IV - O Predador, A Espiã e A Pedra
Desde que James e eu jantamos juntos, um mais silencioso que o outro, nos despedimos cada um para seu canto. Eu no quarto, ele na sala. Deixara o único quarto disponível na cabana para mim, como faria um homem educado e cavalheiro.
Porco falso e dissimulado.
Esperei ouvir roncos horrendos, mais tenebrosos do que os sons da mais assombrada floresta, mas o silêncio que se instaurou foi tão pesado e frio quanto uma pedra de mármore. Somente a chuva era fonte de som. Forte, rápida e com rajadas de vento poderosas, balançava as árvores ao seu bel prazer. Uma força da natureza indomável.
Ainda assim, pude me sentir segura pela primeira vez depois de muito tempo; bem alimentada, após tantos dias com o que pareciam ser sobras; um pouco mais livre, depois de tantas fugas e lugares estranhos; mas apesar disso, mesmo assim, não conseguia ter uma boa noite de sono. Eu não tinha sonhos, pesadelos, nem o que quer que pudesse aparecer para me importunar ou me deixar com mais perguntas do que respostas durante a noite, mas o sono não me atingia de maneira alguma. Eu estava pronta para aceitá-lo, mesmo que viesse como um soco na cara, mas ele não veio. O que veio foi uma dor de cabeça aguda e chata que não se apartou de mim até que fosse muito tarde.
Cansada de rolar entre os lençóis e me sentindo abafada no quarto fechado, tomei coragem de esticar as pernas e caminhar um pouco, ainda que apenas no pequeno corredor. Saí quieta, de fininho, para que a montanha de pelos no sofá não percebesse minha presença. Me aproximei somente para ter certeza de que ele dormia, enrolada num cobertor, sentindo minha respiração se condensar. Ele dormia tão serenamente, que me perguntei o por que de ser tão bipolar.
No estábulo me tratara como ameaça - o que agora eu havia passado a entender -, depois se irritou por terem me machucado e na cabana me tratara como alguém comum que acabara de conhecer - o que não era errado da parte dele, mas que por algum motivo, me fez vê-lo como um tipo de experimento psicológico que deu muito errado. Se era mesmo tão inconsistente, não havia como saber que próximo passo ele daria. Mas ali estava, entregue ao sono sem se preocupar com o fato de que eu poderia ser uma louca tão inconsistente quanto ele que rasparia sua cabeça e enfiaria seiva de árvore em seu nariz.
Um nariz como os das esculturas gregas? Horrível.
Olhando para ele, finalmente tão quieto sem aquela aura de temor que sempre o cercava, uma curiosidade subiu ao meu âmago, crescendo consideravelmente a cada segundo. Ele parecia ser contra a própria família, mas por qual motivo? Suas palavras ruidosas mantinham um tom escondido entre o sotaque forte e a voz grave, ainda que não conseguisse acobertar a tensão que ele emanava. E como poderia existir em tão plena harmonia, ordem e horror nos mesmos olhos? Alguma parte dele gritava, mas eu não conseguia compreender seu dialeto. Seus gritos... eu tinha certeza de que conseguia ouví-los lá no fundo, presos por um muro intocável de lamúrias e soluços.
Minhas divagações estavam indo longe demais.
Então lembrei-me de uma memória que não vinha à mim já há muitos anos: uma estrada cercada por uma floresta outonal, com asfalto molhado de chuva e uma música antiga sobre 'fechar os olhos e ouvir, até que os olhos vissem também'. Eu nunca soube se aquela lembrança era uma memória real, ou uma peça perfumada com uma sensação daquelas que não possui nome que meu subconsciente criou em algum lugar, mas conhecia a música. Lembro-me, ao menos, de não entender o significado. Não como eu parecia entender agora.
Sentei-me no tapete, próximo da lareira, e observei as chamas crepitantes dançarem em seus tons de amarelo e laranja. Havia tantos lugares e momentos gravados em minha mente, incontáveis, que eu não saberia dizer se eram reais ou ilusão, mas que eram completamente diferentes do que eu vivia agora. Aquele lugar excedia meu senso de normalidade e imaginação, me deixando num vácuo profundo de indagações rasas demais para serem levadas à sério.
As pessoas se vestiam como se tivessem sido presas no tempo; as casas eram antigas e velhas, mas estranhamente bem conservadas; existia magia; espectros existiam; homens de beleza sublime também.
Me arrepiei dos pés a cabeça com o pensamento.
— O que está fazendo acordada? — a voz baixa de James despontou do escuro, ainda mais rouca.
Quando o fitei por cima do ombro com o susto, percebi seus olhos cansados.
— Você também está acordado. Não conseguiu dormir?
— Ainda não — admitiu.
Virei meu corpo na direção dele, ainda permanecendo sentada com as pernas dobradas no tapete. Se estava acordado e disposto a conversar, talvez eu devesse fazer uma tentativa. Ou, simplesmente não confiava em mim pois, como imagino que ele mesmo falaria, eu era "uma mulher de caráter questionável, com os modos de um porco e repleta de ideais estranhos e divagantes". O encarei por um longo momento e, enfim, levantei quatro dedos. Deitado sobre o sofá - que de repente parecia pequeno demais - com os braços cruzados sobre o peito, indagou impaciente:
— O que é isso?
— Tenho quatro perguntas e exijo respostas — abaixei a mão. — Primeiro: que lugar é esse?
Apesar do cansaço aparente e da letargia, James foi receptivo às minhas perguntas. Mesmo que um pouco distante, ele ainda se mostrava atento ao redor.
— Um território ao sul do continente, batizado com o nome da minha família: MontGreen — respondeu, sem devaneios. — Minha vez: de onde você vem?
Surpresa com o rebate direto, segurei a ponta dos meus pés descalços e refleti rapidamente sobre o que dizer e o que não dizer a ele. Assim como eu, talvez ele não entendesse minha situação estranha, e isso poderia facilmente mudar o rumo em que eu iria a partir dali.
— De um lugar bem longe daqui — respondi, somente. — Não sei quanto, mas tenho certeza de que não é parecido com o que vocês têm aqui já há muito tempo.
— Então vem de um tempo à frente do nosso? — presumiu. Os olhos estreitos, o cenho franzido e a boca numa linha fina; aquele homem sabia bem o que queria alcançar, e deixava isso mais claro a cada movimento seu. Conhecer seus inimigos é importante, sim, mas não se compara a conhecer seus próprios aliados.
— Não fure a fila das perguntas! Agora é minha vez — limpei a garganta, afastando qualquer especulação. — Por que tentar manter as aparências ao invés de simplesmente admitir que foi traído?
Ele me encarou com uma feição que me fez pensar seriamente se minha pergunta tinha excedido algum limite, mas sua resposta foi mais aberta do que imaginei.
— Ao que parece, não entende os trâmites básicos dessa sociedade. Teremos que analisar isso com cuidado assim que possível — adicionou ao final como uma nota mental. — Um escândalo de gravidade como esse acarretaria em desastres que você não conhece — continuou, vidrado no teto de madeira — Romperia com a força eficaz que o poder de liderança que a minha família mantêm sobre os outros lordes do território, nos enfraquecendo e fazendo com que qualquer um comece a duvidar de nossa posição e poder. Um acontecimento assim não deveria acontecer, mas cá estamos. Então nosso dever é certificar-nos que todos os problemas serão resolvidos debaixo dos panos, antes que um conluio se forme.
Encarei o anel em meu dedo. Ele estava certo, eu não conhecia sequer o básico daquele mundo, e poderia chegar o momento em que isso se tornaria um problema ainda maior. Adicionei a nota mental dele à minha memória, ao mesmo tempo que me perguntava se valia mesmo a pena confiar no que ele dizia, ou se deveria perguntar tudo mais abertamente à Killius. Até que me lembrei que os dois estavam juntos nessa.
— Você ainda não fez sua pergunta — lembrei-o após alguns segundos de silêncio.
Um suspiro prolongado ressoou quando James fechou os olhos. Sua exaustão o inflamava.
— Você não tem família, não é daqui e não parece conhecer nossos costumes. Então como pode ser tão parecida com ela? — perguntou a si mesmo, num murmúrio. — Que tipo de magia usa?
Engoli em seco sem perceber. Aquela pergunta foi direta de uma forma que eu não esperava. Deveria esperar? A confusão que se formara em minha cabeça desde que cheguei só parecia aumentar e cada vez mais eu sentia como se não entendesse absolutamente nada sobre coisa alguma. A existência de Killius era um segredo? Soava como um. Mas James tinha ciência da magia, o que poderia significar que ele poderia entender. Ainda assim, me senti num terreno perigoso. Tudo ao redor dele parecia inseguro, confiar parecia um problema. Tive que me arriscar.
— Um espectro — depois que revelei a verdade, repensei. Eu era uma mentira. Ele não teria como saber se meu espectro era de boa qualidade - se é que isso existia - ou se eu valeria mesmo a pena me manter se poderia muito bem escolher qualquer outra mulher que sem dúvidas faria um trabalho melhor. Com o poder que imaginei que ele teria, seria muito fácil me trocar por outra que fosse de seu agrado. Uma menos teimosa, talvez.
Agora era tarde, mas aquela hipótese conseguiu me fazer gelar o estômago.
— Não vou perguntar quem o fez para você, pois sei que não irá responder, mas acho importante saber onde está guardado. Para fins de proteção.
A forma como ele adicionou aquelas últimas palavras... Dessa vez, pensei duas vezes antes de responder. Parecia fazer sentido, isso se eu considerasse que ele poderia não saber sobre minha relação com Killius.
— Meu anel. Se alguém retirá-lo, poderá ver minha identidade — sendo sincera, me senti como um super-herói prestes a revelar sua identidade para alguém de confiança. James não fazia parte das pessoas no meu rol de confiança, mas não vi muitas opções à minha frente - nem muitas pessoas. — Agora já chega, é minha vez.
— Perdi a conta de quantas perguntas já foram — James cobriu os olhos com o antebraço preguiçosamente, fingindo me ignorar.
— O que eu teria que fazer durante a atuação? — continuei, ignorando-o também. — Quer dizer, eu sei que vocês vão me explicar algumas coisas antes, mas quero ter uma ideia logo agora de que tipo de coisa eu teria que enfrentar. Não sou muito boa atuando quando não sei o script.
Não que eu estivesse resignada a isso tão facilmente, mas entender do que se tratava me ajudaria na hora de tomar uma decisão. Afinal, eu não estava em posição de escolher muitos destinos.
— Na maior parte do tempo, não terá que fazer nada e poderá gastar seus dias como bem entender, desde que não suje ainda mais a reputação de Odete. E no mais simples dos casos, terá que comparecer, e muitas vezes me acompanhar, em jantares, bailes e confraternizações infernais como se estivesse adorando cada pedacinho da comida que te enfiam goela abaixo.
Então, ele não gostava tanto assim dessa vida requintada da alta-sociedade - se a cabana já não fosse indicação suficiente.
— Você não parece gostar muito.
— Não faz diferença na minha vida — ele voltou a me observar no escuro. — Você é uma mulher?
Por um momento, me sobressaltei de indignação com a pergunta. Ele era cego, ou simplesmente burro? Era óbvio que estava em frente a uma mulher. Será que não enxergava bem? Não gostava de mulheres, ao ponto de não saber como uma se parecia? Tinha neurônios a menos?
— Não, sou uma cabra.
— Isso é ridículo. — ao me ouvir imitar o som do animal, James fez uma careta de aversão e pontuou gravemente cada palavra. — Simplesmente grotesco.
— Está perguntando a uma mulher se ela é uma mulher. Isso, sim, é ridículo.
— Até onde sei, um espectro pode ser qualquer um. Homem ou mulher, não importa. Tinha que ter certeza, pois seus modos não soam muito... bom, como os modos de uma dama. Mas, aparentemente, você não passa de uma cabra.
— Você acabou de... — já muito irritada e com o sono finalmente batendo à porta, quis acabar com aquela ideia mal elaborada de uma vez por todas. — Quer saber?! E você? É um homem ou um alce? Porque seu chifre está quase perfurando meu cérebro!
— Superando as expectativas, você tem um?
Meus olhos se arregalaram em descrença.
— Acabaram as perguntas!
— Você, além de teimosa, é indiscreta. Deveria saber que vai acabar sendo assassinada se irritar a pessoa errada, mas ainda assim continua agindo como uma criança indisciplinada.
— Vai mandar me jogarem na fogueira, meu lorde? — irritadiça e num nível de infantilidade acima do normal, levantei as sobrancelhas numa careta que enojaria qualquer um, zombando dele sem a menor gota de vergonha.
Em resposta, a fenda de suas sobrancelhas aumentou ainda mais.
— Posso cogitar. Mas o cheiro seria horrível.
Antes que eu pudesse rebater, um rugido violento ressoou do lado de fora da cabana, fazendo meus cabelos se arrepiarem e o homem à minha frente se jogar no chão. James rapidamente se posicionou entre mim e o sofá, segurando meu pulso com uma de suas mãos para trás.
Fez-se quietude. James ficou em silêncio como um predador, ouviu com atenção, observou as janelas e fez um sinal para que eu seguisse para o corredor em silêncio, sem me levantar.
A criatura quadrúpede de olhos costurados rompeu cabana à dentro antes que eu pudesse me mover, derrubando a porta com um estrondo ensurdecedor, como se não fizesse grande esforço. Era uma criatura saída dos meus piores pesadelos, com pele escamosa, patas enormes e olhar flamejante de fúria. Sua cauda longa e corpulenta chicoteava o ar em ameaça. Sem perder tempo e antes que a besta atacasse primeiro, James desembainhou uma espada que não percebi estar com ele antes, uma lâmina escura e brilhante, que cortou o ar avançando contra o animal. A criatura, por sua vez, rugiu em resposta.
Os momentos seguintes foram uma mistura de grunhidos, cortes, sangue e pavor. James desferiu golpes vigorosos, mas que ainda assim, não conseguiram desacelerar a besta, tentando a todo momento atingi-lo com suas garras e dentes poderosos. Consegui me mover o suficiente para encontrar o início do corredor, e então corri para o final dele, entrando numa porta destrancada do que parecia uma despensa. Agarrei meus joelhos e permaneci ali, ouvindo o que se passava na sala, imaginando coisas terríveis, lutando contra um tremor aterrador, esperando que tudo aquilo acabasse. Até que vi uma pequena janela no alto. Teria de ser suficiente.
Com uma ideia tola na mente e uma sobra de coragem fraca, subi em algumas caixas de madeira que encontrei num canto e consegui sair pela janela aterrisando no estábulo vazio. O garanhão havia desaparecido e a luta entre os dois se intensificava dentro da cabana, parecendo fazê-la tremer por inteiro.
O clima do lado de fora me atingiu como a lâmina daquela espada - gélido e arrepiante. Foi então que um estrondo rompeu o silêncio da floresta. Corri para ver o que estava acontecendo, me apoderando daquele restante de coragem que ainda fervia. A criatura tinha escamas grossas cobrindo suas costas e cabeça e uma boca como de crocodilo, repleta de dentes e pronta para dilacerar a carne do homem à sua frente. James parecia tão pequeno perto de uma fera daquelas, mas nem um pouco acovardado pela violência dela. Muito pelo contrário, avançava com cada vez mais potência contra ela, cravando sua espada nos locais mais vulneráveis do animal.
O sangue manchava a grama e a madeira destruída do que um dia fôra a cerca que ornava a varanda da cabana, agora estavam espalhada pela relva. Os dois predadores deviam ter despencado pela janela, destruindo parte da parede maciça, e rolado antes de retornar ao confronto mais uma vez, pois a janela mais próxima do espaço da cozinha também estava completamente em cacos.
Eu tinha que fugir. Me esconder. Não sair até que James dissesse que era seguro. Mas não me movi, senão para ajoelhar na grama e gritar de dor.
Uma dor angustiante que me tomou por completo, membro por membro, contorcendo cada músculo do meu corpo. Minha coluna parecia estar se partindo em milhares de pedaços, corroendo sob a pele, remexendo meus ossos, os triturando e depois os remodelando.
Um calor feroz subiu até minha espinha e ali se alojou até que eu o sentisse entrando por cada ligação do meu corpo.
Tornando-me parte daquilo.
Um objeto de pele, carne, ossos e nervos.
Uma visão estranha tomou meus olhos. Saindo de algum tipo de catedral, eu via um homem grande, de cabelos pretos e poder palpável. Eu não conseguia ver seu rosto, mas sentia uma tempestade dentro de mim se formar.
E então, tão rápido quanto surgiu, desapareceu como uma lufada de vento. Quando voltei a mim, lembrei-me de James.
Com um último movimento decisivo rachando cada escama da cabeça da criatura e urrando com a necessidade de usar mais força para acabar com aquilo, sem a menor piedade, o vi alojando sua espada no crânio do animal que, por sua vez, soltou um grunhido de derrota que poderia assombrar o resto dos meus dias, cambaleando enquanto se rendia ao impulso final antes de cair no chão, morta.
James estava encharcado com o sangue dele, respirando pesadamente sobre a carcaça e expelindo uma fumaça negra pela boca. O olhar direcionado à ela com uma mistura de triunfo e alívio, ainda que estivesse ferido. Seu braço havia sido atingido, não me permitindo ver o ferimento à distância, apenas o sangue que caía em gotas até a grama molhada. Mas quando me viu ajoelhada no chão o encarando, fechou sua boca extinguindo aquela fumaça e me fitou em retorno.
Havia provado o porquê de ser o Lorde daquele território e, ousaria dizer, o predador mais poderoso daquela floresta.
Senti arrepiar com aquela comunicação silenciosa, um encarando o outro, com poder emanando para todos os cantos, fazendo as árvores cessarem seu balançar, apesar do vento. Jurei que vi, assim como a fumaça pouco antes, que as árvores atrás de si se curvaram em sua demonstração de força e poder.
Tenho certeza do que vi, mas temi acreditar.
— Acabou? — perguntei ao longe, num sussurro que me fez travar a garganta.
Ele não me respondeu, mas desceu de cima da criatura e caminhou até mim, arrastando a espada na terra molhada. Só então me dei conta da chuva que voltara a cair.
— Está ferida? — apesar de sua pergunta, percebi ainda estar fora de si. Não sei se pela adrenalina, ou o que quer que tenha sido tudo aquilo, mas seus olhos percorreram meu corpo sem preocupação real, vazios como uma rachadura na terra.
— Minha coluna — tremi ao dizer.
James se ajoelhou e segurou meus braços.
— O que disse? Aonde dói?
— Minha coluna — repeti. A dor havia ido embora, mas persistia um medo anormal de que algo ainda estivesse lá. Rastejando sob minha pele.
Seu olhar voltou ao normal aos poucos, retornando sua feição irritadiça.
— Sua coluna? — virou-se para observar e procurar. Mas quando puxou a abertura da blusa para ver melhor, acordei daquele transe que me mantinha tão indefesa.
— Não estou machucada. Estou bem — fiz menção de me levantar.
— Disse que sua coluna... estava doendo.
— Não dói mais — rebati, tentando levantar-me sozinha, mas recebendo o auxílio dele quando meus joelhos falharam. Olhei em volta em busca de algo. — Onde está o cavalo?
Ele parou, pensativo, antes de me responder.
— Não importa. Está na hora de voltarmos, aqui não é mais seguro.
E quando James deu meia volta e se dirigiu ao que restava da cabana para buscar suas coisas, vigiei o derredor. Talvez o garanhão negro voltasse agora que o silêncio da floresta voltava a reinar em paz.
Algo me observava nas sombras, eu podia sentir. Faminto, esperando o momento certo para atacar.
Observei a floresta voltar à sua sinfonia de tons lentamente, e quando olhei para o topo de uma das árvores, percebi que o pobre cavalo não voltaria. Ele estava dilacerado entre os galhos de uma árvore alta afastada da cabana, e alguma coisa longa e brilhante começava a rodeá-lo.
Aquele não era mais o mundo que eu conhecia. Era muito, muito mais cruel, devasso e belo.
E extraordinariamente familiar.
-
Enquanto estivemos juntos, após aquela madrugada anormal, não nos falamos mais. Permaneci num silêncio desconfortável ao lado dele durante todo o caminho de volta, que tomou aproximadamente duas horas. Havíamos esperado até que o sol raiasse, quando James julgou que era seguro sairmos. A passos largos, ele liderava a frente empunhando a espada escura. Atrás dele, eu seguia preenchida por memórias distantes.
A floresta, agora começava a se mostrar mais inocente e iluminada, revelando pequenos segredos entre suas raízes. O orvalho novo preenchia as samambaias pelo caminho, enfeitando-o com suas folhas e protegendo os tapetes de musgo debaixo de sua sombra. Uma brisa fresca cantava em meus ouvidos, enquanto eu me atentava ao canto de uma cigarra não muito longe de onde estávamos.
Era um cenário digno de ser escolhido pelo melhor dos artistas. Não por uma beleza exuberante ou luxuriante, mas por sua simplicidade tão quieta. Ele usaria tons claros, um pouco opacos, que cativassem o observador a continuar a desvendar os detalhes, assim como minha mãe gostava de fazer. Ela teria feito jus àquela imagem, apontando sua personalidade própria em cada pequena particularidade, a cada pincelada, cada rodopio de satisfação e sorriso jubiloso. E então, ela lavaria as mãos, prepararia nosso café da manhã e guardaria suas poucas tintas para que não secassem. Não tínhamos muito dinheiro para gastar com nossos hobbies, mas isso não a impedia de também dar atenção a eles. Pagávamos nossas contas com dificuldade, nunca passando frio ou fome apesar disso. Tenho certeza de que ela cuidaria para que o meu mais egoísta desejo fosse concedido, mesmo que isso a deixasse sem um novo par de sapatos para o trabalho.
Felizmente, a presença e felicidade dela sempre foram o suficiente para mim acima de qualquer outra coisa. Ela era o único motivo pelo qual eu vivia. Não existiam objetivos a serem alcançados ou sonhos para realizar. Eu sempre tive tudo o que precisei, e todo o resto, eu poderia encontrar nela. Aquela era a minha definição de perfeição.
Mas quando aquela presença se foi junto com os risos e as conversas acaloradas, tudo o que sobrou para mim foi o cinza de uma caminhada sem cores, parecendo não ter fim, que criava uma atmosfera cada vez mais fria em nossa casa. Foi por isso, acima de todos os problemas, que decidi ouví-la e abandonar tudo, deixando tudo o que um dia foi nosso para trás, e recomeçar em um lugar desconhecido. Do qual ela sempre me contou, mesmo que eu nunca tenha me dado conta.
Aquele lugar... era exatamente o que ela me dissera quando pequena. Era uma floresta belíssima, cheia de incontáveis perfeições da natureza, cercada por rios, mares e oceanos tão coloridos quanto mil pores-do-sol.
Ela me contara histórias fantásticas sobre muitos outros durante minha infância. Lugares que sempre cri serem apenas existentes na imaginação insaciável dela; lugares que eu mesma não conseguia mais imaginar agora, mas que começava a receber aquelas sensações em minha pele novamente.
Ela sabia que eu viria, e estava ansiosa por isso.
— Vocês têm mesmo um oceano tão escuro quanto um diamante negro? — quebrei o silêncio com cautela.
Aquela lembrança em especial me fazia pensar no meu pai, em todas as descrições que minha mãe havia dado dele e sua personalidade. Fazia com que aquela estranha visão voltasse à mim continuamente.
James me olhou por cima do ombro, rompendo a bolha que se manteve desde que saímos da cabana. O ferimento no braço pouco o incomodava.
Eu não poderia pedir a ele que me levasse até lá. Primeiro, porque não acreditava muito que ele seria agradável o suficiente para me mostrar o lugar. Mas se não queria sanar minha curiosidade, poderia ficar calado e ignorar minhas perguntas.
— Sim, temos — nenhuma palavra a mais, nenhuma a menos.
— E uma cordilheira nevada com formato semelhante à uma coroa com três pontas?
— Mhm — entendi o grunhido como um "sim".
— E também um campo de guerra onde nada cresce há mais de cem anos?
James parou abruptamente, quase me fazendo chocar contra suas costas. Recuei quando se virou para me encarar, com uma expressão que fez meu coração se acelerar de ansiedade. Aquele olhar fervia com hostilidade.
— Como sabe disso? Quem a enviou?
Senti meu rosto ficar quente. Cerrei meus punhos na lateral do corpo na esperança de que isso ajudasse a diminuir o tremor em minhas mãos, mas minha voz me delatou, quando disse, sem entender do que ele estava falando:
— Ninguém...
Com sua paciência por um fio, James segurou meu braço e me fez se aproximar dele, me obrigando a olhá-lo nos olhos acima de mim.
— Não minta para mim, isso só matará o restante de misericórdia com o qual procederei.
Ele me encarava em busca de uma resposta imediata, mas as palavras não conseguiam sair do rascunho medíocre que criei.
— Eu não... não fui enviada por ninguém! — tentei amenizar a força que usava para me segurar com uma mão, mas ele me puxou para ainda mais perto. Nossos narizes quase se encostando. — Não estou mentindo. Por favor...
— Então como sabe de tudo isso? — finalmente, me soltou bruscamente. — Tudo isso não passou de uma artimanha? Não sei como não percebi isso antes — acrescentou para si mesmo, enquanto se movia de um lado para o outro com a mão massageando a mandíbula com preocupação. A fenda em suas sobrancelhas estava mais aparente do que nunca.
— Por favor, estou dizendo a verdade...
— A verdade? — rosnou ele. — Aparece aqui como se não quisesse nada, não soubesse nada e sem nenhum antecedente, mantendo uma trilha estratégica perfeita, e agora joga perguntas tão dissimuladas. Aparentemente não enviaram seu melhor soldado.
Aquele pensamento de quando se vai ao banco e você mesmo se pergunta, "e se eu tiver uma arma comigo e não estou sabendo?', se apossou de mim naquele momento. Não fazia o menor sentido, mas sendo sincera, nada parecia fazer sentido.
— Minha mãe — iniciei acovardada e encolhida. — ela me contou histórias sobre paisagens e lugares que acredito fazerem parte do que você chama de continente — não consegui terminar meu argumento, pois ele me interrompeu, impassível.
— Ah, a mamãe te contou, não é? — ainda mais irritado que antes, apontou um dedo em minha direção. — Suas mentiras não vão me convencer.
— Não são mentiras! — bradei, ciente de que a fúria que me consumiu desapareceria em breve.
— Não? Então que provas você tem?
Me calei. Ele não estava louco, muito pelo contrário, se mostrava completamente são. E para o meu desespero, ele tinha razão em pensar daquela forma. Minha história era fantástica, no mínimo: uma garota chega a um mundo completamente diferente do seu, em um tempo que só conhecia pelos livros de história, enviada pela mãe falecida para recomeçar uma nova vida, guiada por um homem com uma estranha obsessão por verde. Nem mesmo eu acreditava mais nessa narrativa alucinada.
Massageando as têmporas como se tentasse se acalmar ao perceber a confusão e o medo em meu rosto, indagou-me tentando manter a seriedade da voz:
— O campo de guerra de que falou voltou a ser como era antes já há muitos anos. Poucos são aqueles que se lembram do tempo que você citou, quando a morte e o sangue daqueles inocentes ainda manchavam a terra, então como saberia disso? — quando percebeu que eu não possuía uma resposta, senão algo que eu já havia falado, prosseguiu. — Estou tentando te dar uma chance de provar que posso confiar em você, mas aparentemente, as informações que você tem excedem até mesmo a memória do mais velho general deste reino. Consequentemente, se não me der motivos para acreditar, então não poderei deixar que isso passe como se não fosse nada.
Aquilo foi uma ameaça, percebi. Mas eu não tinha mais nenhum argumento para usar, senão...
— O nome dele é Killius, o homem que fez esse espectro para mim. Ele virá se eu o chamar, e poderá confirmar o que estou dizendo.
Num milésimo de segundo, a expressão no rosto dele mudou. Ainda era a mesma surpresa de quando me considerou uma possível espiã inimiga, mas dessa vez um pouco mais cordial. Um tipo de cumplicidade desconfiada boiava naquele olhar.
— Imaginei essa possibilidade, mas não pude crer — concluiu para si mesmo, percebendo o erro. — Foi ele quem te mandou para cá? O que Killius queria quando te colocou nessa posição?
Pela forma como falava, ele já o conhecia desde muito antes de mim.
— Foi minha mãe quem me disse para vir. E ele não disse porque, só mencionou um objetivo em comum. Nada mais.
Dizer que Killius conhecera meus pais parecia demais, e por causa desse entendimento, preferi não dizer nada sobre isso à ele. Ele não merecia saber depois de ter sido tão rude.
Agora, mais calmo e relaxando aos poucos, cobriu sua boca com uma das mãos, pousando a outra na cintura. Permaneceu pensativo por alguns segundos, perdido em sua própria mente. Provavelmente se indagando se valeria a pena confiar em mim, mesmo que eu não tivesse muito para dar-lhe em troca.
— Peço perdão por minha atitude de antes, e ainda, peço que entenda minhas motivações. Sou responsável por centenas de vidas nesse continente, e não conseguiria perdoar a mim mesmo se permitisse que algum mal lhes ameaçasse a paz.
E com um movimento respeitoso, abaixou sua cabeça em uma reverência diplomática e se virou para continuar o caminho em silêncio mais uma vez.
Aquele imbecil.
Me fizera sentir cada borboleta no meu estômago corroer minhas tripas de medo, me fez sentir pequena como nunca antes, agarrara meu braço como se eu não fosse nada e ainda se desculpou com um arrependimento falso e padronizado. Aquela frieza podia valer alguma coisa para aquelas pessoas, mas para mim, não passava de arrogância pura e desmedida.
— EI, IDIOTA!
Peguei a maior pedra que encontrei no caminho e joguei contra a cabeça dele sem pensar nas consequências. Mas infelizmente, tais consequências impensadas me alcançaram, pois no segundo que a pedra caiu no chão após atingi-lo, ele me olhou com ódio por cima do ombro e desmaiou logo em seguida.
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