08. Um oceano e uma gota
62 anos antes, reino de Júpiter
— Mas tá cedo, tia. — A voz arrastada da criança vinha junto de um drama enorme enquanto rastejava pela borda da cama como se a qualquer momento fosse simplesmente derreter.
— E é cedo mesmo, ou quer chegar tarde demais na loja e comprar só roupa feia? — Annelise, a rainha jupiteriana, perguntou. A senhora de meia idade tinha os braços cruzados enquanto encarava a sobrinha de forma imperativa e autoritária.
A criaturinha de 8 anos ainda deitada esboçou uma face ainda mais dramática, como se só o fato de precisar levantar matasse cada célula de seu ser. O quarto ainda estava escuro pelas cortinas fechadas, e isso não impediu de uma luz irromper por todo o cômodo e fazer a criança resmungar ainda mais.
— Tia! Apaga isso!
— Levante e eu apago — Annelise comentou, calmamente, e recebeu uma face chorosa vinda de Eana. Toda a luz vinha dos poderes de Annelise, e cumprindo com a própria palavra, manteve o quarto inteiro iluminado enquanto Eana não levantasse daquele colchão. — Nem sua prima enrolava tanto.
— Não tenho culpa se a Louise gosta da manhã, eu sou uma pessoa da noite. — Enquanto falava, Eana movia as mãos para dar ênfase nas próprias palavras, arrastando algumas sílabas em tom teatral.
Com o cabelo completamente bagunçado, uma face emburrada e os olhos ainda baixos, Eana sentou na borda da cama e deixou os ombros caírem em sinal de rendição. Annelise quis muito apertar a sobrinha, mas precisava manter a face autoritária até Eana realmente levantar. Tanto Lupe, sua esposa, quanto Circe, a mãe de Eana, reclamavam que Annelise mimava demais a menina. Reclamações corretas, realmente mimava, mas nunca seria tarde demais para tentar reaver sua moral com a menina. Verdade seja dita, não funcionava muito bem, e por fim Annelise decidiu que pegaria Eana no colo mesmo com a carinha dramática ainda presente.
A ruiva menor abraçou o pescoço de Annelise e recebeu um beijo carinhoso no topo da cabeça bagunçada, e a rainha cessou com a luminosidade dentro do quarto, para a felicidade da pequena.
Caminhou com Eana no colo pelo corredor do último andar do palácio até uma sala maior onde faziam as refeições. Antes, naquele lugar uma grande mesa era posta para reuniões internacionais. A atual mesa ocupava metade do espaço da mesa anterior, e o ambiente mais livre permitiu a compra de várias almofadas enormes para deitarem. Um sofá também seria muito espaçoso, as almofadas gigantes traziam muito mais conforto e ainda permitiam que as duas rainhas pudessem deitar junto da sobrinha quando a garota passava mais tempo no reino de Júpiter.
A rainha mandou que trouxessem o café da manhã da sobrinha, e sentou com ela em uma das almofadas enormes. À frente das almofadas, foi colocada uma televisão para entreter as crianças do palácio, mais especificamente a filha das rainhas, Louise, e a sobrinha, Eana. Era costume de ligarem o aparelho pela manhã, os desenhos animados eram entretentes até para a rainha de meia idade.
E assim foi feito, ligaram em um desenho bastante colorido sobre uma guerreira com espada e logo a criança foi entretida com a comida. O aniversário de Eana seria apenas no dia seguinte, e se dependesse de Annelise, a festa seria pela semana inteira. Porém ela não tinha a semana inteira, os pais da menina chegariam no dia seguinte e só então decidiriam se completavam a semana em Júpiter ou em Netuno.
— Cadê a tia Lupe? — Eana perguntou, de boca cheia e com as bochechas ligeiramente sujas.
— Tá vindo com o seu presente, engole antes de falar — Annelise disse, retorcendo os lábios em uma careta cômica enquanto tentava limpar as bochechas da menina.
— Outro presente antes do dia? Isso! — Eana comemorou, fechando os dois punhos em comemoração, com um sorrisinho animado no rosto. Por suas pupilas dilatadas, Annelise conseguia ver explicitamente a empolgação da sobrinha.
— Como assim outro presente?
— Ah. — Eana ergueu as sobrancelhas, e suas pupilas fendadas imediatamente voltaram ao tamanho normal, como se tivesse sido pega no flagra, ou tivesse dito mais do que deveria. — Se eu contar um segredo pra você, promete que não conta pro papai?
— Prometo de dedinho — Annelise disse, e ergueu o dedo mindinho na direção de Eana. A mais nova também ergueu o mindinho e as duas encostaram os dedos de maneira cúmplice. A rainha franziu a testa e inclinou o corpo para a frente, extremamente curiosa.
— Antes da mamãe sair pra ajudar o tio Desmond, ela me disse uma coisa... — Eana sussurrou, mas a tentativa de sussurro dela seria audível até mesmo do outro lado da sala. Ela também inclinou o corpo para ficar mais perto da tia. — Eu vou ganhar um irmãozinho! Eu sempre pedi isso, e o papai ainda não sabe, aí a mamãe me deixou contar pra ele amanhã quando eles chegarem.
O gritinho fino e baixo de animação vindo de Annelise resultou em outro sorrisinho empolgado vindo de Eana. A mais velha assentiu, e fez sinal de zíper sobre a boca, fazendo uma promessa silenciosa de que não abriria o bico tão cedo. Agora sim ela se empenharia a convencer os pais da menina a permanecerem ali por mais tempo, lembrava muito bem do pai de Eana ter desmaiado ao saber da gravidez da filha, certamente isso ocorreria de novo e Annelise jamais deixaria de apreciar momentos onde podia rir do irmão.
Ambas olharam em direção da porta ao ouvirem o som de passos, e Eana abriu um sorriso ainda maior ao ver a segunda tia acompanhada de uma mulher desconhecida. A garota ignorou a segunda figura por um momento, abrindo os braços para chamar Lupe para mais perto. Ao ver os cabelos completamente bagunçados de Eana, Lupe franziu o rosto levemente.
— Te deixo quinze minutos com ela e nem o cabelo você penteou — Lupe comentou, repreendendo sutilmente a esposa.
— Se você tivesse visto a dificuldade de tirar ela da cama...
— Comigo ela levanta rápido.
— Tia Lupe é assustadora, não tem como fazer drama com ela — Eana admitiu, baixinho, e Annelise não conteve o riso divertido ao ouvir aquelas palavras. Lupe sempre teve mais moral tanto com a filha do casal quanto com a sobrinha e isso nunca seria novidade para ninguém.
— Perdão pela falta de jeito, senhora Bellerose — Lupe comentou, olhando para Marie que assistia tudo com um sorriso sutil nos lábios. A mulher acenou brevemente para dizer estar tudo certo. Lupe então virou o rosto, olhando diretamente para Eana. — Vem cá, praguinha.
A menina prontamente levantou, praticamente dando pulinhos até chegar onde Lupe e Marie permaneceram. Annelise veio logo atrás dela, mais devagar, e ao chegarem mais perto, Eana abraçou Lupe na altura do quadril enquanto mantinha o olhar curioso sobre o embrulho trazido por Marie.
Por dois segundos, Eana olhou para a televisão em uma cena bastante barulhenta e com mais brilho, mas logo teve que voltar a prestar atenção nas mulheres ao seu lado, ainda abraçada no quadril de Lupe como se a tia pudesse a proteger de tudo no mundo.
— Esse que é o meu presente? — a menina perguntou, com as pupilas bastante dilatadas.
— Cumprimente a moça — Lupe pediu, relembrando os bons modos.
— Bom dia, senhora Belross — Eana abaixou a cabeça em uma reverência desajeitada, principalmente por ter escutado o nome errado e ter repetido errado, mas nenhuma das mais velhas corrigiria por terem achado adorável. Talvez Lupe corrigisse, mas Annelise lançou um olhar para a esposa que claramente dizia para ela não fazer isso. — Esse é o meu presente?
— Tenho certeza que sim, animada? — Marie perguntou, e recebeu um aceno animado e positivo vindo da pequena.
— Sabe o colar que eu contei várias vezes a história de como ele foi da sua avó, meu e depois da sua tia porque foi como pedi ela em casamento? — Annelise perguntou, Eana assentiu rapidamente, bastante atenta. — Foi feito pela família da Marie há muito tempo, e agora pedi que ela fizesse um pra você pra que nunca esqueça de mim ou da sua tia.
— Mas eu nunca vou esquecer você, tia, nem a tia Lupe — Eana disse, com um olhar preocupado. Abraçou um pouco mais forte o quadril de Lupe, e a mulher retribuiu o abraço para tentar reconfortar a menina.
— Eu sei, e ainda assim a gente sabe que não vamos viver o suficiente pra te ver grande, então vai carregar um pedaço nosso como lembrança — Annelise continuou, e pediu para Marie o pequeno e muito bem feito embrulho, entregando-o para a sobrinha.
Eana não gostou do tom, mas sua cabeça não conseguiu focar na chateação por muito tempo. Para ela, as tias viveriam para sempre, e isso era definitivo. As pupilas de seus olhos dilataram completamente ao finalmente ver o pingente do colar embrulhado, adornado com entalhes semelhantes à pequenas luzes. Eana olhou para o pingente, para Annelise, para Lupe, para Marie, para o pingente novamente, deu pequenos pulinhos e pulou com mais força em cima das três de um jeito tão desajeitado que quase caiu.
Imediatamente pediu para que colocassem o colar em seu pescoço, sentiu-se uma princesa usando o adorno, e prometeu para as tias que jamais tiraria do pescoço a menos que fosse na hora do banho.
— No dia que eu for casar também, vou fazer que nem minha tia e dar um colar desse — Eana disse, mexendo no pingente de forma curiosa e em seguida olhando para Marie. — Você é incrível, moça, é muito lindo.
— Eu que fico agradecida — Marie comentou, com um sorriso tranquilo no rosto. — Mas antes disso, sua tia comentou que talvez você precisasse de um passatempo enquanto está por aqui, meu filho Viktor está lá fora com alguns amiguinhos e tem quase a sua idade.
— Eu posso ir? — Eana perguntou, e alternou rapidamente e repetidamente o olhar entre as duas tias. — Por favor, por favor, por favor. Ela é legal, o filho dela também deve ser.
— Eu acho ótimo — Annelise comentou.
— Mas antes tire esse pijama e vá pentear o cabelo — Lupe interviu, e passou uma mão pelo cabelo da menina em uma tentativa falha de ajeitar os fios.
Eana concordou animadamente, segurando nos braços o embrulho aberto como se fosse um urso de pelúcia. Ela teria saído correndo para o próprio quarto para trocar de roupa e tentar se pentear se sua atenção não fosse tão dispersa. Quis dar uma última olhada no desenho para ter certeza de onde havia parado e quando fosse pela noite, voltaria a ver daquele mesmo ponto.
Porém, as imagens da televisão não eram mais o colorido e divertido do desenho, mas sim de uma notícia oficial de última hora de várias pessoas com aparência exausta e com inúmeros outros ferimentos. Ela achou estranho, e demorou alguns segundos a mais assistindo só para largar o embrulho no chão ao ver três faces bastante familiares sendo carregadas como troféus por vários soldados.
O pânico tomou conta dos olhos dourados da menina, que por um segundo brilharam em roxo. Eana não conseguia desviar o olhar daquela imagem, e tentou cegamente alcançar o braço de Lupe para chamar a atenção da mulher.
— Tia...
— Não olha! — Lupe puxou a sobrinha no segundo em que viu as imagens, igualmente alarmada, mas muito mais preocupada em preservar Eana.
— O que eles tão fazendo com a mamãe? — Eana perguntou, já com a voz chorosa.
Lupe não conseguia responder, e as outras duas mulheres muito menos. Annelise tinha o horror estampado na face, com as mãos sobre a boca enquanto procurava o controle da televisão, fosse para aumentar o volume ou desligar. As mãos de Annelise assumiram um brilho alaranjado por um momento, trêmulas, e ela levou uma mão até o peito.
Eana não entendeu de primeira, e ao sentir Lupe se afastar, voltou a olhar para a televisão, e a imagem de seus pais e padrinho com as cabeças tombadas de lado enquanto tinham o corpo quase inteiramente perfurado fez a menina sentir uma pontada dolorosa no peito. Não conseguia esboçar reação, não conseguia mover o corpo, como se o chão tivesse engolido os seus pés e petrificado cada um de seus ossos em uma posição estática.
Não conseguia compreender totalmente as palavras ditas pelo soldado, mas entendeu não se tratar de uma notícia triste. Conseguiu entender a palavra "comemorar" e "festejo", e sentiu o sangue gelar dolorosamente.
Uma lágrima solitária desceu por sua bochecha, e foi o grito de sua tia que a tirou do transe. O susto em Eana foi explícito ao abrir ainda mais os olhos como se tivesse medo, estava com medo, e ver pela primeira vez as auras de Júpiter e Vênus rodeando os corpos de Lupe e Annelise não foi uma visão muito bem-vinda para a menina. Era assustadora.
O brilho rosado vívido vindo de Lupe nem se comparava ao laranja falho de Annelise, e até onde Eana compreendia, o brilho de uma aura falhava apenas em um momento da vida. As mãos de Lupe também brilhavam, parecia tentar algo, e igualmente parecia falhar. As lágrimas no rosto de Eana se intensificaram, e a menina conseguiu mover os pés no intuito de andar até as mais velhas.
Pouco teve noção da energia roxa se formando a cada passo que dava, marcando cada ponto onde pisava. Ela pedia para Lupe fazer algo, para Marie fazer algo, para salvarem Annelise, e todos os esforços das duas foram em vão quando tanto Eana quanto Lupe assistiram a aura alaranjada simplesmente sumir junto com os batimentos cardíacos da mulher.
Um segundo depois, com as bochechas úmidas pelas lágrimas, Eana gritou em desespero. Dois segundos depois, a explosão roxa veio com força contra as paredes do palácio.
[...]
Marduk, reino de Júpiter
"Um dia antes de um evento importante para o reino de Júpiter e para todo o continente, e tivemos uma surpresa certamente inesperada. Uma figura inusitada resolveu visitar a cidade de Marduk e mostrou bastante interesse principalmente na culinária e nos brinquedinhos de brinde do restaurante, o que convenhamos, definitivamente não atendeu às expectativas de boa parte da população. Sessenta e dois anos se passaram, e a foto exposta no Museu dos Caídos não nos deixa esquecer o rosto da responsável pela explosão do palácio, e há quem diga que Netuno voltou para terminar o serviço, outros afirmam que é de direito dela voltar para o solo jupiteriano por ser descendente direta do último príncipe. As verdadeiras intenções? Talvez nunca saberemos, não quando aparentemente a sede por uma prisão em nome da manutenção da segurança já se fez presente e a levou em cárcere. E fica a verdadeira pergunta, por que agora? O que Netuno esconde que não podemos saber? Ou melhor, o que o Controle não quer que Netuno exponha? Certamente não podemos acusar uma pessoa de atos feitos na infância em um dia bastante conturbado, e parece ser exatamente a desculpa mais válida para esse momento"
Aleksy encarou a tela do computador em seu colo como quem analisava cada vírgula usada, cada palavra escrita, e chegou à conclusão de que teria que bastar para aquele dia. Não poderia postar no dia seguinte ou horas depois, precisava ser naquele momento, principalmente pelo alvoroço ainda estar fresco nas ruas de Marduk.
Recebera imagens de alta qualidade da situação vindas de um email anônimo, e quem quer que fosse o emissário, queria aquilo veiculado. Talvez fosse um tiro no próprio pé publicar aquelas fotos, mas talvez fosse exatamente o que precisava para complementar o texto.
— Não dá pra ser lenda urbana pra sempre — Aleksy comentou, mais para si mesma, para não ficar no completo silêncio dentro de seu apartamento.
Carregou duas das fotos juntamente com o texto da notícia, e parte dela se perguntava se era aquele tipo de medida preventiva que o Controle usava em todos os casos mais complexos para acobertar ou abafar casos de usos ilegal dos poderes de um deus. Faziam isso o tempo todo no reino de Urano, e como nativa de lá, Aleksy sabia muito bem o quão ignorante a população ficava sem saber dos fatos completos.
Dessa vez, não conseguiriam abafar, não com o espetáculo que foi. Seis contra uma em ambiente público seria notícia para mais algumas décadas se a memória popular fosse tão boa quanto foi da última vez.
Tinha absoluta certeza de que teria visitas até o fim da noite, mas seu trabalho era veicular notícias, e não escrever nada além da verdade e de questionamentos válidos. Além disso, estranhava o silêncio de todos quanto ao que ocorria na costa uraniana, e embora todos os cidadãos de Urana soubessem de onde veio a mancha obscura, poucos falavam sobre isso, e Aleksy com certeza não entendia como poderiam ficar tão quietos.
Abriu outra página em branco, sua próxima notícia seria sobre isso, mesmo que no fim só servisse para ela ser questionada e com isso conseguir questionar de volta.
[...]
Fronteira entre o reino de Marte e o reino de Júpiter
Não soube colocar em palavras o quanto o riso e a incredulidade lutaram dentro da própria cabeça para saber quem se manifestaria primeiro no momento em que Eike viu a manchete diária de todos os noticiários. Soava absurdo, era absurdo, e ainda assim ele não conteve o misto de sentimentos ao ler coisas como "tudo por um brinde". E também nessa parte, pouco acreditou de ter sido aquilo o exercício prático de um "pode deixar, a gente sabe o que fazer" que escutou no dia anterior.
Claro que sabiam, sabiam fazer escândalo, isso sim.
Eike passou uma mão pelos cabelos, olhando ao redor para analisar o entorno daquele posto de controle abandonado. De um lado, via o mato verde do reino de Júpiter e o céu alaranjado. Do outro, o mato amarelado e baixo do reino de Marte. Tomou cuidado para não ultrapassar os limites mágicos de cada reino, uma mudança constante de clima, umidade e temperatura certamente o deixaria doente. Marte poderia ter sido o reino de nascença de Eike, mas o homem se acostumou com ambientes mais amenos e definitivamente não queria adoecer, não agora.
Sentiu o celular vibrar no próprio bolso, e imaginou ser o enviado de Kallisto. Teve a própria expectativa frustrada ao ver o nome de Nephele, e com isso veio também o temor de ser demitido, motivo não faltava.
— Senhor? — Eike atendeu, repetindo internamente "não me demite, não me demite" inúmeras vezes.
— Tudo tranquilo nos planos de vocês? — Escutou a voz de Nephele pelo celular, friamente, e sabia muito bem do chefe não estar contente.
— Claro.
— Então por que eu acabei de receber a notícia que minha filha foi presa?
— Com todo respeito, senhor, mas ela é doida e aqueles outros dois são ainda piores. O plano tá ótimo, a sanidade deles é que eu duvido — Eike disse, fazendo várias notas mentais para deixar a participação da caçula fora dos próprios relatos.
Ouviu uma respiração pesada vinda do outro lado da linha, era meio difícil de discordar daquelas palavras, e isso compraria tempo para Eike ter certeza de nada ter saído do controle totalmente. Precisava só receber notícias, qualquer uma, de qualquer pessoa.
— Então como você já entendeu como são umas porrinhas, me deixe atualizado de tudo, eles com certeza não vão me falar.
— Pode deixar. — Eike assentiu, mesmo que Nephele não fosse ver o aceno afirmativo vindo do homem. Um ato involuntário que talvez fosse muito mais uma forma de Eike se convencer de continuar com aquele trabalho. — E senhor, só uma coisa.
— Diga.
— Talvez a próxima notícia seja que sua filha saiu da cadeia, mas junto com ela saiu mais um, talvez seja prudente estar preparado pra responder sobre isso.
Eike pode jurar de ter escutado um "puta merda" baixo, mas não perguntaria sobre isso, muito menos julgaria, ele mesmo pronunciaria essas palavras por muito tempo.
— Obrigado pelo aviso. E outra coisa, liguei pra te avisar que sua irmã está sob os cuidados da minha esposa por enquanto.
As sobrancelhas de Eike se ergueram involuntariamente, sua expressão antes tensa suavizou explicitamente. Permitiu-se esboçar um sorriso contido, e logo precisou balançar a cabeça para voltar à seriedade do assunto.
— Claro, tudo certo. Pensei que a babá daria certo.
— Deu certo, mas por você estar com o rabo preso até o talo em assunto sério, é mais seguro pra Berta ficar com a gente e não correr risco.
Justo, Eike poderia concordar. Soava desbalanceado que ele cuidasse de quatro para Nephele enquanto o líder netuniano tomava de conta de apenas uma, mas tinha o fato de Nephele não saber que eram quatro, então talvez isso descompensasse ainda mais a balança.
Encerraram a ligação segundos depois, não se demorariam e Eike já tinha a atenção voltada para uma figura que se aproximava do posto de controle abandonado. Deveria ser o empregado de Kallisto, ou algum maluco qualquer de gosto questionável para cortes de cabelo e barba, ou as duas coisas e foi essa a opção que Eike preferiu.
Manteve a pose quase casual e séria apenas no primeiro momento, logo o maluco de péssimo gosto para cortes de cabelo se aproximou em um aceno quase amigável, cínico, e foi o suficiente para Eike manter a face inexpressiva.
— Você deve ser o senhor Sanchez — Eike comentou, com as mãos dentro dos bolsos da calça e o queixo levemente erguido.
— E você o senhor Grimshaw, eu suponho. — O rapaz ergueu uma sobrancelha sugestivamente, olhando para Eike de cima a baixo. — Me chame só de Miguel, tá ótimo.
— Que seja, trouxe o que deveria?
— Doze moedas e é tudo seu — Miguel disse, batendo duas vezes na mochila que carregava nas costas.
— Um tiro e até a sua vida é minha, não começa com essa merda — Eike concluiu, e Miguel colocou uma mão sobre o próprio peito como se estivesse ofendido.
Não estava, longe disso, mas foi o suficiente para ele entender exatamente em que tipo de terreno pisaria a seguir.
— Toma, então. — Miguel tinha tranquilidade na voz, e jogou a mochila pela alça para cima de Eike, dando um longo suspiro em seguida. — A Kallisto me pagou só pra te entregar isso, o resto é com vocês.
— E quanto você quer pra colocar alguém lá dentro?
— Quanto eu quero? Tipo... quanto eu quero? Eu posso escolher essas coisas? Que...
Surpreso, no mínimo. Miguel realmente ficou impressionado com a colocação daquela frase e com o horizonte florido que seria onde ele escolheria o valor do pagamento. Soou legal demais para ser verdade, precisaria conferir, precisaria ter plena certeza da veracidade daquele dinheiro, e acabou sendo interrompido.
— Se for alto demais, você ainda vai ganhar um tiro — Eike esclareceu, seriamente.
— Aí eu posso te denunciar por invasão e agressão.
— E quem foi mesmo quem me entregou o material pra invasão? Estamos todos na merda, queridão. — Eike não olhou para Miguel enquanto falava, tinha a atenção na mochila. Abriu o zíper para verificar o conteúdo e se ali tinha o que ele queria, aparentemente sim, o tiro em Miguel ficaria para mais tarde. — E aí, o que vai ser?
Miguel retorceu os lábios, pensativo, ou melhor, teatralmente pensativo. A parte dele decidir se enrolava ainda mais a corda no próprio pescoço ele tinha feito meia hora atrás, naquele momento já tinha aceitado que a forca seria pouco para quem ajudava os dois lados.
— Eu deveria estar recebendo os agentes do Controle nesse exato momento dentro do Complexo, mas eles se atrasaram e você parece ter envolvimento nesse atraso, posso confiar na sua palavra?
— Não, mas pode confiar no dinheiro que vai receber, isso basta?
Podia muito bem ser um caloteiro com baixa paciência, Miguel sabia disso, mas dificilmente Kallisto lhe daria um serviço vindo de caloteiros. Ele esperava que ela não fizesse isso, ao menos.
— E o que estamos esperando? — Miguel também ergueu o queixo, piscando os olhos algumas vezes como quem já estava pronto para agir desde cedo. Não estava, mas ninguém precisava saber disso.
Eike apenas olhou para o relógio no próprio pulso, olhou para a estrada, e indicou para Miguel também olhar. Precisava do resto dos envolvidos. E aparentemente só um deles vinha, juntamente de um animal esverdeado enorme. Ou melhor, a pessoa acompanhava o animal, já que o bicho levava a garota como se fosse o próprio filhote. Mesmo com asas, o grifo caminhava, e vinha de uma direção que definitivamente não era a da capital jupiteriana.
Um pequeno desvio pela fronteira com o reino da Terra foi necessário, e Psique não arriscaria voar no grifo, estava completamente fora de cogitação. Ela parecia estar com baixa paciência, mesmo ao longe, e Eike simpatizava com o sentimento. Ao lado de Eike, Miguel tinha os olhos completamente abertos e pasmos, e ninguém sabia dizer exatamente a razão, a cena de Psique ao sol parecia mais que a menina iria tostar e só o fato de um grifo caminhar por solo jupiteriano também era bastante incomum.
Ao se aproximar, Eike acenou com dois dedos para ela, e Psique não retribuiu o aceno.
— Cadê os dois? — Eike perguntou.
— Quando você disse que eles tinham armas novas, não disse que eram eficientes, ficamos sem comunicação com ela e eles foram resolver isso.
— Resolver?
— É, provavelmente vão sequestrar quem criou e mandar o cretino dar um jeito.
— Não que eu esteja julgando, mas você falando isso nessa tranquilidade? — Eike ergueu as sobrancelhas ao falar, e Psique ergueu somente uma, cansada e certamente com descaso. — Podiam ter mandado mensagem, tem um grupo só pra isso.
— E você surtaria mais cedo se soubesse — Psique concluiu, comprimindo os lábios como se a situação fosse bastante óbvia. — Ikram veio comigo e a Docinho ficou escondida pra dar apoio pra eles caso alguma coisa saia ainda mais do controle.
— Espera, espera, espera, tem outro desses por aqui? — Miguel interrompeu a conversa onde claramente não estava fazendo parte, com as duas mãos erguidas para chamar a atenção de ambos.
Um arrepio violento atingiu Miguel no fundo de seu ser ao receber três olhares claramente acusativos. O de Eike, aparentemente normal, e ainda assim sério o suficiente para lhe dar um tiro. O de Psique, com íris esverdeadas e com traços rosados ao redor da pupila fina, igualmente pronta para dar o rapaz de comida para o grifo. E o olhar do grifo, pronto para almoçar.
— Tem, é nosso seguro de vida.
— Como é que é? — Talvez Miguel não estivesse sendo pago o suficiente para isso, quando Kallisto o contou do serviço com certeza não envolvia netunianos, grifos e absurdos afins.
Não que isso fosse algum empecilho, mas estavam falando de invadir um lugar altamente guardado com todos esses outros detalhes não especificados previamente, e alguma coisa no fundo da mente de Miguel berrava sobre um pequeno detalhe que era exatamente a crescente onda de surpresas.
— Se algum infeliz tentar machucar uma ave dessas, ou sequer pensar em machucar, ou só de mirar a arma, o Van Astrea pode aplicar a lei netuniana em qualquer lugar desse continente — Psique explicou, dando um sorriso amargo no final. "O Van Astrea", claro que falaria dessa forma, seria estupidez tornar o assunto tão pessoal quanto citar a família.
— E qual é a penalidade? — Miguel perguntou, em parte curioso, em parte sem saber se deveria ter perguntado.
— Execução.
Ela falou com genuína tranquilidade, Eike pouco se espantou, e Miguel assentiu, já calculando todas as formas possíveis de ficar longe daqueles bichos. Pela cor dos olhos, ele sabia da ave não ser de Psique, e definitivamente precisaria parar tanto de encarar demais os olhos dela quanto para de pensar nos piores cenários possíveis. Aquilo parecia piorar muito rápido e Miguel sentia o desespero crescer dentro de si na mesma velocidade.
Seria bom manter o pescoço no lugar e o coração batendo, a meta de Miguel era essa, tinha um bom pagamento para receber e não morreria antes disso, não podia morrer.
— Ela vai aguentar mais uns dias na cadeia, a gente tem até eles voltarem pra mapear todo o lugar e garantir uma rota de fuga — Psique declarou, voltando a olhar para Eike com um tom levemente autoritário.
— Pra quem não queria vir... — Eike não pode continuar a frase.
— Não quero que eles morram, só isso — Psique falou, rapidamente, recusando-se a dar uma explicação mais elaborada. E pelo tom de voz da garota, não admitiria que aquele assunto continuasse. Nem Eike, nem Miguel, e se duvidasse nem mesmo Ikram poderia questionar, embora a ave não precisasse. Ela alternou o olhar entre os dois homens para ter certeza de nenhum tentar argumentar, dando um suspiro por fim. — Podemos ir?
[...]
Marduk, reino de Júpiter
"Se esconda, fique aí até eu voltar, tudo vai ficar bem", as palavras se repetiam continuamente na mente de Frida, reflexos de sua memória que insistiam de voltar todas as noites em que pensava que teria uma boa noite de sono. Cochilou por quinze minutos, e as palavras voltaram, distorcidas pelo espaço e o tempo, e ao mesmo tempo em que reconhecia a voz, não fazia ideia de quem falava.
Manteve as mãos apoiando a testa, respirou fundo três vezes, e quase deu um pulo da cadeira ao sentir uma mão tocar seu ombro. A esse ponto, se uma assombração aleatória resolvesse aparecer, ela não ficaria surpresa. Se viessem prendê-la, tampouco. E Frida não queria realmente vivenciar nenhuma das opções.
— Desculpa — Enyo comentou, ao ver a face assustada da de cabelos verdes.
— Não foi nada. — Mentira, e Enyo sabia disso.
— O Controle vai nos ligar daqui cinco minutos e fizeram questão de ter você na ligação.
Ótimo, talvez a segunda opção estivesse certa, mas se conhecia o suficiente sobre eles, sabia que não davam aviso, sempre chegavam já com um par de algemas. Parando para pensar por um minuto, Frida chegou à conclusão de que era paranoica, não tinham motivo para acusá-la, ou pelo menos não pensava que tinha, mas seu emocional estava esfarelado o suficiente para não conseguir pensar direito depois de presenciar tão de perto o que aconteceria com ela caso fosse exposta.
— Disseram o assunto?
— Sobre amanhã, eu acho. O General citou alguma coisa sobre pagar a mais, não recusei — Enyo explicou, e Frida deixou escapar um riso baixo pelo nariz.
— É bom mesmo juntar bastante, assim vai conseguir pagar minha fiança.
— Não brinca com isso, não vou pagar fiança sua porque você não vai virar detenta coisa nenhuma.
Embora o tom fosse de brincadeira, Frida sabia que Enyo não se daria ao trabalho de pagar fiança porque para alguém ser preso, só tinha duas opções: perturbado o suficiente para gostar de ver o sol nascer quadrado, ou estúpido demais para se deixar ser pego. Enyo não trabalhava com gente incompetente, isso era fato.
Frida assentiu, por fim, deixando os ombros caírem como forma de relaxar o corpo. Pensou que teriam de estar na sala de reuniões oficial do Lágrima, e já tinha olhado ao redor para procurar seus sapatos quando Enyo colocou o aparelho hologramático em cima da mesa onde anteriormente Frida tinha apoiado o corpo.
Pela luz acesa no aparelho, já esperavam as duas do outro lado da linha, e ambas as mulheres tentaram colocar uma face simpática no rosto ao verem duas figuras projetadas. Frida sabia que o General deveria ser o primeiro a receber um aceno, mas seus olhos simplesmente não conseguiam desviar do brilho azulado emanando de Cairbre.
— Boa noite, senhoritas — o General comentou, quase de forma tranquila.
— Boa noite — Frida e Enyo responderam ao mesmo tempo.
— Espero que a senhorita Selistaz esteja bem, eu soube que esteve perto do infeliz ocorrido desta manhã. — As palavras vindas do homem pareciam genuínas, mas Frida não conseguiu deixar de se sentir levemente incomodada pelo detalhe de que ali poderia ter sido ela.
— Estou perfeitamente bem, obrigada. Me afastei logo que vi o tumulto, Hallik estava comigo e não queria que a grande estrela de amanhã fosse atingido de alguma forma. — A cada sílaba dita, Frida notava o olhar estreito de Cairbre sobre si. Desviou o olhar brevemente para encará-la de volta, como se a desafiasse a dizer algo além do olhar sugestivo.
— Isso é ótimo. A reabertura ainda vai acontecer e espero que a senhorita e o senhor Hallik estejam impecáveis.
— E exatamente por isso, gostaríamos de pedir para a senhorita Ilmarine permissão para preparar o seu pessoal — Cairbre tomou a fala, dessa vez olhando diretamente para Enyo, que parecia surpresa. — Queremos evitar mais surpresas.
Enyo franziu o rosto, estreitou os olhos e olhou para Frida por um instante. Surpresa maior do que a bagunça feita no meio da rua seria meio difícil, embora também fosse ser uma surpresa bastante desagradável caso encontrassem mais um.
— Preparar?
— Sensores de poder nas entradas e saídas, assim como um alarme silencioso para cada funcionário para manter uma comunicação ativa e eficiente durante todo o evento — Cairbre explicou, e imediatamente Frida fez uma careta.
A de cabelos verdes apoiou um dos cotovelos na mesa, passando parte do peso do corpo, e respirou fundo enquanto tentava se sentar mais confortavelmente.
— Isso causaria um tumulto ainda maior entre meus funcionários — Enyo disse.
— Tudo seria feito com discrição, eu prometo. E o General deve ter comentado do valor a mais exatamente por essa perturbação.
— Comentou — Frida respondeu, com baixa animação na voz.
— Vamos esperar até amanhã para dar uma resposta positiva ou negativa, hoje foi um dia muito turbulento para muita gente, os nervos estão à flor da pele, seria irresponsável jogar uma responsabilidade a mais nas pessoas — Enyo explicou, achando absurda a própria fala. Muita gente não tinha nada a ver com o assunto, isso era fato, mas grande parte se sentia diretamente ligada a tudo isso meramente por pessoas ficarem sentidas muito fácil com problemas que não eram seus, e isso também era um fato.
Pareceu uma resposta justa, pelo menos inicialmente, o aceno afirmativo vindo de Cairbre deu a entender que ela não insistiria.
— Além disso, como cidadãs uranianas de nascença, as duas foram convidadas pela vice-rainha para um almoço amanhã. Espero que esteja tudo certo para vocês — Cairbre informou.
Tanto Frida quanto Enyo ergueram as sobrancelhas, aquela com certeza foi a notícia mais inusitada de toda aquela conversa.
— Seria uma honra — Frida comentou, com um sorriso levemente mais animado.
Foi resposta o suficiente para encerrarem a conversa, não adiantaria estender ainda mais um assunto tão simples e um informe tão pequeno e preocupante.
[...]
Mesmo que inusual, o silêncio pode se tornar ensurdecedor quando os pensamentos se encontram tão agitados quanto uma pessoa com um berrante. Como se cada respiração viesse acompanhada de uma caixa de som ligada no volume máximo, tão alta que os ouvidos zumbiam, e a tontura que vinha acompanhando o zumbido se fez presente em pelo menos metade do grupo.
Toda a organização prévia foi pelo ralo, e a quase humilhação pública pesou ainda mais nas costas de alguns. Mas isso não se comparava à consciência pesada por fermentar demais as lembranças do ocorrido.
Jab precisou enfaixar todo o tórax, assim como o pé, para evitar da pele queimada ficar ainda mais irritada. Mesmo usando um colete mais grosso, como sempre, a pele de seu peito foi rasgada em alguns pontos, e logo criaria bolhas se não tratasse o quanto antes. Ainda assim, recusou-se a ficar despido na frente de todo o grupo para conseguirem usar os cristais plutonianos em seus ferimentos.
Jonathan também tinha uma grande queimadura principalmente no pescoço, mas esse já tinha bem menos pudor em relação à Jab, e tinha retirado a camisa para conseguir usar o poder dos cristais decentemente. Ou melhor, para Viktor usar os cristais, um dos poucos sem reais ferimentos naquele embate, por isso disse que ele quem remendaria o resto. Ter levado uma cadeira na cara foi bem pouco em comparação com os outros.
Maya se manteve quieta, aparentemente silênciosa e com uma expressão de quem estava prestes a soltar fogo pelo nariz. Porém, ao invés de fogo, seu nariz só soltava sangue por ter sido quebrado por um golpe de Eana já depois de algemada. Quem levou uma cabeçada foi Jorani, e quem acabou com o nariz torcido foi Maya, e isso soava simplesmente irreal.
Vez ou outra Jorani oferecia uma gaze para Maya estancar o sangue, e igualmente tinha a cabeça fervilhando. Foram ordenados a esperar, e esperavam as ordens seguintes, enquanto mantinham Netuno preso em uma cela de contenção a duas salas de distância dali.
— Não lembro de ter visto nada sobre materialização de armamento nos relatórios — Maya comentou, quebrando o silêncio firmemente enraizado entre todos eles, e automaticamente recebeu quatro pares de olhos. Apenas um importava.
— Porque não existe registro disso — Viktor declarou, e voltou a olhar para Jonathan enquanto terminava de usar o primeiro cristal.
— Alguns são muito incompletos, e não temos ideia do que metade consegue fazer além do básico, mas aquilo foi incrível, a facilidade de trocar de forma... — Jorani até tentou focar no ponto principal do assunto, mas aquela perspectiva soava maravilhosa para ela, as possibilidades fervilhavam em sua mente fértil.
— Incrível? Incrível? — A rispidez foi explícita na voz de Jab, e sua expressão seguia fielmente a rigidez de sua voz. Ele encarou Jorani em um misto de incredulidade e raiva. — Aquilo era uma aberração que demorou tempo demais para ser contida.
— Se ela conseguiu fazer aquilo, imagina o quanto de progresso a gente poderia ter se soubéssemos o que mais ela pode fazer. Ela, Plutão, Júpiter, ou qualquer outro. Eles têm um oceano de pura magia que só sabemos uma gota — Jorani declarou, firmemente, aproximando o indicador do polegar. — E ainda bem que temos um Viktor que destrincha o possível e o impossível pra explicar depois.
— Ainda é pouco, fomos pegos completamente de surpresa por aquela... aquela... — Maya ergueu uma mão, apontando para nada em específico, forçando a própria mente a achar as palavras certas. Talvez não existisse palavra certa, e sim vários pensamentos confusos. — Sabemos que consegue demolir coisas, esperamos que em ambiente aberto não tivesse nada para demolir, e nos deparamos com alternância de armamento como se fosse um brinquedo? Qual é, isso é absurdo!
— Se depender de mim, ela não tira aquelas algemas nem depois de morta — Jab concluiu, ríspido.
— Se dependesse de você, ela nem teria mãos a essa hora — Jonathan comentou, mais calmo do que deveria, porém igualmente exausto.
— Vocês são o que? Animais? — Viktor perguntou, franzindo o rosto e alternando o olhar entre os colegas de equipe, e encarou principalmente Jab. — Júpiter não teve as mãos arrancadas, não vai ser agora que isso vai ser feito com Netuno.
— Fala como se também não tivesse apanhado — Jab retrucou.
— Falo como quem gostaria de ter tido uma conversa mais longa com ela e como quem teve essa vontade frustrada pelo jeito grotesco que todo mundo aqui agiu. — Viktor não chegou a ser ríspido na própria fala, mas claramente não permitiria uma discussão mais acalorada, e raramente conseguiam ver o homem alterado. Dito isso, estendeu o cristal azulado em direção de Jab. — Usa logo essa merda.
— Eu não vou tirar as bandagens aqui.
— Tira a porcaria da bandagem e usa a merda do cristal ou em duas horas você não vai ter que usar bandagens só no tórax, mas sim no corpo inteiro com viagem só de ida pro cemitério — Viktor respondeu, ainda com o cristal estendido, encarando Jab sério o suficiente para o convencer. Se não fosse pela racionalidade, que fosse pela ameaça de morte iminente. Talvez não morresse em duas horas, mas certamente estaria com o couro bastante dilacerado a ponto de doer como se a alma estivesse sendo estrangulada.
Viktor sabia disso, tinha presenciado isso com outras reencarnações, e já estava cansado de gente teimosa e de chateação. Se Jab não fizesse, ele mesmo o faria, e aí sim o bate boca cresceria exponencialmente. Isso era a última coisa que precisavam naquele momento.
— Ele tá certo, isso aí pode ficar muito feio muito rápido — Maya comentou, passando as mãos pelos cabelos enquanto tinha dois pedaços de algodão enfiados no nariz. — Ninguém vai ficar te encarando, seu pudor está a salvo.
— Não se trata só de pudor, mas de decência e privacidade — Jab tentou rebater, mesmo já com o cristal em mãos.
Jorani revirou os olhos ao escutar as palavras não só de Jab, mas como de todos os outros. Já Jonathan, estava mais interessado em fazer os próprios ferimentos não piorarem. Parecia até uma piada que falassem sobre pudor e nudez quando ele mesmo estava quase despido e quando claramente qualquer um ali ficaria na mesma situação se precisasse. Feridas sempre seriam feridas, assim como ter um pedaço a mais de pele exposta sempre seria só um pedaço de pele.
Para piorar a situação de Jab, ou talvez melhorar, todos tiveram a atenção chamada pelos dois a adentrarem. Cairbre e o General pareciam ligeiramente menos nervosos, embora a ruiva estivesse prestes a comer um caminhão inteiro de qualquer coisa palatável para aliviar o estresse.
— Mudança de planejamento, mais dois de vocês vão pro Complexo — o General declarou, e automaticamente a equipe se entreolhou, esperando pelo resto da explicação. — Netuno não pode ficar aqui ou vão começar de novo com as merdas das manifestações religiosas, e disso pra uma tentativa de invasão é um pulo.
— E como eu já tinha explicado, levar ela pra lá é absurdo e completamente impensado — Cairbre insistiu, e pelo tom de voz dela, já deveria ter falado disso para o General pelo menos três vezes.
— E eu já deixei claro que essa é a decisão final. A reabertura vai continuar, e ela tem que tá longe daqui. Amin, Shanti e Kenneth vão prosseguir com o interrogatório de Plutão, quero aquele palhaço colaborando pra ontem! Bellerose e Branwen vão falar com Netuno, Hong fica aqui vigiando os saturnianos e qualquer outra coisa suspeita. Alguma objeção? — O General passou o olhar pelos olhos de todos, e sua expressão apática contribuiu para não receber respostas, pelo menos não daqueles que já estavam ali. Ao lado dele, Cairbre praticamente se coçava para não o interromper. — E não, Branwen, eu não vou reconsiderar. Se arrumem e saiam.
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