VI - O Noivado, A Manhã de um Velório e A Tempestade Contida
Seguimos mais a fundo na floresta, até que o som do mar batendo nas rochas alcançasse nossos ouvidos e a brisa fresca me fizesse ficar arrepiada. Meu coração palpitava com a ansiedade do que viria a seguir, com o que eu estava prestes a ver. E quando saímos da mata e meus olhos encontraram a escuridão daquele vasto mar, senti uma âncora afundar dentro de mim.
As palavras de minha mãe jamais poderiam ter me preparado para a visão pela qual eu era invadida. Toda a beleza, a perpetuidade daquelas rochas, a força daquelas águas. Meu coração se limitava a pequenos cacos de saudade.
James desceu do cavalo e segurou em suas rédeas, guiando o animal até a areia negra da praia, penhasco abaixo. Pouco a pouco as histórias das quais minha mãe sempre falava deixaram de ser uma ideia abstrata e tomaram forma.
— Dizem as lendas — iniciou James, começando uma caminhada tranquila. — que o Mar de Colosso fazia parte do oceano de Aurora, sem limitações, divisas ou distinções. Mas quando um grande rei antigo foi ameaçado de ter sua esposa tirada de si, com um único gesto de sua mão, usou um poder ancestral para ordenar ao oceano que cedesse sua majestade, separando o que era um, para que fossem dois.
Ele me ajudou a descer do cavalo, enquanto continuava a história.
— As águas, apartadas de seu ponto de origem, fizeram-se escuridão inabitável, e a areia que antes era pura como cristal, tornou-se escura como carvão.
— Tudo isso por amor à esposa? — senti algo no meu âmago a se remexer.
Os olhos de James não encontraram os meus enquanto caminhávamos lado a lado pela praia, mas ainda assim pude sentir sua atenção sobre mim.
— Alguns dizem que para que essa história fosse verdadeira, o poder do rei teria que o consumir. Ele partiu o oceano em dois, fez com que as montanhas e os rochedos saíssem de seu descanso eterno e cercassem o mar para que não fugisse, além de dominar o vento para que não se rebelasse. Seria impossível para um humano comum cumprir com esses objetivos e sobreviver. Então, a lenda o tem como morto.
— Mas se eles não ficaram juntos, então qual o propósito de uma lenda assim? — minha voz um tom abaixo enquanto eu chutava a areia.
— Mostrar que o amor não conhece limites e que sua promessa jamais finda, independente da mortalidade pela qual todos somos afligidos.
Fiquei em silêncio, rebatendo meus pensamentos aos poucos. Agora, com a cabeça no lugar, eu imaginava quantas memórias minha mãe poderia ter tido com meu pai naquele lugar, assistindo o nascer e o pôr-do-sol, ouvindo-o contar histórias e lendas como aquela, fazendo votos de amor e todas as pequenas coisas bobas que a paixão nos faz dizer. Finalmente, aquele aperto que eu sentia no peito toda vez que pensava neles dois havia ido embora, como se a brisa e o cheiro do mar pudessem carregar esse sentimento para longe sem dificuldade.
Depois de algum tempo apreciando a paisagem com calma e quietude, ouvindo o som do mar e das gaivotas acima, James voltou a falar pigarreando, como se se sentisse num silêncio desconfortável.
— Você conseguiria ver a luminescência na água e na areia quando estivesse escuro o suficiente, mas como é manhã, não há como vê-la — ao menos, parecia tranquilo agora, não mais estressado. Seu tom também havia mudado para algo mais condescendente.
— Não te pedirei para vir à noite, ainda que seja tentador — incitei, sorrindo. Ele não respondeu.
Pausando nossa caminhada por um momento, tirei minhas botas, um pouco largas demais, e senti a areia preta entrar em meus dedos. A maresia me atingia a todo momento, levando meus cabelos para onde quer que quisesse que eles fossem. Me aproximei da água, deixei que molhasse meus pés e respirei fundo fechando os olhos.
Aquele era meu pai, segundo a visão de minha mãe, e eu não poderia ter imaginado nada melhor para ela.
— Minha mãe costumava me contar histórias sobre esse lugar quase como uma metáfora para descrever meu pai, já que eu não me lembrava dele.
— Você devia ser muito nova — observou, aproximando somente o suficiente para que as ondas não alcançassem seus sapatos.
— Eu era — concordei, num sussurro. As memórias das histórias de minha mãe começavam a me inundar. — Ela dizia que ele tinha um olho tão escuro quanto as águas geladas e outro tão claro quanto o céu azul. Ele era aconchegante como a areia massageando os pés, e tão avassalador quanto as ondas que batem nas paredes rochosas. Tinha cabelos tão negros quanto a escuridão, e cheiro tão bom quanto o do mar.
As lágrimas de saudade voltavam a se formar no canto dos meus olhos, me forçando a fungar o nariz.
— Acho que eles devem ter vivido um romance tão bonito quanto o do rei e sua esposa, como você contou.
Quando me virei para fitá-lo, não encontrei uma expressão de desinteresse como achei que estaria, mas um olhar terno de compreensão.
— Sua mãe...
— Sim — me recusei a terminar aquela frase. — Foi por causa das descrições dela que, pela primeira vez na vida, acho que pude me sentir perto dele. Como se estivesse... me aquecendo, apesar da distância. Aquela era uma das poucas coisas que minha mãe falava sobre ele, como se esquecer fosse melhor com o decorrer dos anos. Mas, desde criança, eu sentia como se soubesse ao menos o nome do meu pai. Eu sabia, tinha certeza, de que começava com L, assim como o meu nome. Minha mãe esquecia-se às vezes, e ao invés de dizer "papai", engasgava no "Le..." — ri diante da memória calorosa. — Me perguntava se Killius me contaria se eu perguntasse.
— Killius conheceu seus pais?
— Ele diz que sim, mas não sei se falou sério.
— Eu acreditaria nele — James engoliu em seco, fugindo do meu olhar. — Ele não é de mentir.
Decidi que era melhor deixá-lo com suas próprias ponderações e respirar fundo. Meu nervosismo parecia ter se dissipado.
— Começo a achar que as histórias dela não foram inventadas...
E lá estavam as lágrimas novamente. Me lembrar dela daquela forma era ainda mais difícil do que recordar de nossos últimos momentos juntas. Ela disse que me amava antes de sair de casa, e não retornou naquela noite. Mas agora, eu sentia como se ela também estivesse ali. Os dois, juntos em um só, como devia ser.
— Então você pode ser daqui — concluiu ele.
— Tem muita coisa que eu não sei, aparentemente.
— E quanto ao que você sabe? — virei-me para focar nele novamente.
— Como assim?
— Eu chamaria sua atual situação de recomeço, já que não há como voltar — diante da minha surpresa, continuou. — Não é possível sem um motivo condizente. Precisaria abandonar tudo o que existe aqui para trás e tomar a direção contrária - o que quer que isso signifique. Acredite, eu já tentei.
— Você tem coisas demais te prendendo pra conseguir voltar? — para onde quer que quisesse.
Sua resposta pareceu prender-se no fundo de sua garganta, fazendo com que o pomo-de-adão subisse e descesse.
— Não.
— Então, o que te segura?
— Eu não sei — James me fitou com cuidado, lento e irreflexivo. — Só te trouxe aqui para que não estragasse o seu momento, então não comece a chorar de novo. Achei que ficaria feliz, não magoada.
Não me aguentei e soltei uma risada que me fez estremecer o estômago. James podia ser arrogante às vezes, mas começava a me fazer pensar que não fazia isso de propósito.
— Deixe de ser tão ranzinza. Demonstrar emoções humanas não vai te matar — sorri tentando fazer com que o rosto dele também se iluminasse.
— Vai sim, sinto uma coisa se movendo debaixo da minha pele toda vez que demonstro alguma coisa — com uma feição sarcástica no rosto, levantou uma das sobrancelhas e tenho quase certeza de que relaxou um pouco a tensão dos ombros. — Vai fazer a sua parte, ou não? — James se aproximou, tirou uma das mãos do bolso e me entregou a aliança.
Fitei a aliança, pensativa.
— Tem certeza de que quer fazer isso? Tanto trabalho para proteger uma pessoa que no fim das contas te traiu.
Seu rosto se tornou numa mistura de confusão e surpresa, cedidas a um brilho desconhecido. Existia uma infinidade tão grande de coisas que eu nunca me permiti fazer, que sempre deixei de lado como se não importassem tanto assim, mas que agora me atingiam como uma lança incendiada. Pequenas conversas com pessoas desconhecidas; ver as árvores se moverem quando se está atrasado; o voo das abelhas em câmera lenta; a sensação do vento batendo no rosto, o olhar profundo e denso, a boca fechada numa linha fina e o marejar nas íris. Ficamos ali, parados, sem tirar os olhos um do outro, até que eu me desse conta da pergunta que verdadeiramente queria sair pelos meus lábios:
— James... quem é você?
— Você já sabe.
— Não, não sei. Sei que é rude, inconsistente e que esconde muita coisa dentro de si mesmo, igual a todo mundo. Mas também sei que debaixo disso tudo tem outra coisa. De alguma forma... eu sinto isso. Então, por favor, me diga que o que estou fazendo não é um erro. Me diga o que tem de bom para que eu possa confiar meu futuro incerto à você.
Ele pareceu estudar a situação com cautela, pensativo demais para me dar esperança de algo, qualquer coisa.
— Nada... — respondeu, lento e carregado em cada sílaba. — Não tem absolutamente nada.
Num ato súbito, antes que eu pudesse entrever, retirou a aliança preta da palma da minha mão e a guardou no bolso, tirando seu manto de pele negro e o colocando sobre meus ombros.
— Partiremos em breve, então não se molhe mais. Parece que já está congelando mesmo estando seca.
Digo isso, girou em seus calcanhares e voltou-se ao cavalo que aguardava não muito longe dali.
— O que está fazendo?
— É um erro. Peça para que Killius tente te levar de volta depois que visitar os lugares que quer, assim não vai ter nada para te prender aqui.
E por mais que eu tentasse seguí-lo, era areia segurava meus pés presos no lugar. James não me ouvia, não dava crédito aos meus chamados, e me deixaria ali sem sequer olhar para trás.
— Mas o que você vai fazer? Não precisa mais de mim? — gritei atrás dele, sem entender.
— Pode ir embora.
Senti como se algo dentro de mim quebrasse, como uma fina camada que se rompia pouco a pouco. Meu corpo tremia e minhas íris não conseguiam mudar de direção. Foi um instante tão curto que cheguei a pensar que minha mente me pregava uma peça. Mas não... tenho certeza de que senti. Aquele lugar me fez aceitar um novo reflexo de mim mesma, e era hora de deixá-lo tomar as rédeas.
— Ir embora... — comecei, exasperada. As lágrimas já rolando, sem me dar um motivo plausível para tal. — Ir embora? — com a raiva fervilhando dentro de mim como num vulcão aceso, tirei os anéis dos meus dedos e os coloquei sobre a pedra mais próxima assim que meus pés se soltaram, a salvo da água. — EI, IDIOTA!
Reconhecendo as mesmas palavras que usei com ele quando atirei aquela pedra no caminho, virou-se num susto cobrindo o rosto com o antebraço. Sinceramente, não sei porque não correu quando viu aquela louca correndo atrás dele - vulgo eu.
Ao menos em uma coisa James estava certo: aquele lugar poderia ser um recomeço para alguém como eu. Não havia nada do que restou do meu passado que me faria voltar. Nada que me fizesse arrepender de ter entrado naquele trem, por mais que tudo ao meu redor se mostrasse selvagem e desconhecido. Nada que... que me concedesse uma razão para pensar que ele estava errado. Tinha algo de bom nele, eu sabia disso. Algo que não estava vendo por causa de si mesmo.
E eu diria isso a ele.
Ele, agora, era a minha única bússola.
Antes que pudesse ter qualquer tipo de reação, o agarrei pelo colarinho da camisa formal demais e comecei a arrastá-lo para perto da água. Eu jamais teria força o suficiente para fazer um homem como ele sair do lugar, mas lá estava ele, tão atônito que seus pés desajeitados pareciam se mover por vontade própria. E quando estávamos próximos o suficiente, o empurrei fazendo com que caísse de costas na água gelada do mar. Sua cabeça pendeu para trás com o impacto e suas pernas quase foram completamente ao ar.
— O que... — ele se sentou e tirou o cabelo molhado do rosto, me encarando.
A água fria me atingiu com gosto, batendo as ondas em minhas canelas enquanto eu levantava o vestido, molhando minhas pernas e me fazendo repensar aquela ideia estúpida. O sangue quente não se fazia suficiente para aquecer o toque gélido do mar, mas não me acovardei diante disso. Adentrei cada vez mais as ondas, até que eu estivesse pairando sobre ele.
— Você é sincero. É honesto, é gentil e é corajoso. Por acaso, não se lembra do que me disse na cabana? De como cuidou daquelas garotas? — o repreendi como uma mãe faria com sua criança, rezando para que aquela ousadia não fosse embora antes do tempo. — No início eu não acreditei no que você me contou, mas... você me trouxe aqui, James. Por causa de uma única coisa que eu disse, você mudou seus próprios planos e me trouxe aqui. Então não me venha com essa coisa de que não há "absolutamente nada" de bom em você, porque essa é a coisa mais absurda que eu ouvi nos últimos tempos!
Terminado meu sermão, notei o quão nervosa eu estava. Meu peito subia e descia com rapidez pela urgência das palavras. E eu ainda esperava, esperava e esperava que ele fizesse alguma coisa. Brigasse comigo, gritasse, murmurasse alguma coisa, mas ele permanecia lá, sentado apoiando-se nos cotovelos, sem se levantar apesar das ondas. Seus olhos percorreram meu rosto sem aquela feição firme de sempre, perdido num misto de surpresa e fascínio. Sua boca abandonando a linha indecifrável de sempre e dando lugar a lábios entrecortados. Estava tão calado que temi me odiar por um segundo.
— Você é loira — concluiu.
Seus olhos percorriam meu rosto e meus cabelos como se descobrisse um ser humano pela primeira vez.
O mar continuava projetando suas ondas contra as costas dele sem se importar com nosso diálogo. Tinha me esquecido de que estava sem o anel e o susto agora não passava de uma risada nervosa. Devia estar reparando nas manchas ao redor da minha bochecha, mas fugi do seu olhar antes que comentasse alguma coisa.
— Eu tentei achar tantas coisas pra falar sobre você, pra te ajudar nessa nossa bagunça, e a primeira coisa que me diz depois disso tudo é que eu sou loira?
Lento e cuidadoso, olhou para baixo, como se visse algo nojento
— As mulheres são indecentes assim como você no lugar de onde você vem?
Olhei para baixo por reflexo e me deparei com minhas pernas descobertas pelo vestido. O que havia de tão indecente, afinal? Meus joelhos mal estavam à mostra.
— São pernas. Os homens da sua época não conseguem lidar com alguns centímetros de pele?
— Não se trata disso.
— O quê, então? Atrai vocês? — abaixei meu rosto ainda mais, curiosa por sua reação, mas sua expressão, seus olhos... eles contiuavam com aquele mesmo peso estranho. — Não conseguem se conter se virem um tornozelo?
— Na verdade, não.
Senso de humor, percebi. Acrescentei isso às minhas notas mentais.
Deixando de tentar atormentá-lo, deixei o peso do vestido cobrir o que estava à mostra, e por um segundo, acho que entendi a beleza daquele lugar por uma nova perspectiva. Cada coisa tinha seu devido lugar, cada costume tinha sua proteção e cada pessoa possuía seus próprios limites.
Me afastei e deixei que se levantasse. Ele massageou as costas como se estivesse com a coluna doendo. Não pude evitar de observá-lo naquele instante. Quer dizer, não é como se eu fosse tola o bastante de nunca tê-lo notado, mas... havia algo nele que o deixava mais bonito do que quando eu o conheci.
Encarei meus pés molhados e cheios de areia. Nada de bom viria de ficar o observando daquela maneira. Chegava a ser... a ser... a ser o quê, exatamente?
Num sobressalto, levantei meus olhos. Ele segurou uma mecha do meu cabelo com cautela, deixando que escapasse por seus dedos. Eu sequer tinha me dado conta de sua aproximação.
Ao contrário do que pensei que faria, ele permaneceu em silêncio e devolveu as mãos para os bolsos, evitando contato visual quando percebeu que fitei as cicatrizes em suas mãos.
Percebendo que eu não conseguiria nenhuma resposta vinda dele, decidi que deveria - pela primeira vez na minha vida - deixar as coisas claras e acessíveis para ambos. Meu recomeço não poderia iniciar em meio à emaranhados e conversas mal-faladas.
— Eu vou te dizer por que vou aceitar sua proposta, mas quando eu acabar, terá me que me contar algo sobre você também. Somos uma dupla nisso — me afastei um pouco, dando espaço para que ele pensasse em cada palavra que eu diria, enquanto afundava meus pés na areia escura. — Eu venho de um lugar onde nunca achei espaço para demonstrar minhas fraquezas, senão em casa, com a minha mãe. E há pouco tempo eu a perdi... e não vai haver tempo o suficiente no mundo para que essa ferida se cicatrize e pare de doer, então ter pego o trem e ter vindo pra cá foi... absolutamente tudo o que me restava — ele ouvia atentamente, sem proferir palavra alguma. Deixei que minhas verdadeiras emoções fossem libertas. — Eu perdi tudo o que um dia significou alguma coisa pra mim. E é por esse motivo que não posso ir embora. Não porque não tem nada aqui que me segure, mas porque não há nada para o qual voltar. Aquele mundo não existe mais para mim, James. Foi embora com todo o resto, e de repente... eu tenho a chance de reconstruir tudo do meu jeito. Tenho uma segunda chance que acreditei por tempo demais que não me seria oferecida nunca, mas agora você precisa de uma noiva falsa e eu preciso reestabelecer a minha vida de alguma forma, e... eu só consigo pensar em como confiar em você pode me ajudar.
Com a respiração pesada, fitei-o em busca de alguma mudança em seu rosto. Eu havia terminado, mas era como se ele ainda prestasse atenção ao que era falado em sua cabeça, até que voltou seus olhos para baixo e iniciou sua própria confissão:
— Eu venho de um lugar onde a fraqueza não era admitida... e o fraco se tornava a escória das escórias. Eu era fraco. E até mesmo hoje, sei que ainda sou visto assim por pessoas demais. Assim como você me vê. Não me conhece, não sabe do que eu sou capaz. Mas você... — seu lábio inferior tremulou numa fração de segundo. — Por que quer tanto assim ter motivos para confiar em mim?
— Você não tem nenhuma pré-concepção sobre mim. Não precisa de mim — as palavras se agarraram ao fundo da minha garganta, como se trazê-las à tona o faria retroceder. — Agora que sabe que foi Killius quem armou isso e como ele fez, pode muito bem escolher qualquer outra garota que seja do seu agrado e colocá-la no meu lugar. Afinal, o que eu sei sobre ser — seu indicador pousou sobre minha boca, como um pedido de silêncio gentil.
— Você fala demais. Eu poderia mesmo te trocar por outra menos... você — meu estômago se revirou com a possibilidade. — Mas não é o que eu quero fazer.
Apesar de repentino e da falta de emoção em suas palavras, sorri satisfeita enquanto ele engolia em seco.
— Então, ainda vamos continuar com isso? Vai conseguir me suportar se eu não mudar nada?
Seus olhos encontraram os meus novamente, de canto.
— Farei o possível, pelo bem dos seus tornozelos.
Meu coração palpitava como se eu fosse uma criança que tivesse acabado de fazer um amigo que nunca mais veria depois daquela tarde. Era apenas a sinceridade dele, pura e simplesmente. Inocente.
— Obrigada, James — com minha mão, segurei a sua e coloquei o anel em seu dedo sem que ele declinasse o ato. — Vou me lembrar disso quando estiver me implorando para calar a boca.
— Vamos embora — chamou. A palidez de seu rosto pareceu diminuir.
— Vá você, já estava me deixando para trás mesmo — ri, ignorando sua carranca.
Correndo de volta para o mar, olhei para trás. James se afastava novamente, devagar, mas dessa vez para parar e se sentar num rochedo não muito longe. Não senti mais medo do que poderia vir com o futuro, pois senti que ele estaria lá.
-
Quando finalmente saímos da praia e eu devolvi o anel do espectro ao meu dedo, perto do meio-dia, as nuvens pesadas tomaram o lugar do sol radiante. Chovia sem parar do lado de fora, enquanto a mansão parecia estar em silêncio absoluto. Nem mesmo a madeira velha ousou ranger quando pisamos sobre sua superfície fria, em completo silêncio, pingando. As árvores se moviam fortemente com o vento, mas ainda assim, nenhum som além das gotas que caíam no umbral podia ser ouvido. A casa se mostrava silenciosa como nunca antes, pesada como a âncora de um navio. Eu não conseguia compreender como aquele lugar conseguia controlar os sons daquela forma.
Uma figura preocupada surgiu no topo da escadaria, vindo de um dos cantos do corredor. O homem desceu desenfreado assim que nos viu no rol de entrada, segurando os braços de James assim que alcançou o último degrau.
— James — iniciou, exasperado. — O que vamos fazer agora?
Mas antes que ele pudesse responder qualquer coisa, o homem o puxou para cima com pressa. Os segui até o último quarto do corredor do segundo andar. Um segundo homem com vestimentas similares às de James inquietava-se na entrada dos aposentos. Com cuidado, me aproximei após os três entrarem. Ninguém pareceu se importar com minha presença. O cadáver acinzentado por sobre a cama tomava-lhes total atenção.
Minha garganta se trancou imediatamente.
Um cadáver.
Não havia sinais de luta pelo quarto, senão apenas a cama bagunçada. As janelas estavam trancadas e o corpo sem indício de movimentação degradante ou peleja violenta. Os olhos, a boca e as mãos abertas. Um dos braços pendia até o chão, enquanto o outro descansava próximo ao pescoço. A cena me provocou uma onda repentina de descrença e desespero mútuos.
Vê-lo ali, inerte e sem vida, abalou meus pensamentos totalmente.
Ao lado da cômoda, James observava o cadáver friamente com os braços cruzados. Não parecia tocado o suficiente para lamentar a morte repentina do velho homem. Após mais alguns instantes observando o corpo e as cenas em minha mente se tornaram brancas, alvas como a neve e nada mais do que eu pensava fazia sentido. Um trovão pôde ser ouvido do lado de fora, e enquanto eu tentava absorver o infortúnio vindo do além até aquela família estranha, centrei minha atenção no patriarca que fingiu pesar nos olhos. Aquele olhar... eu já o entendia o suficiente para compreender suas falsidades, era claro como o dia nesse quesito.
— James, o que faremos? — indagou, apreensiva, a mulher mais jovem.
Ignorando-a, deixou a sala sem nem mesmo olhar para trás. Ele certamente escondia algo do restante dos presentes. Ninguém mais parecia ter se dado conta de sua atitude oculta. O clima no quarto parecia ficar cada vez mais pesado, embargado com ganância, astúcia e mentiras.
Uma náusea incontrolável tomava meu estômago segundo após segundo subindo pela minha garganta. Meu corpo começou a tremer e as lágrimas rolavam, eram os sinais perfeitos para compreender o fato de que eu estava prestes a vomitar no tapete. E mesmo que isso fosse uma tremenda amostra de má-educação, corri até a pequena janela ao lado da cama, a abri de súbito e expeli aquele amargor que se movia em minha barriga. Nada além de uma gosma transparente foi desengolida visto que muitas horas haviam se passado desde que comi algo. Foi então que percebi o quão fraca eu estava. Mas fui obrigada a sentir meu estômago forçar o vômito novamente, pois um cheiro de podre subiu rapidamente às minhas narinas.
Abaixo do umbral da janela, no térreo, em meio às folhas recém-caídas da mata, estava o corpo de um cão quase decomposto por completo. A casa, o jardim, as pessoas que ali moravam e as estranhas combinações; todas elas me lembravam um túmulo, um funeral infindável em cada canto.
Eu podia ouvir vozes inflamadas atrás de mim, mas não conseguia entender uma palavra sequer. Minha mente só tinha forças para pensar em uma única coisa: desde a morte de minha mãe, deixei de lado toda minha ligação com qualquer tipo de afeto tida antes, como também nos dois anos em que estive isolada do mundo em minha própria depressão. Alguns dos meus velhos amigos se casaram, outros tiveram filhos e pelo menos um deles morreu. Não compareci a nenhum dos eventos. Para alguns, nem mesmo fui convidada. A dor de perder quem eu mais amava me cegara e nada mais fez sentido a partir dali. Abandonei tudo e todos para trás e desisti da vida com facilidade. Nem mesmo pude compreender ao certo quando aquela onda de determinação me invadiu de forma tal que me fez mudar de atitude.
Mas quando abri espaço entre as inúmeras pessoas na estação quase abandonada, tomei meu assento naquela cabine vazia e minha vida tomou a guinada que o destino havia escrito. Muitas pessoas entraram comigo, algumas com poucas bagagens e outras com absolutamente nada. No entanto, a única parada que foi feita, fôra aquela em que desci, tive certeza. O trem aparentava estar completamente vazio quando passei ao lado das demais cabines na saída.
Pensei que talvez eu estivesse tão perdida em meus pensamentos que não notei nenhuma parada, mas agora, isso continuava ser fazer sentido tanto quanto antes.
— Vamos enterrá-lo em breve, após o velório — concluiu a mulher mais velha, depois de me puxar para longe da janela com rudeza.
— Mas... não deveríamos nomear logo um novo conselheiro para James? — indagou uma segunda mulher, mais jovem.
— Aquieta-se, Norah. Tudo em seu tempo. Nem mesmo é necessária essa sua ansiedade aparente, pois é certo que não indicarei o imprestável do seu marido para ocupar o cargo — a mulher, atingida, se calou instantaneamente.
Limpei os cantos da boca com as rendas do vestido ainda úmido.
— E você — iniciou, dirigindo-se a mim. — Por que está molhada? Vista-se adequadamente e me aguarde no escritório.
Lancei mais um olhar aos presentes e ao cadáver, assentindo com a cabeça. Observei por mais uma última vez o corpo pelo canto dos olhos e me retirei do aposento fúnebre sem devaneios. No entanto, logo ao sair pela porta, me choquei contra o peito de alguém.
James, de volta ao cômodo, segurou em meus ombros e me virou de volta para dentro casualmente.
— O enterro será hoje ainda, se tivermos sorte — posicionou-se na entrada obstruindo a saída. — Gadric, certifique-se de que o pastor do templo ao norte está disponível para redigir a cerimônia e diga-lhe que deixe os preparativos no lugar adequado. Também adiante as coisas com o coveiro e verifique se o caixão está pronto. Se não, usem o meu.
Senti um arrepio percorrer minha coluna. Ele tinha o próprio caixão? Estava esperando sua própria morte desde já? Eu já tinha ouvido falar de idosos que faziam esse tipo de coisa, deixando tudo pronto para que os familiares não tivessem que lidar com a dor do luto se preocupando com preparativos do velório e enterro. Mas James... ele era jovem, corajoso e parecia estar em sua melhor forma. Por que teria um caixão o aguardando?
Observei que talvez nunca entendesse completamente as nuances entre a segurança e a preparação de uma família influente como a dele, como dizia ser.
— Isso não está correto, James — Áldaca disparou pelo quarto até se colocar à frente do patriarca. — Seu tio merece o devido respeito.
— O corpo não será velado — declarou, firme.
— Por qual razão não faríamos isso? É parte da nossa tradição. Como Patriarca, devia saber disso melhor do que ninguém.
Nenhum dos presentes ousava sequer tornar os olhos para outra direção que não fosse o patriarca e sua sacerdotisa, enquanto eu, paralisada, sentia o aperto de James se intensificar nos meus ombros.
— Devo acrescentar, como quem deve saber disso melhor do que ninguém — repetiu ele. — que como diz o preceito, caso nos encontremos numa situação crítica, em casos de extrema necessidade, o velamento será anulado das tradições mortuárias da família. E acredito fielmente que o contexto que nos trás aqui nos deixa exatamente na posição de "situação crítica" fundamental para o cumprimento dos dizeres do código.
— Não vejo tal situação à qual aduz existir. Poderia clarear-me o entendimento?
— Nossa posição na corte pode estar abalada. Sofremos uma traição, nossa família está em um número menor do que nunca, e tudo o que consegue pensar agora é no cadáver de um homem cujo único dever, que seria o de me aconselhar, não cumpria?
E então, ela se calou. O olhar fumegante, antes dirigido à James, agora encontrava minhas falsas íris. Senti proteção por estar tão perto dele, ou meus joelhos teriam falhado com as memórias da agressão.
— As ordens estão dadas e elas não retrocederão — soltando meus ombros, finalmente, senti seu calor se esvair. Se aproximando de quem imaginei ser o tal Gadric, entregou um papel com algumas informações anotadas. — Tome isto e cumpra com o que determinei até o final da tarde.
Sem mais ordens, o homem moreno se retirou do quarto. Ele era o único que parecia não pertencer àquela família, pelo menos, não por laços de sangue. Sua pele bronzeada era diferente das sem vida dos presentes, e seu cabelo castanho não era tão escuro quanto o preto daquela parentela. Ele devia ser o "imprestável" citado por Áldaca, ainda que, agora, eu já não tivesse mais um pré-conceito formado sobre ele.
Alheia a isso, eu só conseguia me sentir desconfortável. Eu não conhecia nenhum dos presentes, senão James e a sacerdotisa, e não tinha certeza se deveria me retirar e esperar por Áldaca no escritório, ou se devia aguardar um lembrete dela. Mas no fundo, eu não queria fazer nenhum dos dois.
Felizmente, James interveio antes que eu tivesse a chance de me decidir.
— Você. Venha comigo.
Áldaca, por sua vez, não deixaria que eu movesse um músculo antes de se opor ao chamado dele.
— Tenho assuntos a tratar com ela. Se não organizarei o velório, então terei de adiantar-me quanto à educação dela. Uma cadela como ela jamais poderá se passar por Odete se continuar com modos porcos como esses — lançou um olhar de cima abaixo pelo estado do meu vestido.
— Você me chamou de "cadela"?
— Sim, a chamei de cadela. Porque é o que você é, uma cachorrinha suja e desobediente que precisa aprender a se portar adequadamente.
— Não a ofenda — interveio James, vociferando atrás de mim. Minha língua foi mais rápida que qualquer ação que ele pudesse ter contra o iminente revés.
Apontei um dedo contra o peito dela, dando um passo à frente cheia de uma coragem que eu nem sabia ter.
— Só porque me bateu uma vez acha que vou te deixar agir como se fosse superior, sua vaca? Eu não lidei com um namorado imbecil por um ano sem aprender uma coisa ou outra, então me chame de cadela de novo e eu vou consertar essa ruindade sua na base da porrada!
Com a afronta, os olhares ao redor se arregalaram em conjunto com o inflar do peito de Áldaca.
— Como você ousa falar assim com a matriarca dessa casa?! — e ali estava, a arrogância escancarada que provava seu complexo superioridade. A posição de James não valia nada para ela, e isso agora era claro para todos. — Oh, você sequer demonstra remorso. Meu peito dói diante desse insulto miserável! O que fará se meu coração parar por sua causa?
Projetei meu corpo para frente com os braços cruzados e me aproximei, fazendo-a recuar o tronco.
— Superando as expectativas, você tem um?
Diante das palavras que James disse a mim na cabana, o cômodo pareceu diminuir e se alargar num único segundo. No instante seguinte, Áldaca estava sendo segurada pela mulher de Gadric, vermelha como uma pimenta malagueta, disparando insultos elegantes que só achei que ouviria em dramas de época.
Mas antes que eu pudesse rebater qualquer um deles com palavras que fariam os presentes desejarem pular da janela, James segurou em meu braço e me puxou para fora consigo, fechando a porta atrás de si e me guiando com pressa escadaria abaixo.
No rosto dele, estava estampado o sorriso mais lindo que eu já havia visto. E aquilo me encheu de uma determinação que eu nem sabia que precisava.
James não diminuiu o passo até estarmos próximos ao estábulo, onde um rapaz cuidava de um dos cavalos. Num único movimento de mão, o fez se afastar e saudá-lo com uma pequena reverência. Com naturalidade, subiu no cavalo e o dirigiu até o lado de uma das encostas da casa.
— É melhor subir no cavalo antes que ela alcance você.
A expressão no rosto dele parecia diferente de todas as outras que eu já tinha visto, como se estivesse verdadeiramente vivo. E pelo subir e descer de seu peito incrustado de couro escuro, eu poderia jurar que era a primeira vez em muito tempo.
Não me demorei mais, as vozes inflamadas dentro da casa começaram a parecer estar cada vez mais perto. Por isso, me apoiei na encosta da casa e, com o impulso e pulso firme de James me ajudando, consegui montar no animal sem muitos problemas. No entanto, assim que subi, fui obrigada a me agarrar a ele como se minha vida dependesse disso. Com um assobio e um movimento de rédeas para direcionar o garanhão, James nos fez partir do jardim em velocidade considerável.
Eu não sabia para onde estávamos indo, nem porque, mas senti que jamais seria capaz de me recusar a fazer aquilo. Era como viver um filme na vida real, com toda a tensão, os risos contidos, a convicção de que poderíamos ficar encrencados, tudo isso fazia meu rosto doer por não conseguir conter o sorriso.
— Você viu a cara que ela fez? — ri contra o vento.
— Eu poderia pedir que pintassem um quadro daquele momento, mas ainda assim não seria suficiente. Talvez eu devesse adicionar uma legenda com a transcrição das falas.
Meu peito se aqueceu com o tom de voz dele, ainda que eu não pudesse ver seu rosto.
— E aonde estamos indo?
— Qualquer lugar, Lúcia. Qualquer lugar.
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