar sua vida digital e isso passou a afetar seu trabalho, pois, perdia compromissos importantes, devido não consultar suas agendas.
Meses depois, o crápula anônimo descobriu seu número de telefone e passou a enviar mensagens e ligar para ela. Sem aguentar tanta pressão, ela havia trocado de números três vezes em menos de dois meses e mesmo assim o indivíduo persistia.
Quando as ligações começaram, temendo um avanço, ela mudou-se para um apartamento, julgando ser mais seguro, porém, de alguma forma o stalker sabia seu endereço e fez questão de afirmar isso algumas vezes, Julia se sentia encurralada e constantemente amedrontada.
O enfadonho dia terminou e Julia voltou para casa. Debruçada na janela, olhando a cidade do alto, ouvia o celular tocar insistentemente. Por vezes sentiu-se tentada a atendê-lo, mas resistia no último segundo.
Depois da milésima ligação ela atendeu e ouviu a voz irritante do outro lado.
— Tava bonito de rabo de cavalo.
Ela desligou instantaneamente e trancou-se em seu quarto. Tudo ao seu redor parecia parte de um show macabro para perturbar sua mente; sua saúde mental e física já não era a mesma de meses atrás. Cada mensagem que recebia a ofendendo, invisibilizando-a, negando a sua existência, lhe arrancava um pedaço de sua alma, e a cada dia, menos vontade de viver ela tinha.
Julia levantou quebrada, os olhos ardiam por não ter conseguido dormir, seu corpo parecia ter apanhado a noite toda, o cansaço físico e mental estavam chegando a um limite perigoso. Novamente pediu carona para Daniel e entraram pelo subsolo, Julia observava cada indivíduo que encontrava, prestava atenção em seus olhares e suas palavras, começava a desconfiar que seu perseguidor era alguém bem próximo, pois, havia informações que só eles sabiam, mas sua paranoia foi mais longe e começou a cogitar não mandar dados sobre si para mais ninguém por meios digitais. Passou a falar menos com os amigos, respondia mais do que falava, e durante semanas foi se fechando cada vez mais.
Julia desistiu de usar o celular, só atendia o número do hospital e mais nenhum, nem mesmo as ligações de familiares, não tinha mais estrutura para conversar, para se abrir, sentia-se encarcerada, torturada, violada e inutilizada. Mas o fato de não usar os meios digitais, não impediu de continuar sofrendo perseguições, a pessoa que a perturbava começou enviar cartas e pacotes para ela, de início, ela abriu alguns, e o conteúdo era sempre algo horrendo. Depois passou a largar todos na lixeira.
Certa noite, durante uma cirurgia complicada, Julia falhou, foi vítima de um apagão no cérebro, o que quase custou a vida do paciente. Ela saiu da sala transtornada ao ser substituída, subiu ao terraço e passou a observar a cidade, que estava debaixo de chuva. Fitava os relâmpagos iluminando o céu e via as gotas caindo velozmente e se unindo a outras sobre o solo formando poças e correntezas, fluindo para onde quer que fosse. Nem ao menos sentia as roupas encharcadas grudadas em seu corpo. Aproximou-se da grade de proteção e olhou para baixo, as luzes das ruas, os faróis dos carros, os transeuntes diminutos se equiparando a formigas, tudo era tão orgânico e convidativo; ela deixou seu corpo cair.
Sentiu um tranco na base do pescoço seguido de uma dor na nuca, o mundo girou à sua volta, perdeu contato com o solo, a gravidade pareceu alterar-se e logo ela se viu no chão, de volta ao terraço, com água respingando em seu rosto, e ao seu lado, respirando de forma ofegante estava Daniel.
— Não enquanto eu viver. Entendeu?
Julia se entregou a um pranto incontrolável com gritos e gemidos enquanto era acolhida nos braços do amigo, não suportava mais, havia chegado ao seu limite. Daniel prometeu ajudá-la, disse que não havia mais saída, ela precisava procurar a polícia.
No dia seguinte, Julia foi à delegacia para pedir orientações, porém, não tinha certeza se receberia ajuda deles, pois, assim que entrou foi fuzilada pelos olhares dos agentes. Quando chegou sua vez, o homem que a atendera nem sequer olhava em seu rosto, apenas murmurava palavras monossilábicas esporadicamente. Depois de diversas questões levantadas pela moça e toda a história contada mais de uma vez, o agente disse que não poderiam fazer muita coisa, a divisão de crimes virtuais tomaria conta do processo, tentariam rastrear o IP do indivíduo e emitiriam uma intimação, mas isso poderia levar meses.
A possibilidade de passar meses em estado de alerta colocou Julia num estado de pânico indescritível. Mas ela não tinha outra opção, seguiu todo o procedimento e registrou a queixa. Seu interior gritava e clamava por liberdade, por um único momento de paz, mas a realidade ao seu redor a envolvia como num xale confeccionado de lâminas.
Desorientada e desgostosa, encaminhou-se para o hospital, onde enfrentaria uma densa reunião para que pudesse explicar seu erro em atuação, e consequentemente sabia que seria afastada do serviço e avaliada antes de poder retornar, afinal, ela não estava mesmo em condições de trabalhar.
Três horas e meia depois ela saiu pela porta, cabisbaixa com a certeza de tudo o que aconteceria nas próximas semanas. Quando chegou ao corredor principal, ouviu uma gritaria e viu uma completa bagunça se espalhando. Pessoas correndo abaixadas, trancando-se em consultórios e sanitários, berros e sons de vidro estilhaçando. De início a cacofonia lhe confundira e ela não conseguiu entender o que estava acontecendo, mas depois de ver o rapaz com capuz e um revólver na mão, compreendeu a seriedade da situação.
— Cusão! Filho da Puta! Eu sei que você me denunciou. Vou te matar desgraçado.
Julia viu o rapaz apontar a arma para ela e sentiu um formigamento elétrico percorrer seu corpo, não conseguia se mover, seu sangue gelou, sentiu o rubor lhe fugir da face e suas mãos perderam completamente a sensibilidade, nem parecia que estavam mais em seu corpo. Piscou demoradamente imaginando toda a cena que se desenrolaria e entregou-se.
O rapaz puxou o gatilho. O clique ecoou pelo corredor e invadiu os ouvidos de Julia, mas nada aconteceu depois disso. Ela sentiu o coração batendo acelerado e encostada à parede abriu os olhos, o rapaz mascarado lutava para destravar a arma. Naquele exato momento quatro seguranças surgiram no corredor em lugares diferentes e tentaram imobilizar o homem, porém, ele era hábil e conseguiu escapar deles.
Enquanto corria dos seguranças, jogava nos corredores tudo o que encontrava: cadeiras, extintores, macas etc. Temendo ser alcançado, esporadicamente olhava para trás para medir a distância entre ele e os seguranças, sem prestar muita atenção ao que estava ao seu redor, isso foi crucial para os eventos posteriores.
O rapaz abriu a porta da entrada e virou-se com a arma apontada para os seguranças e tentou disparar novamente, mas o revolver não funcionou. Sem medir o espaço entre a porta e a rua, acabou entrando diretamente no caminho de um caminhão; o choque o arremessou metros à frente.
*****
Petrônio acordou com uma dor de cabeça descomunal, o sol irradiando pela janela machucava suas pupilas e a algema ao redor do seu pulso pesava mais que uma bola de chumbo. Tentou livrar os braços, mas ambos estavam presos à maca. Gritou pela enfermagem e depois de um tempo, Daniel entrou na sala.
— Por que me algemaram? Eu exijo meu advogado.
— Cala a boca, seu verme! Você só está vivo porque a Julia assim desejou, senão eu teria deixado você sangrar igual um porco no abatedouro, e daria a desculpa de que fiz tudo o que pude.
O homem arregalou os olhos e largou a cabeça no travesseiro. Bufou e em seguida perguntou:
— Por que não me deixou morrer?
Daniel apertou o pulso esfolado do homem até ele mostrar sua careta de dor, depois sussurrou para ele:
— Porque diferente de você, ela é um ser humano. Você não. Você é só um verme. Como você pode? Vocês foram amigos na infância. Você não presta.
— Você não tem provas.
— Temos o hospital inteiro como testemunha, filmagens de câmeras e o celular que estava no seu bolso. — Daniel pressionou ainda mais o pulso do homem até que ele gritasse. — Você é bom com máquinas eletrônicas, mas é péssimo fora delas, depois que saiu de seu cafofo, deu um passo errado atrás do outro. Otário desgraçado!
Daniel o largou e aplicou a medicação no soro. O homem sentiu seus cabelos arrepiarem e observando o sorriso maligno de Daniel, entrou em pânico.
— O que é isso? O que você colocou no meu soro?
O médico olhou para ele sorrindo e coçou a cabeça de maneira proposital.
— Sabe que eu nem sei... Acho que era paracetamol, ou era morfina, não, não. Acho que era cianeto. — Deu um tapinha no gesso da perna do homem e dirigiu-se à porta de saída.
— Eu queria pedir desculpas, se ela estiver bem, é claro.
Daniel colocou-se para fora do quarto, mas manteve a porta entreaberta. Depois de alguns segundos em silêncio, olhou para Petrônio e disse:
— Ela está bem, sim. Está até de férias. E vocêpode pedir desculpas depois que sair da cadeia, isso se não morrer antes. — Piscou e apontou para o soro antes de fechar aporta.
Fim.
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Olá pessoal! Tudo bem?
Pois é, depois de tanto tempo, estou novamente aqui.
Quero dizer que este conto está na antologia Feminismos (como conto especial), lançada pela Editora Medusa. É uma obra que traz diferentes autoras e contos narrando a interminável luta das mulheres desde tempos imemoriais contra a opressão. Está fantástica! Confiram lá no site da editora. ^^
E aí, o que acharam deste conto?
Estaremos juntes em breve! ^^
Beijos da Pri! ^^
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