V - A Árvore que ouvia, O Acordo Nupcial e A Cerimônia
Descansando após tantos pensamentos caóticos me assolarem, depois de tanto esforço descomunal, debaixo de uma árvore de sombra fresca, aceitei minha morte.
James estava desmaiado já há meia hora e não mostrava sequer um simples sinal de que acordaria. O sol, agora em seu esplendor no céu, estava quente demais para deixá-lo fritando no meio do caminho. "O cheiro seria horrível", recordei. Por isso, o arrastei até aquela árvore enorme e o deixei descansar na grama ao meu lado. Ao menos ele não estava morto, mas agora possuía mais do que apenas o ferimento do braço. Sua cabeça estava sangrando. Não o suficiente para matá-lo - talvez - ou para significar que era algo sério, mas ainda assim preocupante. Mais para mim do que para ele. O que faria comigo quando acordasse?
Tínhamos iniciado a fagulha de algum tipo de "ambiente seguro" entre nós, por mais que eu não o tenha aceitado de pronto, e agora tinha descido tudo pelo ralo.
Limpei o rosto dele com um pedaço do meu vestido, e rasguei um outro para enfaixar o braço lesionado, mas percebendo que eu não sabia fazer isso, acabei desistindo. Então, tive que encontrar outra utilidade para o pedaço rasgado, enrolando-o em sua cabeça para estancar o pequeno sangramento. Quando as protagonistas de livros de fantasia faziam isso, parecia muito mais fácil.
Observei pela última vez a face despreocupada do homem que me mataria. Se eu não o tivesse atacado com um golpe agressivo daquele, eu poderia ter usado de vários golpes menores para lhe atormentar. Agora, eu já não podia fazer mais nada. O que estava feito, estava feito. Mas não me afastei das possibilidades: eu poderia tê-lo socado nas costelas, chutado sua canela, o sufocado com uma sacola de mercado... e todas as possibilidades começaram a aumentar e se tornarem menos possíveis a cada nova opção sem que eu percebesse sua gravidade. Eram pensamentos surpreendentes para alguém como eu que nunca sequer elevou a voz aos cobradores, então me permiti rir. Eu devia estar fora de mim quando peguei aquela pedra, e agora também, aparentemente.
No entanto, meu riso cessou quando ouvi um murmúrio baixo ao meu lado. A criatura sanguinária que me tiraria a vida estava acordando.
Quando encontrou meus olhos atentos, me encarou como se não soubesse quem eu era. "Se ele tiver perdido a memória", pensei, "vou me tornar uma pessoa tão santa que até os anjos vão ficar com inveja".
— O que você tem na cabeça? — perguntou lentamente.
— Desculpa... eu não queria... só descontei a minha raiva em você — argumentei amuada, sem saber exatamente o que dizer.
— Não podia fazer isso de uma forma mais verbal?! — quando se exasperou, sentiu a dor na cabeça e contorceu o rosto, levando uma das mãos ao ferimento. Foi então que percebi minha completa incompetência fazendo curativos improvisados, porque, claramente, a bandagem que eu fizera estava no lugar errado. Ele a desamarrou assim que viu os dedos manchados de sangue e se sentou devagar na grama.
— Eu poderia mandar matarem você pelo que fez. Ao menos tem ciência disso?
Uma pontada de esperança infantil me atingiu.
— Mas não vai?
— Não vou. Provavelmente Killius me castraria se eu o fizesse.
Pela primeira vez, agradeci pela existência do homem-cervo. Eu estaria devendo-lhe um favor após isso. E isso me fez lembrar que James só estava nessa posição por ter protegido a nós dois daquela fera na cabana. Se não fosse por isso, provavelmente não teria me irritado no caminho de volta e eu não estaria me sentindo mal por ele praticamente ter salvo a minha vida.
— Me desculpa, de verdade. Eu não queria te machucar tanto. Não medi minha força antes de jogar.
— Não é sobre força: você me jogou uma pedra enorme. Como vou manter você por perto, se fede à problema?
— Desculpa... — repeti, me sentindo ainda mais culpada. Ela tinha até cozinhado para mim. Da onde tinha vindo tanta loucura em um espaço de tempo tão curto? — vou tentar me moderar um pouco mais.
— Pelo que eu vi e senti, duvido dessa afirmação.
Com o cansaço, a respiração pesada e as dores o incomodando, teve dificuldade para se pôr de pé, mas ainda assim o fez. Recusou qualquer tipo de ajuda minha, e balbuciou algo como "fique longe de mim" entre um murmúrio sobre sua coluna e outro. Agora estava mais tonto do que antes, até um pouco mais fraco, mas não pestanejava sobre os ferimentos nem um segundo sequer.
No entanto, diferente do que pensei, ele não voltou para o caminho e muito menos se afastou. Permaneceu ali, quieto, olhando para cima enquanto os raios de sol, que atravessavam os galhos cheios de folhas da árvore, atingiam seu rosto.
Vi, ouvi e senti; como seus olhos lamentavam uma existência presa, como suas costas represavam uma dor profunda em seu âmago, como aqueles lábios estavam cansados de proferir mentiras, como aquelas mãos não suportavam mais segurar o peso do mundo. Uma teia de circunstâncias se formou em minha mente sem que eu pudesse atribuir sentido a qualquer uma daquelas palavras. Era como se aqueles pensamentos não fossem meus. Contudo, algo me dizia para descobrir, estar atenta e ouvir o que aquele ínfimo segundo queria me contar. Aquilo era o que chamavam de "intuição feminina"? Por que se era, era assustador.
— Essa é uma Vistoria Crescenti. Uma árvore que vê, ouve e sente, e se move de acordo com a pessoa que a agrada — James olhou para mim colocando as mãos no bolso da calça de couro e suspirando. — Ela está movendo suas folhas como se tivesse acabado de se apaixonar, então é bom que a rejeite antes que se plante em meu jardim, pois ninguém cuidará dela para você. São excepcionalmente carentes.
— A árvore se apaixonou? — afastei meus olhos dos dele para fitá-la com ceticismo. Sem dúvidas, suas folhas se moviam além do vento, dançando nos galhos alegremente.
— Por você.
Seus olhos encontraram os meus novamente. Nada de hostilidade ou ânsia de cometer um homicídio, apenas uma pontada de raiva teimosa.
Aquele homem esquisito de palavras duras e frias agia como se não tivesse medo de nada nem de ninguém, e sua convicção de que era responsável por mais vidas do que a sua própria me fez criar algum tipo de empatia quanto a ele. Mas quando abandonou a armadura de ignorância que criou para si mesmo e agiu como alguém comum, assim como vez na primeira vez, na cabana, enquanto me preparava uma refeição, percebi que não vivia numa realidade tão distante da minha. Podíamos vir de tempos diferentes, mas ainda assim, éramos seres...
— Eu já disse uma vez e não vou repetir. Rejeite-a ou virá atrás de você. E se isso acontecer, a atearei fogo.
Perdi tudo o que estava construindo e fechei a cara numa carranca.
Para mim, alguém que sempre se conectava com qualquer coisa muito facilmente, seria difícil me manter distante dele, alguém com quem eu teria que trabalhar continuamente. Mas a presença um do outro não importava. Eu era um produto, com um serviço a ser prestado e consciência de um fim próximo. Toda aquela história de cumplicidade não duraria muito. Algo me dizia que sequer deveria ter existido.
Por essa razão, afastei-me dele por completo, rejeitei aquela árvore com todo o meu coração, e segui o caminho silencioso à frente.
-
Chegamos à mansão cerca de meia-hora depois, suados pelo sol e cansados demais para trocar uma única palavra.
Quando subi as escadas, fui direto para meu quarto e tomei um banho demorado. Ouvi batidas na porta, mas não me levantei da banheira até que o quisesse fazer. E quando finalmente saí, meus dedos já estavam rugosos.
Sempre fui uma pessoa melancólica, mas naquelas últimas horas, afastei todas as cores da minha visão e aquele cinza que me assolou em minha casa voltou a pesar meu coração. Sentada sobre a cama, observei as árvores do lado de fora da janela. Não eram mais tão lindas quanto antes, muito menos interessantes e vivas. Nem mesmo quis chamar Killius para ter um pouco de companhia.
Enrolada na toalha, já na segurança da minha cama, me deitei e encarei o vazio até adormecer.
Mais tarde naquele dia, levantei-me num salto. Uma voz esganiçada do outro lado da porta me perguntava se podia entrar. Pedi para que esperasse um momento e me vesti o mais rápido que pude, esquecendo de meus cabelos desgrenhados. Por pouco, quase esqueci o anel com o espectro em cima de uma mesinha de canto próxima da banheira. Eu precisava ser eu mesma por algumas horas.
Quando finalmente abri a porta, uma senhora de cabelos quase completamente brancos aguardava.
— Lorde James a aguarda em seu escritório, senhorita. Para definir as condições do contrato.
O contrato... o mistério que eu nem sabia que queria desvendar. Assenti, seguindo-a logo depois. Descemos as escadas e viramos à primeira esquerda, encontrando uma porta adornada com arabescos escuros no início do corredor, passando pela sala de jantar.
O escritório em que entrávamos fazia jus ao seu dono. Parecia ser mais gelado que a casa, ainda que a janela atrás da cadeira acolchoada estivesse fechada e quase completamente coberta por cortinas marrons. Havia um grande tapete vermelho que cobria a maior parte do piso de madeira, e estantes cobrindo cada centímetro de parede. A luz amarelada das lamparinas do canto foram acesas por ele com um movimento de seus longos dedos quando entramos. Nenhum espaço vazio havia naquela sala, sequer. Toda a extensão das estantes era completa por livros de diferentes cores, tamanhos e lombadas. Todos muito requintados, e alguns com o que pareciam ser letras estranhas que eu não conhecia, como as das placas do estábulo. E acima da mesa, logo atrás dele, uma caixinha de madeira, ornada com arabescos tal como folhas, tomava toda a atenção das pilhas de papéis, documentos assinados e calhamaços. Ele aguardava recostado sobre a mesa, com uma camisa branca social e calças pretas. Os cabelos estavam bagunçados por causa da atadura que usava na cabeça. Com certeza, também havia uma bandagem maior em seu braço, pelo amontoado em sua camisa.
— Ficará em pé, parada aí, fingindo-se de muda? — instigou ele, assim que a senhora se retirou com uma reverência, me indicando os sofás gêmeos, um em frente ao outro, no meio da pequena sala.
O patriarca cruzou os braços e colou seus olhos em mim. Não me movi.
— Não estou com vontade de me sentar.
— Por que não atendeu a porta quando bati?
Então, aquela primeira batida havia sido ele.
— Por que foi até lá e agora mandou que me buscassem? — fui direto ao ponto. Ele era a última pessoa que eu esperava ver novamente naquela noite.
— Não me atendeu de bom grado, então tive que tomar outras providências. Entretanto, espero que não se repita.
Me obriguei a responder à contra gosto.
— Abrirei a porta na próxima vez.
— Pois bem, então devemos prosseguir com os detalhes do acordo.
— Do que se trata esse acordo? — indaguei com uma pulga atrás da orelha.
Ele me encarou como se tivesse notado uma coragem firme em mim o que, definitivamente, não existia.
— Você será Odete Bellenort, primogênita da duquesa de MontGreen...
— Sua noiva — me adiantei, o interrompendo. — Sei dessa parte, mas ainda não entendi qual o meu papel exatamente.
Me fitou por um segundo antes de retomar a fala.
— Certo. Será a responsável pela sustentação da mentira de que ela não fugiu com o amante, tomando para si todas e quaisquer ofensas até que ela retorne.
— Basicamente um bode expiatório. Mas isso se ela retornar. O que acontece se não?
— Ela vai voltar. Não é tola o suficiente para abandonar a posição de poder em que se encontra para fugir com um homem qualquer.
James de repente me soava como o corno mais resignado que eu já tinha visto na vida.
— Como isso funcionaria? Existe alguma coisa mais que eu deveria saber?
— Tudo lhe será explicado com detalhes sempre que necessário, mas existem condições que não pode deixar de observar no decorrer do tempo em que se firmar o acordo entre nós — seu olhar baixou, fitando meu pés descalços. — Primeiro: deverá aprender e agir de acordo com uma dama da alta sociedade, obedecendo nossos costumes e mantendo-se atenta a qualquer um que desconfie de você e que tente te colocar contra a parede.
Assenti, esperando que prosseguisse.
— Segundo: não contará a verdade sobre sua identidade a ninguém, nem mesmo às pessoas desta casa. Somente Killius e eu teremos acesso à essa informação.
— Se eu quiser que seja assim — adicionei, interrompendo-o antes que continuasse. Um pouco contrariado, mas aceitando minha decisão, adiantou-se:
— Terceiro: será responsável por me contar tudo o que ouvir, que lhe for falado ou que descobrir entre os círculos sociais em que entrar. Preciso estar a par de qualquer tipo de associação perigosa ou prejudicial, e também aos escândalos dos nobres.
— Então quer que eu fofoque. Acho que isso, eu poderia fazer — sorri com a tarefa simples. Um fio de desgosto rasgou o rosto dele, me fazendo encolher.
— Muito bem. Poderemos acrescentar cláusulas quando nos parecer necessário, mas por ora, começaremos com isso — volteando a mesa e se sentando na cadeira atrás dela, pegou tinta, uma caneta tinteiro e uma folha já com suas próprias anotações nela e me indicou uma das poltronas à frente.
— Agora, diga-me quais as suas condições.
Parando para pensar por um momento enquanto finalmente me sentava, busquei em minha mente qualquer coisa inteligente para dizer. Eu havia acabado de acordar e ainda estava um pouco sonolenta.
— E se eu não quiser aceitar o acordo? Quer dizer, nem te conheço e já quer que eu seja sua noiva. As coisas não são bem assim de onde eu venho, não vou aceitar tão fácil assim.
— Ah, é mesmo? — ele cruzou as pernas e descansou as costas na cadeira, com um olhar curioso. — E quais seriam as suas opções se recusasse a proposta?
Ele... ele tinha mesmo jogado essa carta sobre a mesa? Eu odiava admitir, mas a razão estava toda do lado dele. As únicas ligações que eu tinha ali eram Killius e ele, e eu duvido que Killius escolhesse à mim nessa barganha, afinal, mesmo que agisse como meu amiguinho, não estava fazendo aquilo por mim especificamente, mas para um "objetivo comum". Pelo jeito, aquele objetivo devia incluir James tanto quanto eu.
— Certo, pode ser que você tenha um ponto.
— De fato — concordou. — E pode ser que você tenha suas próprias condições.
Nisso, ele estava completamente certo - como se já não estivesse. Eu só era teimosa demais para admitir suas vitórias.
— Eu... só cumprirei com as minhas obrigações se declarar expressamente no contrato que nada nem ninguém poderá me causar qualquer tipo de mal físico... ou mental — acrescentei ao final, pensando nas coisas mais essenciais.
Anotando minha primeira condição no papel, me permiti observar sua letra impecável. Uma pena ser tão mal-educado tantas vezes.
— E não farei nada que me coloque em perigo. Não quero ser assassinada por causa das suas intriguinhas burguesas.
— Apenas isso? — levantou o olhar do papel.
— Não. Eu também quero ser bem tratada e ter minha opinião ouvida quando estivermos pensando no que fazer, como, por exemplo, decidindo o que eu teria que falar ou com quem falar para descobrir as coisas que você quer. Se vamos trabalhar juntos, quero um nível justo de cumplicidade envolvido. Acho que isso é tudo.
Voltando a anotar, mergulhou a caneta na tinta novamente e finalizou o documento feito à mão com sua assinatura, logo após retornando para sua mesa apenas para pegar algo, voltando logo em seguida, e o consumando com o brasão da família em cera. Era um brasão com uma serpente sendo carregada nas garras de uma coruja, que por sua vez, levava em seu bico um pé de coelho. Tudo ornamentado com folhas, ramos e espinhos.
— Deixamos uma cláusula de fora no contrato. Antes que assine, deveria estar a par dela — virando a folha para mim, indicou um espaço onde estava escrito:
"COMPENSAÇÃO DA PARTE CONTRÁRIA"
Percebendo ele que eu não havia dito nada e apenas fitava o papel, adiantou-se:
— O que irá pedir em troca pelos seus serviços — eu não sabia o que poderia pedir por um trabalho tão inusitado, mas tinha certeza de que alguém como ele seria capaz de pagar qualquer dívida.
Era isso, só precisava da resposta para finalizar aquele encargo.
— Eu não sei o que pedir. Não tem nada aqui que eu queira.
— Sabe que seu pedido pode incluir ouro, jóias, terras ou servos, porém, ainda assim se faz de desentendida. Então deve ter algo mais que queira.
— Se posso pedir qualquer coisa mesmo sem ter nada, sem saber nada sobre esse lugar e muito menos sobre o que você pode ter para me oferecer, essa história começa a me parecer um pouco injusta. Não sei quanto a moeda daqui vale pra dar um preço. Por isso, quero pedir uma opinião antes de prosseguir com o acordo, se não se importar.
Aquele foi um ato que certamente assegurava o levantar de sobrancelhas. Ele sabia de quem eu estava falando e, assentindo, não se opôs.
— Se é o que deseja. Só peço que me entregue uma resposta antes do próximo anoitecer. Selaremos o contrato amanhã, se concordar.
Me remexi no sofá diante da linha de raciocínio que se formava em minha mente. Seria demais pedir algo assim? Eu nem sabia se podia ser verdade, ou se eu estava simplesmente me agarrando a qualquer esperança que surgisse.
— Eu... — ele voltou sua atenção para mim novamente. — quero pedir uma coisa, além do que vou... pensar a respeito.
— E o que seria?
Relutei contra as palavras tão cheias de perspectivas.
— Meu pai. Quero que me ajude a descobrir mais sobre o meu pai.
James me fitou como se não tivesse entendido o meu pedido, cruzando os braços sobre o peito e franzindo as sobrancelhas com a boca entreaberta. Com os lábios tão finos e... afastei o pensamento antes que se tornasse perigoso.
— Seu pai — repetiu. — Você não sabe quem ele é?
— Ele foi embora quando eu ainda era muito nova, não tenho lembranças dele. Mas posso ter tido uma visão dele ontem.
Ele elevou as sobrancelhas em surpresa.
— Uma visão. Você teve uma visão — parecia descrente com a minha afirmação, mas me encorajou a prosseguir.
— Eu vi um homem quase do tamanho de um urso, de cabelos pretos, saindo de um tipo de igreja. Senti alguma coisa com ele, um tipo de familiaridade. Eu não sei explicar o que aconteceu, mas depois disso eu não vi mais nada e a dor na minha coluna parou.
Com uma mão sobre o queixo e a outra descansando no abdômen, pareceu refletir.
— Então, a dor na sua coluna te causou uma alucinação.
— Não! Não foi uma alucinação. Eu sei o que vi e tenho certeza de que não foi normal.
— Alucinações nunca são normais.
Me levantei irritada.
— Bom, não me importa se você acredita em mim ou não, é isso o que eu quero e você vai me ajudar a descobrir.
Quase pude jurar que vi um sorriso fugir de sua carranca.
— Muito bem. Me traga seus pedidos amanhã quando os tiver finalizado e então daremos continuidade ao contrato.
— Está bem. Vou pensar sobre isso — murmurei, simplesmente.
— Ótimo, então estamos de acordo. Só precisará responder uma única pergunta e nossa responsabilidade para com o contrato será consumada.
Retirei meus olhos do contrato que agora observava temerosa e o encarei, convicta de minhas decisões. Afinal, eu não tinha para onde ir, senão ali; além de que Killius deixara claro que eu deveria ficar.
Suas íris verdes me perfuravam, ansiando pelo que eu diria. Havia um pouco de curiosidade ali.
— Aceitaria ser noiva de alguém como eu?
Levantou-se de seu assento e, sobre a mesa, estendeu a caixinha decorada e a abriu em minha direção, revelando um anel escuro cujo aro representava espinhos, com uma esmeralda lapidada em formato de diamante no topo. Ao lado dela, estava uma aliança semelhante ao anel, sem pedra alguma, mas não menos bela.
— Usará todo o tempo, exceto quando em sua identidade verdadeira, para que ninguém desconfie.
— Aceitará ser noivo de alguém como eu? — rebati a pergunta abruptamente.
Sem muita reação, voltou seus olhos dos meus para o anel e estendeu uma das mãos. Fitei sua ação por alguns segundos e cedi, colocando minha mão sobre a dele. E dizendo as seguintes palavras solenes, colocou a aliança em meu dedo anelar:
— Com este anel, expresso minha própria vontade. Livre de culpa ou vício, entrego-me para que já não seja um, mas dois em plenitude.
Com seu voto selado e o anel em meu dedo, olhou-me nos olhos antes de acrescentar.
— Diga o que quiser, desde que não me xingue. Esta é uma cerimônia solene.
Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo. Eu estava mesmo ficando noiva pela pura conveniência de nossas situações tão distintas. Não havia amor entre nós, tampouco qualquer tipo de paixão, mas ali estávamos, colocando alianças no dedo um do outro numa cerimônia à dois. Aquele tipo de intimidade me era estranha, nova e desconfortável.
— Espera, espera um pouco! — me afastei dele, com as mãos no rosto até o meio da sala.
— Tem que me entregar o anel — disse, ríspido, impaciente.
— Espera! Eu só... nunca passei por isso na vida — virei-me na direção dele, deixando que visse minha confusão. — Não sei quantas vezes você já fez isso, com a sua noiva, ou com alguém antes dela, mas não me importa. Eu nunca fiz isso. Pra você pode não ser nada, mas pra mim... é uma coisa com a qual sonhei durante muitos anos. Que imaginei, planejei e me preparei! Eu... — senti meus olhos arderem e meus lábios tremerem. — sempre achei que minha mãe veria esse momento, que o viveria ao meu lado e ao lado de quem eu amo, mas... agora eu estou sozinha. Completamente sozinha.
Quando me dei conta, ele já estava à minha frente, segurando-me pelos ombros como se tentasse me confortar. Não era um abraço, mas me valeu como um.
— Como consegue ser tão irritante? — não senti a hostilidade naquelas palavras. Não estava ali. Havia aberto espaço para uma empatia que eu me recusei a aceitar antes.
— Eu não sei... não sei como fazer isso — não me restaram muitas opções senão aceitar aquele momento. Me assustou, por um segundo. Eu não esperava que ele demonstrasse tamanha proximidade.
Suas mãos não sabiam o que fazer. Hora me tocavam, hora afastavam-se friamente. Ele parecia ter prática nenhuma tentando confortar alguém, mas algo ali me fazia sentir segura, longe do caminho solitário que percorri durante aquelas últimas semanas. Eu tinha um empregador, agora. Um que não me tocava como um aproveitador
— Fui insensível — admitiu, afastando-se apático. — Façamos isso direito. Então pare de chorar. Não quer que sua mãe a veja de rosto inchado em seu noivado.
Ele sabia que ela não veria. Estava morta, e os mortos não viam nada. Porém, apesar disso, aquelas palavras confortaram meu coração como nenhuma outra durante todo o meu luto e, finalmente, fizeram as lágrimas pararem de rolar.
-
Passei a noite me perguntando o que suas palavras queriam dizer, rolando nos lençóis sem conseguir dormir; observando meu rosto no espelho para averiguar o inchaço da agressão que já diminuíra consideravelmente, graças aos medicamentos que ele passara; imaginando o que o dia seguinte havia guardado para mim.
Aquele homem me causava uma confusão que eu não reconhecia. Todas as vezes que olhava para mim, que me dirigia uma palavra ou ação pareciam sempre serem diferentes umas das outras, como se ele escondesse sua verdadeira faceta entre centenas de personalidades. Ele era, sim, arrogante, determinado, muitas vezes ignorante e rude; contudo, ao primeiro sinal de vulnerabilidade, se mostrava mais aberto, tentado a ter uma reação e ser real. Acima de tudo, ele era real. Entretanto, não pude deixar de sentir que essa convicção da madrugada se quebrou quando, pouco antes do nascer do sol, ouvi batidas na porta.
— Achei que teria que ficar esperando — sussurrou quando abri a porta sem que desse tempo suficiente para que abaixasse o punho. Parecia um pouco surpreso, ainda que as olheiras abaixo de seus olhos sugassem toda a vitalidade do rosto.
— O que faz aqui tão cedo?
Ele não me respondeu de imediato, parecendo repensar suas escolhas de vida até aquele momento. Mas, vencido pela iminente decisão já tomada, respondeu sem devaneios, com a voz baixa para não chamar atenção de ninguém na casa:
— Você citou o oceano negro antes de qualquer outra coisa. Ele vale algo para a sua memória?
— Na verdade, sim — respondi em mais um sussurro. — Pode-se dizer que minha mãe falava dele de uma forma mais especial.
— Então coloque roupas mais apropriadas e saíremos.
Dito isso, James se dirigiu até as escadas, sumindo de vista lá embaixo. Ruborizei e me recusei a olhar ou tentar me lembrar o que eu vestia até aquele momento. Aqueles vestidos grandes e cheios de babados não eram bem o que eu podia chamar de pijama, mas o que me deixava envergonhada era que, se eu parasse minimamente para pensar e observar tudo ao meu redor, me daria conta de que estávamos numa época em que mostrar o tornozelo a um homem seria o auge da minha indecência. Eu poderia estar certa, talvez. Mas o que importaria? Essas coisas só deviam funcionar com pessoas que se sentissem atraídas umas pelas outras. Não era o caso. Sendo assim, esqueci aquela bobagem e me apressei para encontrar algo bom para vestir. Meu dia não seria como qualquer outro, assim como estava sendo desde que cheguei ali.
Aurora ainda se mostrava como um mistério para mim, mas MontGreen começava a me dar as boas-vindas pouco a pouco. Nosso início havia sido conturbado, mas eu estava aprendendo a enxergar suas belezas, suas florestas e climas, as pessoas e os costumes. Começava a me acostumar com as diferenças culturais, mesmo que após pouco tempo ali. Afinal, de onde eu vim, tínhamos carros ao contrário de carruagens, televisões no lugar de belos quadros e homens fedorentos egocêntricos ao invés de lindos lordes egocêntricos.
Fiz o possível para não me demorar, pois uma das primeiras coisas que aprendi o observando no nosso pouco tempo compartilhado, é que não possui um poço de paciência muito fundo. Por isso, escolhi um vestido simples, que não necessitava de nenhum apetrecho requintado para ficar bonito, da cor favorita da minha mãe: amarelo. Quando o vi, não pude me conter. Ele estava prestes a me pedir em noivado adequadamente? Parecia que sim, se eu focasse em nossa conversa de ontem à noite. Pela primeira vez em minha vida, eu sentia um nervosismo diferente. Era um evento para se guardar na memória com cuidado, pois não conhecendo nada ali, passariam anos até que eu pudesse ter uma chance de romance. E mesmo que tal chance não existisse, ao menos poderia ser divertido.
Desci as escadas e aguardei em silêncio nas portas da frente. James surgiu da sala de jantar momentos depois, me indicando a saída, onde dois grandes cavalos já podiam ser vistos do lado de fora. Um possuía pelagem preta brilhante semelhante ao que perdemos naquela noite, e o outro era malhado preto e branco, ambos muito altos e robustos, de dentes afiados como de animal canino.
Apesar do meu relance e desconfiança, James me ajudou a subir no segundo, depois se dirigindo ao primeiro que, com a aproximação, bufou mostrando os dentes.
— Qual a raça deles? — perguntei, instigada pelas diferenças tão divergentes do animal normal, sem saber bem onde segurar.
— Nós os chamamos de Funus Visio Nocturna — disse com um sotaque forte, limpando a garganta. Em seguida, montou no garanhão. — Significa "Pesadelo Fúnebre" em latim.
— O povo daqui fala latim?
Ele me fitou como se eu tivesse dito a coisa mais idiota que já havia ouvido na vida.
— Nem todos, mas grande parte das famílias mais influentes do território são letradas em latim. É mais prático chamá-los assim do que na língua original. Nós somos os únicos que os utilizam como montaria.
Segurei as rédeas do animal e encarei sua crina espessa. Eram lindos, de fato, mas ao mesmo tempo assustadores. Cada movimento dos músculos do animal me fazia retesar os meus próprios. A imagem daquelas presas enormes não saía da minha cabeça.
— Não gosta de cavalos? — ele se aproximou até parar ao meu lado.
— Meu pai gostava, era apaixonado por esses animais. Eu mesma nunca parei pra tentar entender esse fascínio das pessoas por cavalos.
— São fiéis, úteis e fortes. Esse é o fascínio — ele se afastou um pouco, fazendo o animal se mover em direção às árvores. E quando percebeu que não me movi e que parecia um pouco temerosa, indagou: — Você já cavalgou alguma vez?
— Com você — respondi, amuada.
Com um curto grunhido e um breve virar de olhos, desceu do cavalo e veio em minha direção. Mas antes que eu pudesse soltar qualquer comentário sarcástico que tenha surgido em minha cabeça, percebi o que iria fazer.
— Opa, calma aí! — antes que eu pudesse me opor mais, abruptamente me agarrou pela cintura, me descendo e segurando com um único braço envolto em mim, como se eu fosse um saco de batatas. — Me bota no chão!
— Você é chata como uma mula. Pare de se debater!
— Já te dei uma pedrada na cabeça, não tem medo do que eu posso fazer em seguida? — era desconfortável estar longe do chão, com alguém me segurando daquela forma; uma completa vergonha. Seu próprio punho estava apontado para seu rosto, limitando-se a me segurar com o antebraço apertado.
Alguns passos à frente, me levantou um pouco mais, dessa vez usando a outra mão para me firmar, e me ajudou a subir no garanhão escuro. Como tinha tanta força assim com aqueles braços? James não era bem o que eu chamaria de rato-de-academia, se observasse bem.
— Poderia simplesmente ter arrumado uma escadinha — reclamei baixinho.
— Perda de tempo.
"Anotado: James não gosta de perder tempo", pensei.
Passei os olhos ao redor para ter certeza de que ninguém havia visto aquela cena ridícula, mas me deparei com inúmeros olhos observando de todo canto: as servas de dentro da casa, as que estavam cuidando do jardim, limpando as janelas do andar de cima, varrendo a fachada da mansão... me encolhi inconscientemente. O que me tirou do transe foi James, subindo no cavalo e se posicionando atrás de mim.
— Espera aí! Por que tem que ficar atrás de mim toda vez?
— Não consegue ficar de boca calada? Acha que eu gosto disso?
— Acho! — franzi as sobrancelhas numa carranca.
Sem mais, avançou com o cavalo para dentro da floresta em velocidade considerável. Estava com raiva? Ótimo, eu também estava. Aquele homem rude de repente não sabia responder uma única pergunta sem ser ignorante ou arrogante? Pois bem, então eu também agiria da mesma forma.
Mais à frente, o animal diminuiu a velocidade aos poucos, passando a apenas galopar com mais tranquilidade.
— Você é terrível — sussurrei, infantil.
— Estamos agarrados um ao outro, não há necessidade de sussurrar. Inclusive, prefiro que me xingue em alto e bom som.
— Você não tem vergonha das suas ações? — me virei o máximo que pude para encará-lo diretamente, com uma careta de indignação.
— Faço isso para te proteger, sua tola! — esbravejou. — Não entende sua situação? Eu sequer deveria estar te deixando sair daquela casa. Tem pessoas demais atrás de você, o que me obriga a permanecer por perto.
— O que foi que você disse?
— Além de tola, linguaruda e teimosa, também parece ser surda.
— SAI! — ao me debater como uma louca que foi pega tentando roubar bebidas de um mercado, acabei me desequilibrando do cavalo, o que o obrigou a me segurar pelo braço para que não caísse. — Não solta... — adverti.
— Pois eu deveria. Não consegue ficar quieta um minuto sequer. Acha que não ouvi você se mexendo a noite inteira?
— Você... ouviu?!
— Mal consegui dormir! Achei que você não roncar fosse um deleite, mas agora percebo que você consegue ser muito pior.
Às vezes, acredito que o destino seleciona aleatoriamente uma palavra para definir cada pessoa em cada dia de sua vida. E naquele dia, o destino havia sorteado "humilhação", em mil sotaques diferentes.
— Impossível não ouvir — acrescentou.
— Seu quarto é próximo?
— Uma porta de distância.
— Pode me puxar pra cima de volta?
Como se tivesse esquecido desse pequeno detalhe, James me puxou de volta para cima com cuidado. Me ajeitei novamente, quase roxa, mergulhada em vergonha.
— Vou tentar ser menos barulhenta — me desculpei.
O cavalo voltou a se movimentar, tranquilo e calmo, o que me fez perder completamente qualquer ponto de fuga para meus pensamentos. Afinal, a última coisa que eu queria pensar ou deixar no ar era toda aquela situação vergonhosa. James também não ajudava, resmungando como um velho atrás de mim.
— Pare de se remoer, disse que vou ser menos barulhenta.
— A esta altura, estou pensando seriamente se você é mesmo capaz disso — disse, aborrecido.
— Pensei que lordes recebessem a melhor educação possível, mas parece que você faltou a todas as aulas pra vadiar por aí.
— Eu não podia, não havia como.
A resposta me pegou de surpresa. "Não havia como?", talvez a segurança em volta dele quando criança fosse muito maior do que agora que era um adulto já feito.
— Inclusive, qual a sua idade?
— Por que quer saber?
— Agora não vai mais responder nem às minhas perguntas mais simples? — rebati. Não era como se eu fosse aceitar que começasse a me ignorar, já que era uma das minhas únicas fontes de informação disponíveis.
Ficando em silêncio durante alguns segundos, suspirou e grunhiu, vencido, antes de responder.
— Vinte e sete.
— Vinte e sete? — quase engasguei. A verdade é que não havia parado para pensar antes de fazer a pergunta, só queria tentar melhorar o clima entre nós, fazê-lo esquecer de todas as ocorrências humilhantes para mim.
— Você é muito irritante.
— Anotado — respondi, já perdendo a paciência e me voltando para a frente.
— "Anotado", o quê?
— Que você não gosta de repetir o que diz. Se eu repito as coisas, você perde a paciência - que já não é muita, inclusive - e me chama de surda. Do mesmo jeito que não gosta de perder tempo.
Ele ficou em silêncio mais uma vez, então, meu objetivo havia sido alcançado. Queria deixá-lo pensativo, pelo menos uma vez, sobre sua presença nos lugares. Quer dizer, sobre o que ele passava para as pessoas ao redor. Ou que ele era fácil de ler? Me perdi em algum momento e não soube bem dizer para mim mesma o motivo de estar juntando aquelas informações, muito menos do por que estava contando para ele.
— Descobriu tudo isso apenas observando? — indagou, interessado. Quase podia sentir seus olhos queimando minha nuca.
— De que outro modo eu faria? — rebati. — Ou ainda acha que sou uma espiã?
— Você é uma espiã.
Congelei por um segundo.
— O que quer dizer?
— Vou acrescentar amnésia à minha lista— relatou, a voz baixa e preguiçosa. — Firmamos um acordo, você deverá me contar tudo o que...
— Certo, certo. Tem razão, só me assustei um instante porque pensei que estivesse falando daquela conversa no caminho de volta. E o que quer dizer com "minha lista"? — me adiantei.
— É tola o bastante para acreditar que eu mesmo não tenho minhas observações? Você é uma estranha que veio morar na minha própria casa, não acha que eu teria tomado providências se achasse algo de errado em você?
De repente, me senti mais curiosa do que achei que ficaria.
— E o que você descobriu sobre mim? — perguntei, somente para saber se responderia. Mas decidi acrescentar: — Sem ser o que já me disse, sobre eu ser tola e blábláblá — o ouvi repetir "blábláblá" baixinho e irritadiço.
E a partir dali, James passou a ignorar minhas reclamações até o fim de nossa pequena viagem.
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