II - A Mansão Verde, Os Chifres de Cervo e A Sacerdotisa
Sendo sincera, não que a viagem tenha sido de toda ruim. Foi a primeira vez em que pude dar um passeio num transporte daqueles. No entanto, ser obrigada a estar ali continuava sendo motivo de raiva. Eu estava descabelada, com os olhos vermelhos, uma feição completamente desagradável e aquela mulher viçosa seguia com seu desdém. Era como se não se preocupasse com nada além da sujeira de minhas roupas no estofado caro da carruagem.
Ela me comprara, percebi. Me observara, confirmara a mercadoria e então pagara o preço, qualquer que fosse.
A viagem tomou cerca de vinte minutos da vida dela - aparentemente. Não deixou de insultar o pobre cocheiro por cada mínimo detalhe tido por ela como um "erro". Falava pelos cotovelos resmungando ora ou outra. E mesmo que ignorasse minha presença, era claro em seu rosto e olhar que não estava satisfeita com os acontecimentos daquela madrugada. Contudo, a manhã se levantaria em breve. Seus olhos mostravam o cansaço de um dia cheio. Por suas vestimentas e jeito carinhoso de ser, presumi que se tratava de uma mulher de posses, rica. Talvez do tipo que embriaga o marido idoso e se diverte ao vê-lo salivar no sofá da sala. Certamente, uma mulher fria o suficiente para enfrentar o perigo de frente. Mas infelizmente, não do tipo que merece reconhecimento.
Seu vestido cobria quase que completamente as botas de couro negro. Não eram roupas comuns para mim, pareciam ter saído de um conto de fadas antigo, de séculos passados. Tão fiel à realidade e ao mesmo tempo de tão improvável existência.
Alguns minutos mais e finalmente desembarcamos em seu desejado destino. Suspirando, saiu primeiro, supostamente esquecendo que havia mais alguém ali. Entretanto, não demorou muito para que o cocheiro viesse de encontro com a porta da carruagem e me pedisse gentilmente para sair. Parecia um cavalheiro de bons modos, não fazia acepção de pessoas, apenas fazia seu trabalho, apesar dos maus comentários de sua senhoria. Me esforcei para dar-lhe um sorriso. Suas roupas também não me pareciam normais, um tanto antiquadas. Era como se eu tivesse voltado no tempo, numa época em que mulheres não deviam parecer ter tanto poder quanto aquela.
Ao descer o último pequeno degrau do veículo com um pouco de dificuldade visto a minha fraqueza, avistei, não muito longe dali, um enorme jardim de rosas de um vermelho escuro, sobrepostas sobre folhas de tons igualmente lúgubres. A mansão logo à frente das moitas se levantava em nuances de verde escuro e preto numa mistura espantosa de arabescos e detalhes pontiagudos. De certo modo, lembrava-me uma igreja antiga, talvez entre os séculos XVI-XIX. Possuía grandes janelas no andar de baixo, e outras pequenas no que parecia ser um andar superior. Não conseguia ver nada de dentro da casa, pois todas as janelas estavam cobertas por cortinas, algumas de tons claros, outras com tons tão escuros quanto a própria casa.
Alguém me observava pela brecha de uma daquelas janelas.
Começava a ventar forte e os chuviscos - que, por sua vez, indicavam uma tempestade próxima - se intensificaram mais e mais. A mulher já havia desaparecido de vista, enquanto seis homens vestidos como criados vieram até mim. Tomando-me pelos braços com pressa, rodeamos a casa até uma porta de madeira maciça nos fundos. As nuvens escuras continuavam a tomar os céus.
Me levaram para dentro com uma rapidez ansiosa. Os rostos preocupados demonstravam facilmente a inquietude que os mantinha vidrados no trabalho, como se um único erro pudesse acarretar uma bola de neve aterradora contra eles.
A chuva finalmente havia dado as caras quando entrei na casa por uma porta dos fundos localizada ao lado, e desta vez, fui tomada por três senhoras que me acompanharam até um tipo de cômodo debaixo da casa, numa espécie de porão. Lá, uma banheira de cobre velha, dois castiçais com velas quase no fim, além de toalhas e alguns utensílios de banho nos esperavam. Rapidamente me puseram na água fria, nua, ignorando completamente minhas tentativas de protesto. As senhorinhas recusaram-se a responder minhas perguntas um tanto caóticas, me oferecendo o mais completo silêncio. Nada fazia sentido. Nada ali se parecia com o que eu estava acostumada a ver e viver. Era como se eu tivesse passado por um portal, uma viagem no tempo muito mais do que mal-fadada a dar errado e onde todo mundo jogava o jogo de ignorar a estranha.
Porém, passados alguns minutos no banho, depois de ser lavada, esfregada, ungida e perfumada, cobriram-me com uma toalha macia e enxugaram o meu cabelo. Elas me observavam cada parte de mim maravilhadas, talvez até um pouco desconfiadas, mas eu não saberia dizer o que prendeu a atenção daquelas mulheres, só não me fazia sentir mais confortável.
Me arrastaram até o segundo andar por um curto corredor um tanto abandonado. Parecia uma passagem própria para criadas e servos, provavelmente onde a senhoria jamais pisara. Ainda assim, era limpo - apesar da falta de iluminação - e bem organizado com as pequenas mesinhas que se estendiam por ele aninhando vasos com ramos e folhas - nenhuma flor à vista. Contudo, logo tomamos o espaço de um corredor mais amplo e bem enfeitado, apressando o passo, e adentrando com rapidez no quarto mais próximo. Após me vestirem, cuidarem da minha pele e arrumarem meus cabelos num penteado complexo, finalmente respiraram fundo, quase que ao mesmo tempo e se puseram à minha frente, estando sentada na cama, observando o que haviam feito. Eu estava bem, apesar de tudo e de toda a pressa.
Me vestiram com um vestido verde simples, sem muitos detalhes, leve e ameno. Era como se eu estivesse combinando com as cortinas, de tom muito parecido. E com os sofás; também com os tapetes, as tapeçarias na parede, os lençóis da cama, almofadas, lenços... todo o cômodo tinha um ar estranho, um tanto quanto assustador e obsessivo. Havia verde e preto em cada canto daquele lugar. Era como se a casa fosse a própria floresta, uma parte adjacente dela.
Estremeci ao ouvir o primeiro trovão.
Lembro-me de ter medo deles desde muito pequena. Uma lembrança tola para um momento como aquele.
Começava a amanhecer e eu estava cansada. O sono começava a bater à porta, mas parecia que não era a hora de dormir ainda, tinham outros planos para mim. A fraqueza dos dias anteriores sobrepujou minha determinação em entender qualquer coisa.
Se intensificando com a chuva, pude ouvir os sons vindos do primeiro andar da casa. Parecia uma conversa, uma discussão. Talvez os criados, mas eles eram silenciosos demais. As criadas que me acompanhavam eram ainda mais.
Uma presença surgiu na porta.
Uma silhueta disforme tomou o espaço de forma súbita, como uma sombra negra que se estendia do vão da entrada, até próximo do longo tapete abaixo da janela. Tenebrosamente, tão rápido quanto surgiu, desapareceu. Assim como os sons de passos no corredor.
Era como se alguém tivesse parado ali para ouvir, tentar ver ou observar algo, mas as criadas e eu nos mantivemos em silêncio, como se aguardássemos que um tipo de besta-fera arrancasse a porta dos batentes e vociferasse para dentro. No entanto, assim que a sombra negra se foi, puseram-se a cochichar entre si baixo o suficiente para que eu não as ouvisse. Por mais uma vez, fiz uma tentativa:
— O que está acontecendo?
Fitando minha ignorância, uma das mulheres de rosto menos assustado pôs-se a falar, aproximando-se de mim e apertando o avental sob seu colo com apreensão:
— Muito em breve você estará se encontrando com o senhor desta casa, nosso Lorde. Ele é um homem bom e justo... — ela parecia escolher as palavras com cautela, em sussurros contínuos. Recuou e mostrou certa dificuldade para manter a compostura. — A sacerdotisa da casa a explicará seus deveres como noiva. Não temos permissão para conversar com a senhorita por hora. Devemos prepará-la para recebê-lo.
Ela proferiu a palavra "noiva" como se fosse uma maldição, uma palavra presa na garganta. Não podia ser outra coisa, senão um mal-entendido. Tudo passou a ser confuso demais, estranho e angustiante. O som das gotas de chuva que caíam sobre o umbral das janelas, fazia ranger a madeira velha e escondiam a palpitação no meu peito.
Deixando o quarto apressadas antes que eu pudesse fazer qualquer outra pergunta, voltaram a cochichar entre si pelo corredor. No momento em que deixaram o ambiente, uma outra mulher passou diante dele me observando. Era jovem, bem-vestida, tinha cabelos de tons castanhos-avermelhados e olhar atento. Não parecia tão intimidada quanto às demais. Usava um belo e recatado vestido vermelho que fazia com que suas sardas parecessem banhadas a ouro. Sua observação foi rápida, não passando de breves segundos num encontro de olhos.
Não sei se foi a estranheza da ocorrência, ou os trovões que se intensificaram, mas assim que a porta foi fechada abruptamente por Deus sabe quem, me arrepiei dos pés à cabeça.
Tremi ao ouvir o ranger lento das janelas a se abrirem. As cortinas balançando com o vento forte vindo de fora. Fui atingida por um tipo de medo estranho, que paralisa, sobe pela espinha e faz os pulmões trabalharem mais devagar. Me forcei a virar a cabeça em direção a janela. A névoa vinda do lado de fora invadindo o quarto e o gelo na alma, tudo intensificava o medo crescente.
Em meio aos relâmpagos, uma silhueta de homem, com chifres de cervo e cauda ondulante se revelava próxima do umbral.
Um vento de gelar os ossos adentrou o lugar com veracidade e os relâmpagos mancharam o céu mais uma vez. No entanto, ao calar dos raios, um homem comum - não tão comum quanto eu gostaria que fosse - se pôs de pé sobre o tapete calmamente. E centralizando, finalmente, minha visão no homem, o reconheci.
As roupas formais, o chapéu fedora e o relógio de bolso prateado indicavam a figura. Seu rosto foi mais bem iluminado quando se afastou da janela vindo ao meu encontro.
— Tsc, tsc... Você foi uma garota má, Lúcia — Colou seu rosto no meu e arregalou os olhos, completando: — O que farei com você, uh?
— Como é que é? Você desapareceu, não me ajudou quando precisei! Disse que cuidaria de mim, mas não foi o que aconteceu. E olhe para mim agora: não faço ideia de que lugar é esse.
— Eu te avisei, coelhinha. O resultado seria o mesmo, independente da decisão tomada. Deixei claro que seria melhor seguir meus conselhos.
Afastando-se ele, voltei a respirar mais tranquila. Eu não fazia o tipo medrosa, mas parecia que aqueles novos ares estavam comprometendo meus sentidos habituais.
— Não me pareceram bons conselhos, se quer saber.
— Ah, não? Que pena, eu não me importo.
Vendo que conseguiu me contrariar, piscou os olhos lentamente e sorriu daquela forma hedionda de sempre. Se divertia ao máximo com suas palavras provocantes.
— Desculpe-me, — iniciou outra vez. — mas odeio quando não me dão ouvidos — dando um pequeno giro no chão começando sua caminhada pelo quarto, prosseguiu com seu discurso. — Acontece que se tivesse seguido meu conselho, não teria passado pelas mãos daquele homem, e sua apresentação à família seria bem mais adequada. Por sorte, as consequências não foram tão vastas quanto poderiam ser. Eu cuidei de você, ainda que não tenha percebido. Ele nem teria te achado a tempo se quer saber.
— E o que é isso tudo, então? — o ressentimento começava a se esvair de mim durante o decorrer da conversa, mas eu continuava em posição de defesa interior, pronta para tudo, em plena desconfiança. — Eu fui mantida em cárcere por semanas. Que plano diabólico vocês têm?
— Primeiramente, não estou com eles, mas sim com ele. E você é uma senhorita realmente muito agraciada, por acaso. Tens muita sorte de me conhecer estando calmo como a alva neve. Pois saiba que nem sempre tenho essa boa "conduta social" — voltando-se para próximo de mim, sentou-se ao meu lado na cama, cruzou as pernas e firmou a cabeça com o braço posto sobre a coxa, ponderando sobre alguma coisa. — Vejamos... vamos apenas supor que um homem de grande poder cuja noiva o tenha traído, precisa... — ele se pôs a pensar revirando os olhos pelos cantos do quarto. — Precisasse... de uma substituta semelhante em aparência à noiva verdadeira, apenas para manter tudo em pleno funcionamento, enquanto a poeira baixa calmamente, diminuindo o teor do escândalo até o casamento. Acompanhando até aqui?
Assenti, mesmo sem ter entendido muito bem o que estava dizendo. Falava de modo rápido, com certa avidez aparente. Eu tentava manter a lógica próxima de mim, para que minha recente confiança cega naquele homem não fosse, de repente, quebrada.
— Agora, vamos supor, e apenas supor, que esse mesmo homem é o patriarca de uma das famílias mais valorizadas de todo o reino, o território em que seus pés pisam agora. E que esse mesmo homem buscou este homem aqui — ele apontou para si mesmo com orgulho, logo apoś mudando sua expressão para algo mais irritante. — Mas de que adianta te falar tudo agora? Não vai adiantar de nada mesmo. Você não gosta de seguir minhas instruções, não é, coelhinha? — ele sorriu fechando os olhos de forma infantil.
— Mas eu não entendi nem metade do que você disse — relutei. — E pode parar de me chamar de coelhinha?
— E o que tenho eu haver com isso? — disse estendendo um movimento com a mão para mim, ignorando completamente meu pedido nervoso. — Não sou uma fada madrinha para ficar lhe instruindo sobre tudo. Sua mãe era mais obediente! Cresça com sua própria 'metade' de vantagem sobre ele — finalizou levantando as sobrancelhas com deboche aparente.
— Então tudo o que está acontecendo é porque eu não te obedeci?
— Ah, por favor! Será que não entende? — ele se levantou com uma raiva infantil — você acabaria aqui de uma forma ou de outra, tolinha. Foi isso o que minhas últimas palavras no trem quiseram dizer. A diferença é que não seria tudo tão caótico se tivesse me ouvido.
— Se queria que as coisas tivessem acontecido de um jeito diferente, poderia ao menos dar mais indícios de que era confiável! O que pensou? Que eu iria simplesmente seguir as instruções estranhas de um homem que acabei de conhecer? — ouvindo minhas palavras, aproximou-se o suficiente para que o mais baixo sussurro fosse ouvido, parecendo um pouco contrariado, mas mantendo a calma.
— Não faz ideia de quantas coisas estão enterradas em sua história. Tantos enigmas, mistérios e verdades que nem mesmo o grande Knowmore tem coragem de decifrar — ele se afastou um pouco, me fazendo relaxar os ombros. — você ainda não entende a profundidade dessas coisas, e provavelmente vai demorar para compreender. Mas quero que saiba que o que te falei sobre seus pais naquele trem não foi algo avulso. Eu precisava te manter ao meu lado, por que é a partir disso que conseguirá os aliados necessários para alcançar o objetivo disso tudo.
— E que objetivo seria esse? — indaguei, já cansada, pois nada do que eu já havia vivido durante todos aqueles anos se igualava ao que estava à minha frente naquele ínfimo momento.
— Saberá em breve.
Repentinamente, a porta do quarto se abriu. Minha atenção foi voltada para ela, e por um segundo, temi que o vissem ali. No entanto, quando voltei minha atenção ao homem, ele não estava mais lá. Uma moça de cabelos amarrados num coque adentrou o recinto.
Ao pedir-me para que a seguisse, de cabeça baixa e de olhar distante, notei algo que não estava ali antes: um anel em meu dedo. Não tive muito tempo para entender o que tinha acontecido. Acompanhada por ela, seguindo pelo corredor em direção às extensas escadarias que ligavam o estreito segundo andar com o primeiro, a moça segurou em meu braço e sussurrou as seguintes palavras em meu ouvido numa mistura de temor e cautela:
— Por favor, seja o mais educada que puder, e mantenha-se em silêncio se não lhe perguntarem nada. Entretanto, caso o fizerem, responda sem devaneios.
Meu coração se acelerou. Era como se eu estivesse indo escrever meu destino sem levar uma caneta. Como se eu fosse um réu saindo ao encontro do tribunal. Como se minha liberdade dependesse do resultado do interrogatório. Meu estômago começava a sentir as náuseas do nervosismo e minhas mãos suavam. Aquele nervosismo estranho coçava debaixo da minha pele. Talvez o som do violino vindo do andar de baixo, acompanhado pelo piano, me deixasse ainda mais nervosa. Parecia o tipo de ambiente que alguém como eu nunca teria a oportunidade de adentrar novamente na vida, muito menos naquelas condições.
No final daquela escadaria, de costas para a enorme porta de entrada, estava um tipo de medo que eu ainda não conhecia. Sua mão esquelética apoiada pelos cotovelos no encosto da cadeira segurava a cabeça baixa, enquanto a outra mão batia as unhas contra a parte de metal do assento com perceptível impaciência. Por um único momento, deixei de sentir o medo que tanto me angustiava dando lugar à raiva. Uma raiva desdenhosa. Parecia que tinham montado todo um teatrinho, colocando uma cadeira no meio do salão, abrindo as cortinas das portas de entrada e ficando em completo silêncio.
A mulher que ali sentava parecia descansar serenamente, sob a luz do fraco sol que ainda se levantava. Desta vez, vestia uma túnica branca com detalhes em dourado, tão luxuosa quanto as próprias jóias que ostentava sob o pescoço. Era a mesma mulher que me trouxera até aquela casa.
A sacerdotisa, imaginei.
Certamente o senhor da casa, quem quer que fosse ele, deveria ser um homem de posses muito valorizadas para que tivesse sua própria sacerdotisa. Ela demonstrava grande imponência e até mesmo um pouco de majestade, como se fosse dona de cada coisa e pessoa naquele recinto.
Os três homens, posicionados próximos à ela, pareciam estátuas enrijecidas em plena obediência e veneração. Havia muito o que dizer vendo-a ali, não apenas que sua aparente atitude não condizia com a de uma mulher devota a um deus cheio de graça. Aquele não devia ser um deus que eu conhecia, nem que iria querer conhecer. Se não fosse meu senso do quão exagerado aquilo tudo parecia, acho que eu teria caído de joelhos e pedido que me libertasse, mas eu sentia como se quisesse saber mais, descobrir o que aconteceria na próxima página ou apenas compreender o que era toda aquela aura que a envolvia. Algo que passava longe de ser santidade.
Antes que me desse conta, fui jogada aos seus pés por um dos homens. O chão se chocou contra meus joelhos, fazendo meus ossos doerem; Passei a entender melhor a situação quando a ponta de seu sapato lustroso levantou meu queixo aos poucos.
— Seria impressão minha, ou... ela realmente é mais magra que Odete? — perguntou ela à um de seus homens, parado às suas costas, com um tom repugnante na voz e feição retorcida em nojo. Irritada já o suficiente, afastei o pé dela da minha face com um movimento de mão brusco.
— Acredito que será necessário engordá-la um pouco, vossa santidade — concordou o homem, antes que eu conseguisse dizer qualquer coisa.
Ela se manteve em silêncio por alguns segundos me fitando com os estreitos olhos mortos, como se sua paciência estivesse se esgotando. Não consegui pensar numa resposta decente, tudo o que passava em minha mente era vazio, sem lógica ou fraco. Nenhum argumento útil.
— De onde você vem, criança? — apesar de como me chamara, não havia nada de inocente naquela feição.
— Agora isso importa? — rebati, com um certo trêmulo na voz, quase imperceptível, que me senti estúpida por permitir sair. — Não pareceu importar quando me trouxe para cá à força.
Seu silêncio se tornou mais pesado por algum tempo, até que, movida por uma curiosidade genuína, perguntou finalmente:
— Você não tem família. E se tem, não se importam o suficiente para responder à sua procura. Então por que está agindo de forma tão desagradável para com a pessoa que a resgatou daquele lugar pútrido? Não acha que deveria ser mais grata à mim?
Seu rosto mantinha a expressão imperturbável, mas quando me recusei a respondê-la, pôs-se de pé e me agarrou pelos cabelos.
— Não ouviu minha pergunta, garota?
— Não sou obrigada a responder nada pra você! Grata é a última palavra que vem à minha cabeça quando te encaro!
Um furor de ira a atingiu, e quando me soltou, finalmente, voltando sua expressão à uma mistura de repugnância e cólera, fez um sinal com seu dedo magro em minha direção, e um lampejo de algo passou por seus olhos quando os vidrou em mim. Não era raiva, não era fúria, não era ódio. Era deleite.
Um golpe forte atingiu meu rosto com força, me derrubando no chão com o ranger da madeira sob meu corpo. Obedecendo a ordem que lhe fôra dada, um dos homens havia socado meu rosto sem pensar duas vezes. A lateral atingida avermelhou-se quase que instantaneamente. Minha bochecha doía agudamente e meus olhos lacrimejavam. Aconteceu tão rápido, que não tive reação instantânea. Congelei no tempo.
— Esta garota arrogante deveria aprender a ter mais respeito — com uma voz firme, porém calma, a mulher se aproximou de onde eu estava, jogada ao pé da escadaria com as mãos cobrindo o local dolorido. — Ela deveria agradecer por termos o mínimo de consideração por ela. Demos-lhe um banho, roupas, e até mesmo um quarto — sua túnica branca farfalhou contra o chão de madeira segundo sua raiva aumentava, manchando um ponto da barra desta quando passou por cima de onde uma gota de sangue havia caído do meu lábio. — E assim que põe os pés em nossa casa nos trata desta forma? Será que não recebeu educação alguma? — continuava a mulher, impassível. — Fala como uma desordeira, não parece ter os mínimos modos de uma dama, além de parecer uma selvagem miserável!
Um chute em minha perna dobrada. Grunhi segurando-a.
Com a cabeça baixa, a respiração ofegante e o medo me tomavam como uma tempestade em alto mar.
— Deve saber que algumas crianças nascem com o azar em seus sangues. Pobres, doentes, necessitados, órfãos... exatamente como você. Mas cá estou eu, sendo generosa e dando-lhe uma forma de recomeçar, de ter algo nessa vida desprezível. De me ajudar — ela levantou meu rosto molhado pelas lágrimas de dor com cautela, um carinho espinhoso. — Basta obedecer minhas ordens e me deixar à par de tudo o que o patriarca decidir. Estou lhe dando uma chance de provar que pode ser suficiente, criança. Ainda que contra a minha vontade. Portanto, não esperarei menos do que a perfeição na tarefa que irá executar. Entende, garota?
Quando seus dedos apertaram meu rosto e me fizeram gemer de dor, assenti com dificuldade. Eu não havia ido a um interrogatório. Aquilo era tortura.
-
Durante o restante daquele dia, ninguém apareceu. Não houveram batidas na porta, senhoras entrando sem serem convidadas, sombras estranhas espreitando, nem a visita do homem-cervo. Agora eu estava completamente sozinha, abandonada num quarto escuro e frio no meio de uma tempestade de raios, com dor, medo, e raiva me corroendo aos poucos. Não só meu corpo se sentia ferido, como também meu orgulho. Não era a primeira vez que aquilo acontecia, mas pela primeira vez, não tive uma reação. Fiquei lá, jogada e exposta como uma corça prestes a receber o golpe final de misericórdia. Não respondi, não lutei contra, não me dignei a tentar parecer menos insignificante.
Levantei-me da cama, finalmente, após longas horas inerte, chorando nos lençóis. Era estúpido, idiota, imbecil. Um tipo de fraqueza que eu jamais havia me permitido sentir antes. Começar a sentir agora... eu não poderia.
Lavei meu rosto na pia do banheiro com um pouco de esforço, estava inchado e dolorido, provavelmente já roxo. Levaria dias, ou até semanas até que desaparecesse por completo. Até lá, e até bem depois disso, me lembraria da humilhação todas as vezes que visse meu rosto em um espelho.
Contudo, diferente da vergonha que esperei encontrar, me vi fitando meu próprio rosto com cada vez mais descrença.
Passei cerca de meia hora em silêncio no meu quarto. Ouvi os sussurros vindos do andar de baixo, móveis sendo mudados de lugar e tapeçarias sendo limpas nas mais altas janelas da casa. Um movimento cotidiano que de repente me importava muito. Aqueles sons eram a única coisa que me ligava à realidade, que me diziam que não estava louca nem alucinando. Eu continuava a me olhar no espelho e a não me reconhecer.
Para onde haviam ido os fios loiros que foram lavados quando cheguei à casa? Para onde foram meus olhos castanhos, simplórios, que minha mãe tanto amava? Onde estavam os lábios finos e as sobrancelhas tímidas? Tudo o que antes eu fui, havia desaparecido de uma hora para outra e dado lugar a uma mulher de cabelos escuros, olhos azuis como safiras e rosto rosado. Aquela não era eu, jamais poderia ser.
Durante aqueles minutos de crescente pânico, respirei fundo e tentei me lembrar do nome do homem elegante. Ele deveria ter as respostas para aquilo, ou pelo menos poderia me ajudar a procurá-las. E após mais alguns minutos andando pelo quarto e repetindo nomes - a maioria sem nexo -, finalmente me lembrei. Parecia ter estado lá desde o início, desacordado em algum canto. Aquilo era tudo, menos um mero nome.
E cerca de quinze minutos depois, lá estava ele, Killius, sentado no umbral da janela segurando seu chapéu em uma das mãos. Desta vez, nada da elegância exorbitante.
— Achei mesmo que uma tolinha havia me chamado.
— O que aconteceu comigo? — me adiantei, exasperada pela demora no tempo de resposta. — Por que minha aparência mudou de uma hora para outra?
Diante do meu crescente pavor, Killius limitou-se a sorrir. Talvez pensasse que se risse alto, faria com que minha raiva explodisse e atacasse ele.
— Isso quer dizer que está funcionando e que tudo está correndo bem.
— Não brinque comigo — me aproximei a passos rápidos. — O que foi que você fez?
— Não fiz nada, além do que devia fazer. E sim, isso inclui mudar sua aparência.
— Mas por quê? E como?
— O que houve com seu rosto e minha obra-prima? — perguntou seriamente, entortando uma das sobrancelhas, encarando o lado inchado.
— Isso... — tudo o que eu precisava fazer era responder, mas por algum motivo, as palavras não saíam corretamente. Eu estava nervosa, claramente. Uma trivialidade como essa não pararia as perguntas de Killius e minha vergonha não me permitiria dizer a verdade. Eu ainda não estava disposta a encarar a realidade da minha humilhação. — Isso não é importante agora. Só me diga o que fez.
Ele desceu da janela e, como de costume, passou a andar pelo quarto pensando sem preocupação aparente, analisando a resposta dada, observando minha face com o canto dos olhos. O segui com o olhar e aguardei por suas declarações, sabendo que, por algum motivo ou tom encoberto, acabei transparecendo o medo que agora eu sentia. Um medo diferente do qual senti quando cheguei.
— A mudança de aparência é culpa minha. Você vir parar aqui... também é culpa minha. E o fato de que você foi a escolhida para ser a noiva daquele traste teimoso, como deve imaginar, também foi culpa minha. — então, ele havia decidido ignorar meu constrangimento.
— Por que fez isso? — minha voz falhava, afastando os pensamentos. A dor me fazia achar que ali parecia pior do que o cárcere anterior.
— O que importa é que o espectro que usei para que se parecesse com a noiva verdadeira funciona, e graças ao anel que coloquei em seu dedo também — ele me fez observar o anel que aparecera sem explicação, no dedo indicador. — Fiz isso porque precisava se parecer com ela. Era o que eles estavam procurando: uma moça que tivesse as mesmas características de Odete, a noiva do patriarca da família Montgreen.
Uma família inteira de ricos mimados que podiam comprar pessoas e substituí-las a qualquer momento. Meu estômago se revirou.
— Mas então, por que eu? Nem sei onde estou, como eu poderia ser uma noiva substituta para alguém que não conheço, fingindo ser alguém que nunca vi, num lugar que parece brincar com a minha cabeça?
Me sentei na cama suspirando diante da minha situação. Aquilo... simplesmente não parecia certo. Minha cabeça estava um caos completo.
— Ao menos me diga o que é um espectro, por favor — suspirei, vencida, esperando que toda aquela bagunça não fosse mesmo um enorme erro.
Ele me observou de cima a baixo antes de deixar que qualquer palavra saísse de sua boca, ainda maquinando.
— Isso aí que está vendo. Você se tornou a "personificação" de outra pessoa. Ou melhor, da aparência dela. A vi algumas vezes transitando pela casa, pelos jardins e pelas ruas do mercado central, e a partir disso pedi para um irmão meu que recriasse um espectro para ela com base nas memórias que acumulei. Dessa forma, chegamos a um ótimo resultado, e bem há tempo da sua chegada! Assim, logo que te vi no trem, plantei parte desse espectro em você, dessa magia, para que durasse tempo suficiente até que o anel estivesse pronto. Dessa forma, você seria encontrada, observada, escolhida e comprada como a substituta perfeita para Odete. Entendeu?
Me senti perturbada. Não parecia real, não fazia o mínimo sentido e o senso comum que juntei durante tantos anos já não parecia valer de muita coisa. E magia? Isso não existe.
— Então agora sou uma noiva... Odete — refleti num sussurro por um segundo. — Eles parecem ter acreditado fielmente que encontraram duas pessoas idênticas. São burros...
— Eles têm um problema e acreditam ter encontrado a solução. Isso é tudo — ele sorriu. — E é claro: eles são burros.
Como esperado, Killius se mantinha em movimento pelo quarto, vez ou outra se aproximando e analisando sua criação, tentando encontrar falhas causadas pelo machucado. Eu não conseguia acreditar na facilidade com a qual aquilo estava entrando na minha cabeça.
— No entanto, o efeito desse espectro já passou. Por isso o anel no indicador — continuou ele, apontando para o anel de prata em meu dedo novamente. Era ornado com arabescos simples, mas sem dúvida, uma jóia bela. — Anéis significam muita coisa, senhorita Lúcia. E esse em específico é muito especial, pois guarda o espectro que a manterá idêntica à noiva, mantendo sua verdadeira aparência abaixo dessa camada, bem escondida. Então, toda vez que precisar ser você mesma, abra mão desse anel e seja. Só não deixe que outros te vejam, ou todo o trabalho terá sido em vão, e nem você nem nós seremos capazes de alcançar nosso objetivo em comum.
— Você fala de um objetivo em comum. Acho que terei de esperar um pouco mais até saber o que seria esse objetivo.
— Vai entender tudo melhor assim que começar a entrar no papel.
Ele me observou com um sorriso travesso, observando cada expressão em meu rosto confuso. Estava satisfeito.
— Eu estou... assustada, como se eu tivesse feito algo errado e não soubesse como consertar — admiti.
— Você não fez nada de errado. Só está começando a me dar uma chance de fazer o que tenho que fazer — concluiu para si mesmo. — apenas aceite e veja. Você deve estar no caminho certo.
Meus olhos lacrimejaram mais uma vez. Eu sentia saudade da minha mãe. Do seu cheiro, sua companhia, seu conforto, sua segurança. Tudo aquilo tinha sido tirado de mim e eu me recusava a lidar com isso agora que o caos parecia maior ainda. Eu vinha fugindo a meses, sem nenhum sucesso de me levantar. E agora, uma correnteza traiçoeira parecia querer me arrastar para o fundo, me afogando aos poucos.
Killius se aproximou mais um pouco, sussurrou algo como "alguém aqui precisa de um abraço quentinho" e me deixou afundar em seu peito.
Então, eu entendi o que queria dizer, e estava indo de acordo com o que eles queriam: Killius, e o Lorde. No momento, parecia ser o mais sensato. Seguir as regras afastaria novos machucados.
Mas de uma forma ou de outra, aquela mulher tinha razão em uma coisa: eu não tinha outro lugar para ir e ninguém me esperava. Aceitar era um destino melhor... muito melhor. E se minha nova aparência não era suficiente para me fazer acreditar que coisas além da minha ciência existiam, então nada poderia ser.
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