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III - O Estábulo, A Montanha e A Cabana da Floresta

A noite se tornou cada vez mais gelada conforme a tempestade se intensificava. A beleza que contrastava com a escuridão que cercava aquela casa havia se apartado silenciosamente e, de repente, o mundo pareceu embaçar.

Fui dormir depois de tanto chorar, com os pulmões fracos e os soluços constantes amplificando minha fraqueza. Meus olhos doíam e o cansaço me forçava a uma sonolência brutal. Durante meu sono, imagens e pensamentos sem muito sentido começaram a aflorar. Perguntas sem resposta, livros sem nome, páginas em branco e relógios com ponteiros tortos. Tudo embelezando um excêntrico quadro de bordas vermelho-bordô. E então, minha visão se afastou aos poucos num movimento que me apartava dele. Dele...

Ali, naquela visibilidade mais ampla, vi um homem em trajes vermelhos observando uma peça. Usava diversos acessórios em ouro puro, e suas mãos, marcadas por fios de ouro líquido que escorriam de dentro das mangas do casaco de veludo vermelho, pendiam ao lado do corpo. Seus cabelos castanhos cor de madeira escura pareciam balançar com um vento vindo sabe-se-lá de onde. Ele não se afastava do quadro nem por um segundo, observando suas cores abstratas de azul, verde, amarelo e areia. Mas então, quando minha visão clareou ainda mais e se distanciou dele, vi minha mãe como uma obra-prima. Os cabelos loiros movendo-se com o vento dos belos campos verdes, debaixo de um sol iluminado e céu incrivelmente azul, usando um vestido amarelo formoso. Seus olhos azuis olhavam com ternura para o homem à frente, observando-o de volta.

Os trovões da tempestade e o relinchar de cavalos me despertou do sono inquieto em que me encontrava.

Meus olhos rodaram pelo quarto em busca de algum sinal, qualquer coisa, que me trouxesse de volta à realidade.

Sentei-me na cama tremendo - de frio e medo dos trovões cada vez mais altos. Aquele sonho me trazia uma sensação de que algo não parecia certo, que não deveria existir. Mas quando um novo trovão soou, mais aterrador que o último, os cavalos relincharam novamente. Deviam estar com tanto medo quanto eu, e ninguém na casa parecia acordado àquela hora.

Eu me sentia mais cansada que o normal. Como se as horas de sono não tivessem sido suficientes. Ainda assim, movida por um sentimento estranho, me convenci de que queria vê-los mais do que queria sentir medo. Minha mãe sempre disse que meu pai tinha um amor profundo por cavalos, e essa foi uma informação que me seguiu durante toda a minha infância. Ao menos, durante o tempo em que me iludi esperando o dia em que ele voltaria. Esse dia nunca chegou, e como um exército que tem seus soldados desaparecidos como mortos em batalha, decidi, quando soprei as velhinhas do meu bolo de aniversário de nove anos, que meu pai estaria morto daquele dia em diante.

Desci a escada estreita dos criados, escapei em silêncio pela porta lateral, e encontrei um grande estábulo alguns metros à frente, na parte de trás da casa, um pouco afastado. Os cavalos estavam assustados com a tempestade tanto quanto eu.

Tive que andar com passos firmes e lentos, para que não escorregasse na lama, e quando cheguei, finalmente, na cobertura do estábulo, minha camisola branca estava ensopada. Se não fosse pelo cobertor de pele amarronzada - do que parecia ter sido um urso um dia - me cobrindo, estaria muito mais exposta ao frio. No entanto, por conta da chuva grossa, a pele se tornara inútil. O ar ficava cada vez mais congelante com aquelas roupas molhadas.

Quando adentrei mais o estábulo, os cavalos se agitaram e bufaram. Pareciam saber que minha presença estava no lugar errado, na hora errada, como se não fosse bem-vinda. Mas tanto quanto eu, arrepiavam suas pelagens espessas. Estava escuro, e apenas a luminosidade dos relâmpagos ajudavam pouco a pouco a me dar uma visão melhor do local. Eram cavalos belíssimos, de várias cores. Pareciam todos pertencer a uma raça que eu desconhecia. Tinham longas crinas e caudas e patas peludas; suas orelhas eram pontudas como chifres e presas afiadas escapavam por suas bocas, maiores, muito maiores, que de cavalos comuns.

Estavam todos dentro de suas respectivas baias, exceto por uma baia vazia. Eu não conseguia identificar as letras escritas nas placas acima de cada baia onde, provavelmente, estariam os nomes de cada um. Aquelas eram criaturas poderosas que relinchavam rosnados, transtornados pela tempestade. Me afastei deles o máximo que pude, e com um novo relâmpago cortando os céus, encontrei, jogado por sobre um monte de feno no fundo do estábulo, um uniforme surrado e um pouco fedido com botas de montaria um pouco maiores que os meus pés. Iria servir. Ao menos, era melhor do que uma camisola encharcada e uma pele de urso fedendo a animal molhado. Senti uma pontada de tristeza depois de me dar conta que provavelmente nunca mais veria meu coturno.

Ao menos, a chuva agora era mais fraca.

Me vesti na baia que estava vazia, me sacudindo um pouco para que a água do meu corpo escorresse, vigiando cada movimentação dos meus observadores. Mas quando juntei meus cabelos nas mãos para tirar o excesso de água, ouvi um galope lento nas poças de lama. Era arrastado, devagar, brincava com minha imaginação sobre o quão perto poderia estar. Mas o medo do que uma daquelas coisas poderia fazer comigo se me alcançasse me congelou no lugar, não mais permitindo que minha pouca coragem daquela noite me fizesse sair dali, pegar minhas coisas e fingir que nunca tinha estado lá.

O som se aproximou cada vez mais. Petrificada, sem conseguir decidir entre fugir ou continuar em silêncio, me agachei no fundo da baia entre um monte de feno. Segurei meus joelhos e esperei... esperei por algo, qualquer coisa. Mas quando houve um estalo no chão de pedra, como se o cavalo tivesse parado no centro e batido o casco, o estábulo se silenciou instantaneamente. Quando me acheguei ainda mais, num movimento mal-planejado, acabei esbarrando num balde que não vi estar ali.

Uma voz carregada despontou da escuridão como uma adaga.

— Saia.

Permaneci calada e cobri minha boca. Um sopro de alívio me preencheu. Eu não seria morta por um cavalo, ainda não. Com sorte, o homem acreditaria que um dos cavalos tinha esbarrado em algo e iria embora, mas os animais agora estavam tão quietos, que duvidei eu mesma.

— Esta noite, cacei como em nenhuma outra — iniciou ele, aproximando-se passo a passo, observando as baias dos cavalos, percebi. — A floresta se mostrou receptiva, como de costume. Amedrontada com o que eu viria a fazer; quantas vidas tomaria. E por isso, — o ouvi se aproximar ainda mais. — se silenciou aguardando pelo luto.

Mantive minha boca coberta, apertando minhas mãos contra a pele. Meu corpo tremia, mas não mais pelo frio. Suas palavras ecoavam pelo estábulo silencioso, às vezes pouco escondidas pela chuva. Mas então, aproximando-se cada vez mais do fim, vi uma névoa escura e baixa adentrar a última baia e me alcançar. Encolhi meu corpo o máximo que pude, mas ainda pude sentir o toque da bruma.

— Você teme a morte? — ele indagou, a voz calma, grave, tão rouca que parecia rasgar a garganta a cada palavra e com um sotaque firme. Aguardou uma resposta, como se desse um minuto para que sua misericórdia finalmente se esgotasse e, não obtendo resposta, concluiu — Pois devo alertá-lo, que se não a teme, tampouco eu.

Me levantei. As mãos tremendo, o coração descompassado e os joelhos falhando. Saí da baia e um relâmpago iluminou o céu mais uma vez.

Ele ainda estava montado sobre o cavalo, então eu não conseguia dizer quem era maior: ele ou o animal. Me vendo, enfim, permaneceu em silêncio por alguns segundos, seguido por um suspiro impaciente.

— Aproxime-se, mulher.

Como se pisando em ovos, me aproximei como ordenou e parei em frente ao cavalo. Não ousei olhá-lo nos olhos até que me mandasse que o fizesse. E quando finalmente olhei, fitei aquelas íris verdes vibrantes. Me observava com cautela da mesma forma que eu fazia com ele. Não sei o que mais lhe prendeu a atenção, mas vi o suficiente naquela escuridão para saber que aquela feição gélida não mudaria, independente de para onde olhasse.

Mantinha os olhos semicerrados e atentos, me analisando; a mandíbula trancada, as sobrancelhas franzidas e as mãos ainda agarradas com força às rédeas.

— Você é a garota — concluiu, por fim, com um ódio na voz que me fez encolher.

— Duvidei... mas acho que sou — respondi, tentando manter a calma ao compreender que ele devia ser um dos membros da família.

— Gostaria de ter duvidado — admitiu ele. — Mas as semelhanças não mentem. Você é ela.

Dizem que o maior medo não é aquele que se pode ver, ouvir, ou sentir. O maior medo é o medo do desconhecido. Aquele que te faz repensar cada passo dado, que te faz tropeçar até mesmo nos mais simples obstáculos. Aquele pavor que faz a sua respiração cessar e se contorcer presa dentro de você como um verme. Com toda a certeza, a maior emoção que um ser pode sentir, mortal ou imortal, é o medo. Mas aquele homem... havia algo nele que irradiava algo diferente. Um arrepio diferente. Uma sensação diferente. Um temor diferente. Ele era um tipo de medo diferente.

— Creio que já a tenham feito ciente de seus deveres.

— Não — sacudi a cabeça, afastando os pensamentos mais uma vez. — Estão me tratando como mercadoria desde que cheguei.

— Mercadoria, você diz? — ele se absteu de mais, mantendo o silêncio por alguns instantes antes de continuar. — Tola. Não faz ideia do que faz aqui, se sente como uma mercadoria, como diz, e ainda assim se mantém encolhida perante mim como se fizesse jus ao que acredita ser. E além disso, — disse, olhando-me como se fosse um cão abandonado na beira da estrada. Senti fel subir até minha garganta. — deveria se valorizar mais como "mercadoria", já que foi paga por um preço realmente muito elevado para uma ninguém como você.

Meu estômago se revirou ao ouvir a aspereza daquelas palavras, mas se limitou a isso. Não havia nada em minha barriga para vomitar em suas botas de montaria. Aquele homem não mostrava nem um pingo de remorso diante de suas palavras. Suas expressões não mudavam, não oscilavam, como se fosse feito de um material inflexível. Era um caçador insubmisso.

— Uma ninguém? — minha bochecha dolorida latejava mais a cada palavra. — Fui sequestrada, levada contra a minha vontade, e agora, diz que pagaram "um preço muito elevado"? — zombei, encarando-o nos olhos, elevando o pescoço mais do que achei que seria preciso e mantendo minha postura o mais ereta possível. Ele não tirava os olhos dos meus. — Então, acho que devo lembrá-lo de que sou uma mulher, não um porco para ser comprado e experimentado como bem entender.

Ele me fitou por mais alguns instantes antes de responder, como se tentasse compreender as palavras que saíram da minha boca, formando um vão entre suas escuras sobrancelhas.

— Você esqueceu uma palavra, apesar de ser uma frase simples, o que demonstra que, com toda certeza, um porco que estaria lutando por sua vida poderia repetir com destreza e facilidade as exatas sílabas. "Realmente", foi a palavra que você esqueceu — sibilou, iniciando de forma arrogante. — Porém, como sinal da minha piedade para com quem se compara com um porco, te darei o benefício do meu esquecimento.

— Como pode fazer algo assim com uma pessoa e não parecer sentir nem um pingo de remorso?

— Não acredito em remorso — respondeu ele, ríspido. — Apenas em arrependimento. Mas não o sinto pelo que fiz a você.

O que fez a mim.

Deixei escapar um momento de surpresa em minhas palavras, baixo o suficiente para que os trovões as escondessem.

— Você é ele...

Sim, tão arrogante, inescrupuloso e maldito quanto poderia ser.

Recuperando-me do mal-entendido que eu mesma criei, levantei mais minha cabeça, sustentando o olhar dele no alto. Sua boca não passava de uma linha fina e irritada, agarrada àquele rosto sepulcral.

— E tem a coragem de me dizer que não se arrepende? — ataquei, como se o que eu tivesse dito antes fosse um xingamento que ele não conseguira ouvir.

— Fiz meu trabalho de casa. O homem que a achou tinha a incumbência de mantê-la alimentada, quente e segura, como dizia o acordo — ele passou a mão pelos cabelos molhados, colocando-os para trás. O cavalo relinchou mostrando os dentes afiados. — Deixamos você sob os cuidados de quem a encontrou enquanto esperávamos notícias de algo fora do lugar. Uma garota desaparecida, uma família à procura, um lugar para o qual voltar... — ele me observou por um momento, em seguida demorando-se em fitar meu rosto. — não encontramos nada. Você não tem nada.

Abri minha boca para rebatê-lo mais uma vez, mas percebi que não o podia culpar. Ele estava certo: eu não era ninguém e não tinha nada naquele lugar. Até mesmo minha mala, as coisas que havia trago comigo, a carta de minha mãe; tudo estava perdido. A discussão tinha acabado. E finalmente, eu sentia a dor visceral do meu estômago vazio.

Abaixei minha cabeça e fitei a saída. Eu deveria voltar antes que encontrasse mais alguém, então, determinada a sair dali o mais rápido possível, continuei olhando para frente e comecei a andar. Mas quando alcancei o lado do cavalo, uma mão áspera e gelada encontrou a pele dolorida do meu rosto, segurando meu queixo e o levantando.

— O que aconteceu com você?

— Não me toque — com um movimento de mão, o afastei de mim, dando um passo para trás em seguida. No entanto, fui obrigada a retomar aquele passo, ou o cavalo atrás de mim ficaria perto demais. Um novo estalo no chão de pedra pôde ser ouvido. Próximo demais. Ele descera do cavalo, parando a poucos centímetros de mim.

— Eu não irei perguntar novamente, pois repugno esse hábito — a fenda em meio às suas sobrancelhas aumentou. E então ele repetiu, mais irritado que antes. — O que aconteceu com você?

— Não finja que se importa — cuspi as palavras em seu rosto. Ele me fitou mais profundamente, como se dissesse que não admitia aquele tipo de comportamento e que não seria tão benevolente da próxima vez. Decidi não irritá-lo ainda mais. Se uma mulher como a daquela casa tinha um poder como aquele, imaginava que tipo aquele homem à minha frente teria. — Sua sacerdotisa, foi ela o que me aconteceu — me dei por vencida, entre uma fungada de nariz. Ao que parece, o espectro não era tão bom assim escondendo ferimentos.

Nunca imaginei que o ato de colocar luvas fosse, algum dia, me intimidar. Mas lá estava ele, fazendo cada nervo meu retroceder e entrar em estado de inércia sem saber o que fazer em seguida.

Eu devia ter me dado conta antes. Não estava lidando com pessoas comuns, num lugar comum, com deveres comuns e uma mera realidade comum. Não, uma afirmação desse tipo deveria ser considerada uma blasfêmia. Tudo com o que ele se importava era com o objeto de sua nova compra, vulgo eu. Uma substituta excelente para noivas traidoras e adeptas ao novo esporte do momento: pular a cerca.

Se ele não era o Lorde de quem as criadas tinham medo, então ele não haveria de ser mais ninguém.

Seu rosto tomou uma feição mais sólida quando afastou sua atenção de mim, voltando-a para a casa. Uma das lamparinas havia sido acesa. Ele voltou-se para perto do cavalo, retirou a caça que estava sobre a sela, a deixou num canto, desprendeu a sela do animal e ajeitou a pele de urso que mantinha cobrindo os ombros e o peitoral. Parecia ainda maior quanto a que eu trouxera comigo, mas de pelo negro, tão extenso que passava seus pés; tão escuro quanto seu cabelo e suas botas.

— Não sou uma espécie de monstro que deixa uma mulher passar fome e frio durante uma tempestade como essa — sussurrou em meio ao escuro, como se proferisse um segredo. — Venha cá.

Com a ordem proferida, me aproximei, sentindo-me ainda mais fraca por perceber que minhas pernas não me obedeciam mais com o vigor costumeiro e, aparentemente, nem ao senso mais lógico. Eu o estava odiando, odiando profundamente, mas não tinha forças para lutar contra suas vontades. Se quisesse, parecia poder me quebrar no meio com apenas um golpe. Mas ainda assim, não vi se carregava alguma arma. Teria de estar carregando uma, ou significaria que havia matado aquele veado com as próprias mãos.

Quando me aproximei mais do cavalo, sem saber bem para onde ir ou o que fazer, de súbito, me pegou pela cintura e me ajudou a montar no animal. Era quente e tinha um pêlo áspero. Logo após, montou ele também, atrás de mim, segurando as rédeas e fazendo o cavalo virar-se para a direção da onde tinham vindo.

Me encolhi ainda mais. Estava perto, muito perto. E eu assustada. Não imaginei que faria algo daquele tipo, o que me fez retroceder o julgamento sobre ele ainda ter maneiras, mas o frio começava a esvair aos poucos, então, não reclamei. Com cuidado, me cobrira com a pele, mantendo meus ombros e braços aquecidos e protegidos do vento. Era tão grande que se mostrou o bastante para nós dois. Mas apesar da proximidade, percebi que mantinha-se perto o suficiente, mas ao mesmo tempo longe o suficiente. Quando o garanhão negro abandonou o galope simples para aumentar a velocidade, não pude evitar de agarrar-me na crina do animal.

— É a primeira vez que cavalga? — indagou ele, entre o vento, como se não saber cavalgar fosse uma atrocidade sem cabimento.

— Não tem muitos cavalos da onde venho.

— De onde vens? — indagou, sem me permitir discernir se realmente queria saber ou se estava checando minha história.

— Acho... que de um lugar longe demais daqui.

Quando não voltou a me responder, me obriguei a reacender a breve conversa. Qualquer coisa era melhor que aquele silêncio desconfortável que se instaurou entre mim e meu caçador.

— Não podemos ir mais devagar? — eu me encolhia cada vez mais contra seu peito atrás de mim, não tendo muita escolha, ou o vento, os chuviscos e o frio me atingiriam com mais força.

— Se formos mais devagar, não chegaremos ao destino antes que a chuva piore.

A única forma de relaxar era aproveitar o passeio, mas era meio difícil quando folhas trazidas pelo vento e a chuva fina batiam no meu rosto. O calor que começava a se formar em meu corpo antes já havia desaparecido. Vento, chuva e noite não me pareciam uma mistura adequada, mas reclamar não era uma opção também, pois mesmo que por pouco tempo, eu estaria longe daquela casa. Talvez, até longe o suficiente dos pensamentos e lembranças que continuavam a me importunar sem motivo.

— Para onde estamos indo? — perguntei, quando consegui que um pouco do temor fosse embora.

Como se engolidos por uma penumbra repleta de névoa, sumimos entre uma trilha no meio da floresta densa e dali não saímos até que a chuva começou a aumentar e uma clareira pôde ser vista à distância. Ele não mais me respondeu. E assim como havia descrito antes, assim que pisamos nas entranhas da floresta, ela se silenciou por completo.

-

O estranho homem me deixou na varanda do que parecia uma cabana de caça enquanto acomodava o cavalo num pequeno estábulo ao lado. Ele o secou, lhe deu água e feno, o cobriu com uma manta longa, e só então veio à varanda com a chave da porta. Quando a abriu e a madeira velha rangeu, fez sinal para que eu entrasse primeiro. Em seguida, fechou a porta após nós.

O lustre de chifres de cervo e os candelabros se acenderam instantaneamente, criando um ambiente iluminado e ameno. Se Killius podia criar um espectro a partir de memórias, aquilo não devia ser nada.

Era um lugar simples, mas confortável. Havia madeira e peças artesanais em cada canto. Parecia haver mais espaço dentro do que imaginei olhando pelo lado de fora. Havia uma mesa grande próxima da porta, mas quase no centro da cabana, cercada por quatro cadeiras, e logo atrás dela um sofá vermelho aconchegante de frente para uma lareira de pedra. À esquerda ficava a cozinha - seguida por um corredor separado que dava para os fundos - sem nenhuma separação da sala e nem do local onde, aparentemente, a carne e o pêlo de animais eram retirados e preparados. Aquilo me deu um nó no estômago, mas não deixei transparecer. Comer animais mortos era uma coisa para mim, mas comer animais que alguém acabara de matar, e com suas pŕoprias mãos? Isso era totalmente distinto. Contraditório, sem muito sentido, todavia, distinto.

Adentrei a cabana um pouco mais, seguindo-o com o olhar. À direita, num canto perto da janela, estavam as lenhas que ele estocava. Lenhas costumavam ser estocadas num local fora das casas e não dentro, contudo, com climas como o que tínhamos enfrentado, acho que daquela forma era muito melhor. Ao menos tínhamos lenha seca para o fogo.

Fiz menção a falar alguma coisa para quebrar aquele silêncio que se perdurou, mas não consegui prosseguir. A verdade era que eu não tinha nada para conversar com alguém já fazia muito tempo. E aparentemente, muito menos com ele.

— Ficará em pé, parada aí, fingindo-se de muda? — instigou ele, logo me indicando o sofá. Mas quando percebeu que não me movi, lançou-me outra pergunta: — Qual é o seu nome? — iniciou, metódico demais para uma informação tão comum.

— Isso importa? — debochei. Suas atitudes até ali não pareceram nada com a educação que obviamente lhe foi atribuída logo ao nascer.

Ele não respondeu até que terminasse de atiçar o fogo e se levantar, deixando o pesado manto de pele numa mesa vazia num canto. Sua altura e postura provaram o estereótipo de "Lorde" que vivia em algum canto da minha cabeça.

— Não, exatamente. Eu preferiria manter esse tipo de coisa... distante.

Toda a atmosfera irritante da conversa o acompanhava, como passos num beco escuro, pisando em poças de água, fazendo mais barulho do que deviam. Ele era irritante, com todo aquele jeito frio de ser, indiferente às consequências de suas ações e palavras.

Quebrando minha linha de raciocínio, encostou-se na mesa onde colocara o manto, cruzou os braços e colou os olhos em mim como se eu fosse um pedaço de carne analfabeto.

Permaneci inerte.

Com um movimento de mão, me indicou que esperava ouvir o que quer que eu tivesse para falar. Tive que pensar por alguns segundos no que poderia dizer, pois não esperava que fosse me dar a palavra. Mas então iniciei, mais acovardada do que gostaria de soar:

— Desde que cheguei, até agora, não tive uma resposta decente sequer. Pra mim isso é tudo é novo; esse lugar, as pessoas, as coisas que elas fazem, o palavreado, tudo... tudo parece...

Diferente.

Sem me dar espaço para continuar, complementara meus pensamentos de forma simples. Ele virou o pescoço, exibindo-o com um olhar menos rígido.

— Sim. Diferente. Não é como se fosse parecido com o que estou acostumada, mas não tenho muitas escolhas de para onde ir agora — conclui como se estivesse falando com uma atendente arrogante que me entregou um pedido absurdamente errado.

— Nisso, nós dois podemos concordar.

Aquela conversa não parecia estar indo a lugar nenhum, pois nenhuma das minhas palavras possuía uma explicação razoável. Aquela conversa em si era como frases jogadas ao acaso usadas como um cobertor que escondia as verdadeiras facetas que aquele homem não queria me mostrar, e que eu não queria ver, mas que juntas o levariam à descoberta que almejava.

— Disse que o homem que me encontrou deveria ter cuidado de mim, mas não se deu o trabalho de verificar a veracidade disso, não é? — arrisquei, me aproximando mais e parando no meio do carpete vermelho, próxima ao sofá.

Seu olhar me respondeu. Ele sequer se preocupara com isso.

— Perderia meu tempo indo ao encontro de todas as pessoas que disseram que estavam com 'a garota', somente para descobrir que não era a que estávamos à procura? Você se tornou uma surpresa agradável quando terminamos as buscas e vimos que se tratava da garota certa.

"Você não tem família", dissera a mulher. A sacerdotisa usara a informação de que eu não tinha ninguém à minha procura quando nos encontramos, e ali estava ele, fazendo o mesmo e tentando comprovar suas palavras. Se não fosse pela boca seca e a fome, eu poderia ter cuspido em seu rosto. Mas me detive.

— Então o que teria acontecido comigo se eu não fosse "a garota certa"? — indaguei, não sabendo se queria mesmo ouvir a resposta para aquela pergunta.

— Eu não sei quais seriam os seus problemas se fosse a garota errada, mas sei que eles não seriam meus.

Sua falta de empatia me enojava. Se aquele era um plano maior, então quantas garotas haviam sido forçadas tanto quanto eu, ou até pior, somente para descobrirem que não eram a pessoa que estavam procurando? Se fosse assim, então... ser a garota certa era uma dádiva amaldiçoada. E Killius estava ciente daquela maldição.

Afastando-se da mesa, passou a remexer um armário antigo, tirou de lá duas caixas, uma grande e robusta, e outra pequena decorada com pinturas simples e se aproximou da mesa novamente.

— Tantas outras garotas podem ter passado o mesmo... — continuei, impassível. — e você não interveio por nenhuma delas, mesmo sabendo dos riscos que elas poderiam correr? — ele me fitou com aqueles olhos verdes por cima do ombro. Sua feição, agora devidamente iluminada, revelava sua crescente irritação. — Você é um lixo desprezível sem um pingo de humanidade.

— Cuidei para que elas voltassem para suas casas quando terminamos as buscas.

— Não tenho certeza se isso foi o suficiente.

— O que quer dizer?

— Quantas delas podem ter saído dessa situação com traumas que jamais poderão ser curados? Quantas sofreram em cantos mal iluminados, com fome, frio e medo do que poderia acontecer, assim como foi comigo?

— Eu não seria insensível ao ponto de abandonar o futuro daquelas garotas por causa do meu egoísmo.

Me calei diante da força de sua autoconsciência. Ele abriu as duas caixas e de dentro delas tirou alguns potes e lenços, os dispondo sobre a mesa. Sua feição se tornou mais maleável, pensativa. A voz, porém, mais rígida. Admitia a verdade que eu não ousara falar.

— Eu não poderia. Não permitiria. Mas o seu caso foi diferente, você não tinha ligação alguma com ninguém em lugar algum. E sua aparência... — ele semicerrou os olhos, como quem procura uma brecha. — sua aparência confirmou o veredicto anterior. Pode não aceitar, mas é quem eu preciso.

— Ainda assim, — repliquei, convicta. — isso não justifica sua imperícia. Se todas as garotas passaram pelo mesmo que eu — deixei claro numa ênfase exagerada. — elas podem nunca esquecer o ocorrido. Isso impacta a vida delas tanto quanto a minha.

— Não há necessidade de parafrasear, seus argumentos estão frescos em minha memória e não serão esquecidos facilmente — ainda de costas, lançou-me um olhar de canto. — Tomarei as devidas providências.

Aquela teia de circunstâncias começava a se mostrar com mais clareza agora que eu conseguia pensar sem aquela confusão mental estagnada em algum canto do meu cérebro. Mas não o suficiente para que eu pudesse exprimir minhas conjecturas em palavras. Ainda assim, ser a garota de que ele precisava parecia ser um rumo que se apartava do objetivo comum dos demais. Fazia aquele dever soar muito mais particular do que compartilhado.

Senti um calafrio subir à espinha.

Parecendo contrariado por seus próprios pensamentos, passou por mim e se dirigiu ao corredor e de lá não voltou até que seus braços, agora com as mangas levantadas e cicatrizes à mostra, estivessem cheios de recipientes cheios do que pareciam temperos e legumes. Em seguida, moveu-se em direção à pequena pia, colocou os potes e os legumes e logo após lavou as mãos antes de voltar para perto de mim, escolher entre os potes, lendo cada fitinha presa a eles.

— Ninguém fez menção de cuidar dos seus ferimentos? — perguntou, sem muito interesse aparente, molhando um dos lenços com um líquido alcalino.

— Não comi desde que cheguei. É tão ingênuo assim para acreditar que esse tipo de gente se importaria com alguns machucados?

— "Esse tipo de gente" é a minha família — a palavra tinha um gosto amargo em sua boca, percebi. — Mas está parcialmente certa em suas desconfianças. Não se iluda ao ponto de achar que pode depender de alguém naquela casa. Se ignoraram, então aprenda a se virar você mesma e deixe de ser tão respondona.

Me senti como se fosse uma criança sendo repreendida por seu pai. Mas aquilo não me parou, até porque, eu não tinha um exemplo de pai.

— Por que está fazendo isso? — fitei suas enormes mãos me estenderem cinco pequenos potes e um lenço umedecido, tudo de uma vez. Os segurei sem pestanejar. — Achei que fosse o senhor daquela casa, mas isso não parece o tipo de coisa que alguém como você faria.

— E o que estou fazendo, especificamente, que não se parece com algo que sua cabeça diz que eu faria? — retrucou ele.

O encarei por mais alguns segundos antes de suspirar e me dar por vencida. Não importava o que eu dissesse, ele sempre parecia ter uma resposta melhor na ponta da língua. O que me dizia que, aparentemente, eu tinha um caminho ruidoso pela frente e estaria sozinha na maior parte dele.

Percebendo que agora eu fugia de seu olhar, para minha surpresa, encontrou o melhor jeito de chamar minha atenção de volta para si mesmo: apertou um dos roxos doloridos do meu braço. Alarmada, travando uma batalha contra aquelas sobrancelhas, agora, relaxadas, o fitei sem a menor vergonha, mais próxima dele do que achei que me permitiria.

— O que deu em você?

— Não me faça ter que tomar sua atenção para mim, e então não será incomodada.

Ele fitou meu rosto com aquelas malditas íris verdes, mais calmo do que eu gostaria de vê-lo. A tensão que ele causava em meus nervos parecia muito mais confortável do que aquela serenidade silenciosa. Os brados de sua personalidade inflexível me mantinham mais firme.

— Esses cremes ajudarão na cicatrização dos seus ferimentos, e irão anestesiar a dor durante algum tempo. Acredito que, inclusive, diminuirão o inchaço em seu rosto. Mas antes, limpe tudo com este lenço, para que nada infeccione.

— Não sei se confio em você o suficiente para aceitar qualquer coisa que venha das suas mãos.

— Então prefere as cicatrizes — e dito isso, fez menção de se afastar, mas segurei-o pela manga da camisa.

— Me dê.

Com as sobrancelhas cada vez mais juntas, criando um curto vão entre elas, me olhou dos pés à cabeça, como se tentasse descobrir que tipo de espécie estranha era aquela que estava em frente à ele, encolhida como um ratinho medroso.

Sem esperar que eu agradecesse após pegar os potes de suas mãos, voltou-se para a pia em silêncio.

Me sentei no sofá e comecei a limpar o inchaço e o pequeno corte em meu lábio inferior com o lenço, estremecendo com a ardência. Depois, tentando ao máximo não colocar força nos dedos, limpei também os machucados dos joelhos, braços e pernas, e todos mais que encontrei espalhados e que eu não havia me dado conta antes. Em seguida, comecei a passar em cada um deles um creme de um dos potes com cheiro de tempero. Então, ele se virou onde estava e ouvi sua voz quebrar o silêncio.

— Passe o esverdeado nos roxos e no inchaço e eles devem melhorar.

Só então percebi as cicatrizes em suas mãos, além dos braços. Algumas grandes, outras pequenas, mas nenhuma menos presente que a outra. Não parecia o tipo de homem com quem eu deveria brincar.

Obedeci suas instruções e espalhei o creme com cheiro de hortelã por cada roxo e inchaço que encontrei, inclusive onde eu sabia que estavam os doloridos do meu rosto. Após isso, passei outro com um leve aroma de canela nos arranhões mais leves, como me instruíra com o olhar, indicando os riscos vermelhos em meu braço.

— Obrigada...

— James.

Eu não havia feito menção de agradecê-lo usando seu nome, mas ele me estendera aquela informação sem hesitar. Por conta disso, me senti responsável por dar o próximo passo. Com certeza, ele também não deveria estar muito à vontade com a ideia de ter outra mulher no lugar de sua noiva, assim como eu não estava confortável com a ideia de ter sido escolhida para ser a noiva falsa dele.

— Lúcia.

Ele parou de lavar os legumes por um segundo, vidrando os olhos nos meus por cima do ombro, mas não disse palavra alguma e voltou ao seu trabalho.

Passei meus olhos por suas cicatrizes nos antebraços e me perguntei por quanto ele também havia passado estando numa posição daquelas. Afinal, ele era um Lorde e um caçador, e até onde eu me lembrava das aulas de história da escola, posições como aquela costumavam acompanhar vantagens e desvantagens desequilibradas. Quase sempre acabava com alguém decapitado, enforcado em praça pública ou com um governo destruído.

Abruptamente, ele se levantou e foi em direção a um armário da cozinha. De lá, retirou um pedaço de carne e separou alguns dos legumes que lavara e temperos que trouxera consigo do corredor. E por fim, uma panela.

— Quando estávamos no estábulo — cortei o silêncio mais uma vez. — disse algumas coisas estranhas. Só queria me assustar, não é?

— Demonstrar poder, para ser mais sincero. Assustar alguém é algo relativo.

— Como assim? — franzi as sobrancelhas e me debrucei sobre o sofá. Ele parecia muito mais propenso ao diálogo agora.

— A fome enfraquece até o mais valente exército. A doença diminui até o mais poderoso soldado. Mas o medo da morte iminente... esse o destrói de dentro para fora antes mesmo que possa ter algum raciocínio útil.

— Usou uma artimanha dessa contra alguém que só estava escondido no seu estábulo?

— Não era somente "alguém escondido". Poderia ser qualquer um, com qualquer pretensão. Alguém protegendo-se da chuva, um ladrão, um inimigo, um assassino...

— Então, não podia se dar ao luxo da dúvida — completei.

Como se concordasse comigo, olhou-me e assentiu com um aceno leve de cabeça.

— Devo admitir que me surpreendi quando conheci você, e acredito que ainda me surpreenderá por mais algumas vezes. — os ombros dele se tornaram relaxados, enquanto os meus se tencionaram. — Esse seu gênio selvagem e arredio explica por que estava confraternizando com cavalos durante uma tempestade.

— Quer saber, James? Conseguiu me convencer de que não é um completo imbecil sem escrúpulos, então não exagere por enquanto e continue com as suas pausas silenciosas. Percebi que elas tendem a te manter longe de coisas que eu não quero ouvir.

— Se conseguir conter a língua, conterei meus comentários.

— Parece justo. Temos um acordo, então?

Antes que enfiasse a faca de caça na peça de carne que começava a temperar, voltou-se para mim e concluiu:

— Parece que sim.

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