04. Escorrendo como água
Marduk, reino de Júpiter
— Você tem quinze minutos, depois disso eu tenho um compromisso inadiável — Cairbre declarou, cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha em seguida para o homem à sua frente.
Não poderia voltar para a base, não com um diplomata vindo diretamente de Urano na sua cola, e ouvir o que ele tinha a dizer era possivelmente o jeito mais rápido de poder seguir com seu rumo pelo resto do dia. Permaneceram nas adjacências externas da casa de shows, algumas mesas eram espalhadas durante o período da manhã exatamente para atrair clientes no horário em que não funcionavam. Ou pelo menos o interior do lugar não funcionava.
— Um compromisso é mais importante que um recado de seu pai? — Guillem, o diplomata uraniano, perguntou. Incrédulo, no mínimo, mas com a voz tão tranquila como se estivesse desejando um bom-dia.
— Ele não paga minhas contas, meus compromissos sim. Não podiam ter mandado mensagem? Me ligado? O que você veio fazer aqui?
— O rei me designou para auxiliar a vice-rainha durante a reabertura do Museu, sua tia e sua prima vão vir — Guillem explicou, calmamente, e percebeu Cairbre levantar as duas sobrancelhas. Ele não sabia dizer se a reação foi por surpresa ou tédio, mas sabia não ser uma comemoração. — E pediu pra te avisar pessoalmente sobre o aumento do lado destruído da ilha.
A ruiva ergueu as sobrancelhas ainda mais, isso definitivamente não podia ser tratado por mensagem, muito menos por ligação.
— E quer que eu avise a equipe para darmos um jeito nisso também — ela concluiu, recebendo um aceno afirmativo vindo de Guillem.
— Seria prudente um reforço maior, a rainha sua mãe quer que tudo esteja perfeito e preza pela segurança sua, da sua irmã, da sua tia e da sua prima.
Ela passou uma mão pela testa, sentia o rosto levemente mais oleoso como se tivesse acabado de fazer um exercício físico. "Sua prima", certamente ele não falava de quem Cairbre mais esperava e sim da caçula, e ela tinha certeza de ambas as primas estarem presentes, para o desespero da maioria.
— A Faye realmente concordou com isso tudo? Sei lá, é aniversário dela, ela nunca gostou de festa grande. — E em todos aqueles anos, mesmo com Cairbre adorando participar das festinhas de aniversário da família, sempre soube da vice-rainha detestar festas grandes e por isso no máximo faziam um bolinho.
— Não é só o aniversário, Cairbre, é um símbolo. Uma homenagem a todos que conseguiram se reerguer depois do que aquelas coisas fizeram ao reino, você sabe disso.
Sabia, bem até demais. Ela respirou fundo e assentiu, era difícil não entender o quão importante era aquela data quando metade da ilha de Urano jazia em cinzas constantes, irrecuperável, e quando a fonte dessa praga ainda respirava e por isso sua família fazia questão dela permanecer longe daquele território.
Repassaria o recado, e embora quisesse muito perguntar sobre a presença de uma pessoa, não o faria, não a Guillem, e agradeceu com um aceno da cabeça o aviso.
— Onde minha tia vai ficar?
— No palácio Valerian, a rainha daqui pediu que ela e a filha ficassem lá durante essa semana.
E obviamente Cairbre faria uma visita, não iria desperdiçar a chance de ganhar um abraço bastante apertado vindo da mulher, e se fosse ser sincera, precisava bastante de um abraço naquele momento.
A mulher checou o relógio de pulso rapidamente, e seu tempo ali já acabava. Despediu-se educadamente de Guillem antes de praticamente correr em direção ao centro da capital de Júpiter. Dizem que quando se está com pressa, tudo parece girar mais devagar, e incrivelmente o sinal verde demorou uma vida inteira para ficar vermelho e finalmente ela poder atravessar as ruas.
Sua próxima compra seria uma moto, tinha absoluta certeza, mas não sabia se gostaria de realmente comprar o automóvel quando seu apartamento nem ao menos tinha garagem. Não podia estacionar a moto na cabeça, e deixá-la no apartamento de Viktor ou de Jonathan parecia ir contra o conceito de servir para levar ela de casa até os lugares desejados.
Chegou até onde queria exatos dois minutos depois do horário marcado. Seu único alívio era saber ser a mais paranoica com horários daqueles ali presentes, com certeza a consulta atrasaria. Percorreu os olhos pelo salão de espera em busca de uma pessoa em especial, e quase deu um pulinho ao ver Viktor sentado bem próximo do garrafão de água disponível.
— O Jonathan não veio? — ela perguntou, ao sentar na poltrona ao lado da dele.
— Ele tentou, mas a Jorani disse que eu não sou feito de açúcar e conseguiria sobreviver à consulta de rotina como qualquer pessoa normal. — Viktor deu de ombros ao falar, com os lábios comprimidos em um riso discreto de quem concordava com aquelas palavras. — Sabe como ela é, insiste até convencer.
— E teria dito a mesma coisa pra mim se eu estivesse lá, ufa, ainda bem que saí mais cedo.
Viktor realmente teria gostado de ir sozinho, mas conhecia aqueles dois bem demais para a própria sanidade, se pudessem o acompanhariam como dois pais levando o filho para o primeiro dia de aula na escolinha, ou melhor, talvez como se ele fosse o pai a levar os filhos a tiracolo tendo em vista o nível meio desequilibrado de bom-senso entre os três.
Não demorou cinco minutos e Viktor foi chamado para entrar no consultório, com Cairbre prontamente ao seu lado. Por essas coisas ele ouviu fofoca sobre ter algum tipo de relacionamento com ela, e nesse caso, Viktor não se sentia mal por ser supostamente um belo talarico. Não quando podiam falar a mesma coisa dela ou até mesmo de Jonathan e Viktor considerava isso poético.
Tão poético quanto as palavras impressas no papel de parede do consultório. Palavras sobre força, fé, e algumas silhuetas bem simples do que deveriam ser a crença da população.
Viktor precisou tirar a própria calça para deixar o ferimento na coxa exposto, e vendo tão de perto, parecia horrível. Não era pra menos quando precisaram tirar boa parte do tecido necrosado devido ao extremo frio vindo dos poderes de Saturno, e nem sempre os pontos deixavam marcas bonitas.
A pele repuxada poderia ser resolvida com uma cirurgia plástica ou algo do tipo, mas Viktor não era narcisista a esse ponto, não ligava realmente para o quão feia estava sua coxa, e enquanto movia a perna para a frente e para trás, deveria informar ao médico sempre ao sentir uma pontada de dor. Para sua infelicidade, sentia a cada movimento, e não demorou para o médico procurar um dos aparelhos de cicatrização feitos com base nos cristais vindos do reino de Plutão. Se remédios comuns não conseguiam conter a dor, magia iria.
— Enquanto anda, sente a mesma coisa? — o médico perguntou, entregara o aparelho plutoniano para Cairbre segurar acima da cicatriz de Viktor enquanto fazia notas no registro médico do Major.
Viktor se manteve sentado na maca do consultório, Cairbre logo ao seu lado, segurando na coxa do homem enquanto passava o aparelho vagarosamente acima de sua pele. A luz azul emitida pelo cristal incrustado no equipamento trazia um formigamento prazeroso para o Major, e o alívio imediato era apenas uma das várias funcionalidades daquele mineral.
— Só com movimentos bruscos.
— É um milagre que já esteja andando depois de um ferimento tão feio, isso é bom — o médico informou, e realmente o espanto era válido.
Ao chegar para ser internado, Viktor tinha os pés roxos devido ao frio e a pele quase completamente dilacerada. O buraco em sua coxa, agora cicatrizado, mais parecia um vulcão de sangue que felizmente não entrou em total erupção apenas pela temperatura baixa da ocasião.
Cairbre aproveitou o breve momento em que Viktor respondia outras perguntas para pressionar levemente os dedos no aparelho plutoniano, e até onde sabia seu poder combinado com aqueles cristais resultava em algo incrível, e ao mesmo tempo irônico, já que toda a mazela na perna do homem foi causada por outro poder extremamente semelhante.
De um jeito ou de outro, por alguns segundos ela sentiu pequenas ondas de poder saírem de seus dedos em direção do cristal, e do cristal seguirem para o ferimento de Viktor. Logo cessou o ato, já contente de ver o suspiro de alívio vindo dele.
— Prossiga com o repouso, e nada de exercícios físicos enquanto as pontadas não melhorarem — o doutor informou, e embora não muito contente com a perspectiva de quem ficaria de molho por mais algumas semanas, Viktor assentiu,
— Pode deixar. — Cairbre tomou a frente, assentindo com mais energia para o pedido, e Viktor esboçou uma careta na direção dela. Em retribuição, ela embolou a calça dele e jogou o pano em seu colo. — Se veste, palhaço.
Ele admitiria, o pensamento de ficar sem a calça por mais dez minutos parecia convidativo se pudesse usar aquele aparelhinho novamente, porém, o uso era bastante restrito e por isso tinham limite de tempo. O poder dos cristais nunca foi infinito, e embora usados em funções medicinais, a quantidade ainda deveria ser dosada para evitar qualquer tipo de dano à pele. Assim como para evitar o desgaste, já que não podiam estocar cristais como aqueles como se fossem meros objetos inanimados, a quantidade fornecida sempre foi pequena.
Pelo menos não precisariam pagar pela consulta, o plano de saúde financiado pelo grupo de controle abrangia até mesmo tratamentos mais caros como o atendimento em clínicas especializadas. Querendo ou não, Viktor se sentia bem mais leve ao sair daquele lugar, não por querer ir embora, mas por sentir os efeitos positivos na própria pele. Ele não precisava pedir para Cairbre não comentar com Jonathan sobre as dores, ela não diria, mas ela mesma faria o papel de pessoa preocupada e decidida a impedir Viktor de aprontar alguma coisa. Se Jonathan soubesse, provavelmente nem deixaria Viktor voltar até a base do controle.
Sim, Viktor sabia de Jonathan estar certo, mas também prezaria a própria sanidade. Ficar em casa depois de um mês dentro do hospital beirava a tortura, e por esse mesmo motivo, pegou o caminho da base no segundo seguinte a colocar os pés fora da clínica.
E para variar, o caos parecia instaurado entre os militares ali presentes, como se um estresse superior e supremo tivesse tomado o corpo de todos, demonstrado seja pelo olhar, pela forma de andar e até mesmo os suspiros irritados. Cairbre e Viktor pouco entenderam a mudança em comparação com mais cedo naquele mesmo dia, e por isso se dirigiram à ala privativa de sua divisão em busca de qualquer um disposto a explicar.
Encontraram o resto da equipe no salão de testes, juntamente com os dois saturnianos trazidos por Jorani, e os dois últimos a chegar realmente temeram pela sanidade dos dois rapazes por estarem justamente com a parte menos social daquele grupo. Pelo que viam, testavam os novos equipamentos, com um dos rapazes sempre opinando no modo de uso, enquanto o outro parecia intrigado com um dos aparelhos sensores, como se tentasse consertá-lo.
— Finalmente — Jorani comentou, ao notar a presença de Viktor e Cairbre. A mulher elevou as sobrancelhas, como se estar ali fosse um grande sacrifício. E era mesmo.
— Se ninguém morreu, então tá tudo certo — Cairbre comentou, posicionando-se ao lado de Jorani e passando os olhos ao redor para tomar nota de como todos estavam. — Como tá indo aquele supressor de longa distância?
— Alguma novidade? — Jorani ergueu uma sobrancelha, encarou Cairbre e esperou. Se a ruiva tinha feito aquela pergunta, certamente algo mudou, algo a mais.
— O lado destruído aumentou de novo, e já que chegar perto não é uma opção, precisa ser o de longa distância. — A uraniana suspirou ao falar, cruzando um dos braços enquanto apoiava o queixo com a outra mão. Ao olhar para a área de treino segura, podia observar Jonathan, Jab e Maya com os equipamentos novos, e tudo parecia tão bonito. Cairbre sentiu um arrepio percorrer a espinha.
Jorani ergueu ambas as sobrancelhas dessa vez, e girou o corpo para o lado, agora de frente para Cairbre e com os braços cruzados.
— Vou aproveitar que o General tá puto e pedir mais verba pra conseguir terminar de calibrar aquilo até o dia do Centenário, acho que ele vai liberar até o dobro.
— O que houve?
— Quase quebrou a tela do computador uns quinze minutos depois que o Bellerose saiu. — Jorani deu uma pausa, movendo os ombros como se fosse mais uma situação comum, mesmo que irritante. — Chegou outro e-mail de Netuno. Mesmo assunto.
— Será que já passou pela cabeça do General simplesmente permitir que alguém mude essa bendita foto?
— Acho que ele usa essa situação humilhante pra restaurar a bateria de ódio de cada dia. É absurdo que um nome que está no topo da lista de urgência simplesmente mande mensagem como se não fosse nada e com um assunto tão banal.
E absolutamente ninguém discordaria dessa linha de pensamento. Mas metade deles argumentaria ser muito melhor reclamações sobre uma mera foto do que uma visita surpresa e indesejada. Cairbre detestava seguir essa linha de pensamento, e precisaria falar com Eana para a prima simplesmente parar com aquela patifaria logo tão perto de um evento importante. Em 90% das vezes, não era ouvida, mas não custava tentar em nome da frágil paz sustentada pela paciência volátil do General.
Cairbre não ficaria para assistir o resto treino, mas Viktor sim, e ele permaneceu ali meramente para informar a Jonathan sobre ter ido tudo certo na consulta. Acabou sendo chamado por Jorani para esperar mais perto da mesa onde um dos rapazes saturnianos trabalhava.
Enquanto Lian ainda mexia no sensor como se todo o mundo não existisse, Jorani se deu a liberdade de mexer nas configurações dos supressores físicos de poder. Precisariam para o dia seguinte, e aumentar o nível de controle de radiatividade seria necessário se pretendiam fazer Plutão colaborar.
A mesa se encontrava na mais completa bagunça. Aparelhos desmontados, revirados, peças, ferragens, todas bastante conhecidas pelos dois saturnianos e completamente desconhecidas para Viktor. Talvez ele soubesse o nome de uma ou outra, mas a área tecnológica não era a sua. Sua área de conhecimento era só a parte teórica a dar impulso para a construção daquelas coisinhas.
— Não vão explodir se quiser tocar nelas — Jorani avisou, direcionada a Viktor, mas sem realmente dirigir o olhar a ele. Ela tinha óculos de solda no rosto enquanto cutucava os circuitos dos supressores com um palitinho. Quer dizer, não um real palitinho, mas um objeto muito fino e aparentemente elétrico que constantemente soltava faíscas ao ser encostado no aparelho saturniano.
— Pensei que você quem ia treinar eles hoje — Viktor comentou, sentando ao lado de Jorani. Ele acenou brevemente para Lian, este apenas balançou a mão em um aceno rápido de volta.
— Venci os três hoje mais cedo, mandei melhorarem, voltei pra ajudar o Lian a deixar isso aqui em perfeito estado pra usarem — Jorani disse, calmamente, e Viktor não conseguiu conter um riso baixo e divertido. — Do jeito que tavam perdidos com o equipamento novo, até você com essa perna podre venceria eles.
— Vou levar como um elogio, minha perna podre realmente faria um estrago nessa gente já que seu braço fodido também fez isso. — Com a resposta do Major, quem levantou a cabeça curioso e assustado foi Lian. Não exatamente pelas palavras usadas, mas pela situação, custou a entender como aqueles dois estavam com alguma parte danificada ao mesmo tempo e falarem com tanta calma.
— Vocês estão bem? — Lian perguntou, e assim como Jorani, ele usava um óculos de solda para proteger os olhos.
— Desloquei o osso do braço e distendi um tendão com a presepada que Saturno fez. O Major foi mais sortudo e teve a perna destroçada. — E com a explicação simplista vinda dela, Lian abriu ainda mais os olhos, horrorizado. Viktor não teria explicado daquela forma, mas sabia de Jorani ter pouco filtro e ser muito mais direta em suas explicações. Ela percebeu o olhar repreensivo de Viktor e retribuiu com a mesma expressão facial. — Não me olha assim, foi desse jeito que aconteceu. Perdemos dois um dia antes, e outro se demitiu por ter sido ferido na mesma hora que nós dois fomos.
— Ele não se recuperou bem, faz sentido ter pedido demissão, não iria voltar a campo nunca mais.
Ouvir aquelas palavras fez Lian franzir os lábios por falta de palavras úteis a serem ditas. Sua expressão facial quem sabe tenha dito tudo, pois ambos os militares o olharam com um pouco mais de empatia por ouvir de forma tão crua. Desconfortável, no mínimo, saber que o deus de seu próprio reino fez uma atrocidade daquelas, e talvez parte do sentimento de responsabilidade sentido por Lian viesse disso.
— Antes de conseguir montar isso aqui — ele indicou o sensor em suas mãos —, a gente visitou a espectro lá de Saturno pra perguntar se ela podia ajudar, e ela disse uma coisa que faz bastante sentido. Ela conheceu os outros, e todos pareciam tão... radicais, e ainda assim eram pessoas. É triste saber que gente tão venerada acaba desse jeito, ferindo gente, atacando gente...
— Gente sempre vai ferir gente, fazer isso enquanto brilha é detalhe — Jorani concluiu, e dessa vez levantou os óculos de solda até um pouco acima da testa para conseguir olhar mais diretamente para os dois. — E às vezes as pessoas simplesmente perdem o controle.
Lian apenas assentiu, incapaz de discordar das palavras de Jorani. No fim, o problema nunca seriam os poderes, a divinização, ou a falsa importância, mas sim o velho orgulho combinado com o ego. Se tudo aquilo fosse usado para realmente ajudar, muita coisa se tornaria mais fácil, e muitos evitariam o sofrimento. Talvez essa fosse a motivação do rapaz para continuar ali, ou pelo menos mais uma motivação válida.
Tiveram a atenção desviada pelo barulho de passos se aproximando, e no segundo seguinte os equipamentos usados no treino foram colocados em cima da mesa bagunçada de maneira quase orgulhosa. Maya parecia contente com o resultado, Jab manteve uma expressão quase indecifrável, e Jonathan tinha quase total atenção somente em Viktor, como se perguntasse como o homem estava.
— Tô ótimo, a consulta foi maravilhosa, agora só mês que vem, preciso ir trabalhar — Viktor comentou, rapidamente, como se resumisse todas as possíveis perguntas vindas de Jonathan. Logo sentiu duas mãos em seu rosto, sem muita força, e Viktor encarou o Tenente com um olhar quase entediado enquanto se encaravam. Jonathan manteve as mãos nas bochechas de Viktor por mais alguns segundos. — É sério.
— Tem certeza que tá tudo certo? — Jonathan perguntou, ainda com as mãos nas bochechas dele, e Viktor realmente começava a achar engraçado a parte de não saber se quem começou com aquela mania de segurar em suas bochechas foi Jonathan ou Cairbre.
— Absoluta, venceria vocês três com um sopro.
— Ótimo.
Viktor precisou erguer as sobrancelhas mais uma vez para confirmar, e Jonathan se deu por vencido, afastando as mãos do rosto do homem. A preocupação era apreciada, mas Viktor sentia que ele quem deveria se preocupar com os outros, não o contrário. Felizmente, não precisou pensar nisso por muito tempo.
Jonathan informou que sairia mais cedo para buscar a irmã na escola, e ao mesmo tempo, Jorani praticamente decretou de todos permanecerem ali enquanto ela arrumava algo para mostrar. Para evitar dor de cabeça, permaneceram
— É bacana que esteja melhor, tem previsão de quando vai voltar pro campo? — Maya quem quebrou o silêncio, dirigindo a pergunta para Viktor.
— Em breve, se tudo der certo. Mas o tempo no hospital me deu uma ideia de pesquisa e talvez isso ajude no trabalho de vocês antes que eu volte.
— Qual? — Jab perguntou, franzindo a testa por um breve momento.
— Doenças e anomalias raras, irremediáveis e sem fonte precisa ao longo da história — Viktor explicou, e pela face dos dois outros colegas de equipe, claramente ele precisava continuar a explicação. — Algumas vezes do nada uma praga surgiu, ou algum caso isolado aconteceu e chamou atenção, sabemos que boa parte disso tem a ver com as reencarnações, e ouvi falarem no hospital sobre registros pelo menos duas vezes a cada trezentos anos.
— Isso dá pelo menos duas gerações de diferença, talvez esteja ligado a algum deles ou a algum outro que não temos nem ideia — Maya comentou, movimentando os ombros, e Viktor assentiu com um movimento da cabeça.
— É interessante — Jab concordou, embora pouco entendesse daquele assunto. — Mas talvez não seja possível obter respostas a curto prazo.
— São possibilidades, vale a tentativa — Viktor argumentou, sem a intenção de parecer na defensiva. Porém, compreendia o receio por parte de Jab sobre o tempo, o venusiano com certeza possuía muito menos em comparação com os outros da equipe. — Farei o possível pra ter um resultado antes desse grupo se desfazer.
— Como tem tanta certeza de que vai se desfazer? — Jab ergueu as sobrancelhas ao perguntar.
— Todos têm assuntos pessoais e muito distintos, motivações diferentes, podemos funcionar bem por enquanto, e espero que por um bom tempo, mas uma hora isso vai precisar encerrar.
A calma na voz de Viktor fez Jab concordar silenciosamente com a linha de pensamento, e se o venusiano fosse ser completamente sincero, ele mesmo seria o primeiro a abandonar a equipe simplesmente pelo fator idade. Em comparação com todos os outros, ele era novo demais, e quando tivesse sessenta anos e vários problemas nas costas, aquelas pessoas teriam quase um século de vida e com aparências extremamente iguais às atuais.
— É bom ter você de volta — Jab concluiu, dando um tapinha amigável no ombro de Viktor.
— Impressão minha ou é só ele voltar que você fica mais simpático? — Maya perguntou, franzindo sutilmente a testa.
— Impressão sua.
— Vou levar como um elogio de símbolo da paz, obrigado — Viktor comentou, rindo pelo nariz e direcionando um olhar divertido para Maya.
Quem sabe fosse bom manter a calma, algo no fundo da mente de cada um dizia para aproveitarem os momentos tranquilos enquanto ainda os tinham. Quer dizer, algo no fundo da mente de Maya e Viktor, a cabeça de Jab não concordava tanto com isso e por eles já teriam ido até a prisão interrogar Plutão.
Dois minutos depois, Jorani voltou, sozinha, e tinha seis aparelhinhos em mãos. Imediatamente, Viktor e Maya endireitaram a postura, e Jab não precisou disso por já estar com a coluna perfeitamente alinhada como um eterno manequim de loja militar.
— Os rapazes decidiram se retirar pro almoço mais cedo, então eu trouxe logo — Jorani começou a falar, alinhando os aparelhos em cima da mesa. Todos tão iguais, se não fosse pelo adesivo colorido pregado em cima de cada um como forma de etiquetagem. — Ainda é um protótipo, por isso só vocês podem colocar as mãos nisso, então pedi que os dois ajustassem com a assinatura digital de cada um.
— Como se só funcionasse com a gente? — Maya perguntou.
— Tipo isso. Só vai funcionar com suas digitais e por isso separei um para cada, é segurança pra caso algum engraçadinho tente furtar isso de vocês. — A mulher empurrou três deles para a frente, os com adesivos de colorações amarela, roxa e verde neon. — Só respondem se forem vocês a acioná-los, e colocamos as digitais do Bailian e do Jayden como trava de segurança.
A curiosidade tomou espaço no olhar dos três à frente de Jorani, e cada um pegou o sensor designado para si. Ao olhar mais perto, puderam ver dela ter anotado em cada adesivo o nome do respectivo dono. A letra dela era horrível.
E mesmo para aqueles a permanecerem na capital de Júpiter para a reabertura do Museu, seria bom manter os equipamentos próximos e evitar algum tipo de ataque ou visita indesejada.
[...]
Comida, panos, sapatos, decorações, uma lista de coisas para comprar e o orçamento cada vez mais aumentando os dígitos finais, cada acréscimo parecia se transformar no triplo, e Enyo se sentia cada vez mais estressada só de pensar em organizar tudo aquilo. Amava festividades, amava eventos, mas aquele em específico parecia um grande porre pleno primeiro dia útil da semana. E Enyo detestava terças.
Para não sobrecarregar os funcionários, ela mesma quem decidiu assumir aqueles preparativos, mas não negaria sobre ser muito melhor receber os militares do Controle como clientes das apresentações de quinta do que organizar um evento tão simbolicamente errado.
Ouviu batidas na porta de sua sala, e permitiu a entrada do funcionário que veio avisar dela ter visitas. Teria sido uma notícia feliz se não fosse uma visita da imprensa.
— Leve para o andar intermediário, e avise a senhorita Selistaz para ir também — Enyo ordenou, enquanto empurrava as planilhas de orçamento para o lado.
— Sim, senhora.
Terceira vez só naquela semana, e Enyo começava a desgostar de jornalistas intrometidos sedentos por qualquer fofoca para publicar. Com o anúncio da apresentação de Hallik, apareceram. Com o anúncio do acordo para trabalharem na reabertura do Museu, apareceram. Uma foca dando um espirro também parecia motivo o suficiente para aparecerem, mas nesse caso ela até entendia, a foca mascote do Lágrima era realmente fofa, e Enyo daria entrevista sobre o animal várias vezes sem cansar simplesmente para mostrar ao mundo como o pequeno Max era fofo. E praticamente todos conheciam a história do filhote machucado e sem uma das nadadeiras que se não fosse resgatado e criado em local controlado, poderia morrer no oceano.
A mulher saiu da própria sala e encostou as mãos no guarda-corpo à frente do corredor para dar uma olhada nos andares abaixo. Os corredores ao redor do miolo vazio do edifício forneciam uma ampla visão até mesmo da área das piscinas, e mesmo ao longe, ela podia ver uma figura de cabelos verdes juntamente com o filhote de foca na beira da piscina mais rasa. Segundos depois, a figura esverdeada foi chamada, e o olhar dela foi diretamente para Enyo, mesmo tão distante.
Se conseguiam ter uma boa visão da parte de cima, da parte de baixo também, e isso fazia aquele lugar parecer muito maior do que seu real tamanho.
Enyo seguiu calmamente para o andar intermediário, onde geralmente as mesas eram alugadas por um preço mais caro, como uma área privativa apenas para aqueles dispostos a pagar mais pela privacidade e privilégio. Camarotes com visões perfeitas dos palcos, e ainda assim reclusos o suficiente para tornar o entorno acolhedor. Enquanto não estivessem abertos no período da noite, Enyo gostava de fazer qualquer entrevista naquele lugar, parecia esteticamente bonito para tirar uma foto.
Dessa vez, ao menos, a jornalista ali presente não era nenhuma das outras a visitarem Enyo naquela semana, embora ela soubesse muito bem de quem se tratava.
— Alesky Feigenbaum, muito prazer — a moça de cabelos escuros e presos em várias tranças iniciou a conversa, estendendo uma mão para cumprimentar Enyo, e o cumprimento foi retribuído educadamente. — Sou da editora Der Baum.
— A senhorita é bem conhecida por aqui, o prazer é todo meu. — Enyo esboçou um sorriso simpático, e virou o corpo para indicar as poltronas mais próximas. Mesmo com a face amigável, ela ainda arqueava uma sobrancelha como se estivesse analisando Alesky de cima a baixo. — Eu soube que gostaria de falar com uma das estrelas das apresentações de sexta, estou correta?
— Sim, se isso for possível. — Um aceno afirmativo, um sorriso mais contido, Aleksy sentou na poltrona acolchoada e extremamente confortável com plena noção de toda aquela educação ser apenas fachada.
— Ela já vai estar aqui em breve, não se preocupe. Aceita uma água? Café? Chá?
— Estou bem, obrigada. — Outro aceno com um movimento do rosto, talvez esperar demais não fosse prudente. — Queria dizer que tudo isso é incrível, a dimensão que o Lágrima assumiu, sabe que são referência internacional e influenciam até mesmo na opinião do público, não sabe?
— Perfeitamente.
— Assim como a falta de posicionamento de vocês em relação aos últimos eventos ligados aos deuses também influencia o público, o que tem a dizer sobre isso?
Aleksy inclinou o rosto levemente para o lado, dessa vez com uma expressão mais séria, e Enyo arqueou ambas as sobrancelhas de maneira curiosa com a ousadia da garota.
— Política e religião podem ser tratadas no palácio Valerian ou na igreja a duas quadras daqui.
— E realmente não tem pensamentos sobre toda essa questão? A Lágrima é imponente, aceitam pessoas de todos os reinos, não seria uma surpresa se fossem abertos à possibilidade de ressocialização de reencarnações. — Ao falar, Aleksy movia a mão na qual segurava uma caneta digital, com a outra segurava um tablet aberto no bloco de notas.
— Não somos um estádio para aceitar intriga de torcida organizada, e é isso que todos são. — Enyo moveu os ombros, comprimindo os lábios em um sorriso sutil e talvez levemente cínico. — Você veio de Urano, certo? Assim como eu, nós duas sabemos bem o que acontece quando se ajuda qualquer um dos lados, acha mesmo que seria prudente tomar partido?
— E seria prudente não tomar partido?
Enyo quis rir, bastante. Detestava jornalistas, cada vez mais tinha essa única e suprema certeza na vida. Assim como sabia daquele interrogatório ser infinito caso continuasse a responder as perguntas vindas de Aleksy. Como resposta, apenas franziu os lábios e encolheu os ombros, o que poderia significar tanto uma afirmação como uma negação e isso bastaria.
Bastaria para dar nos nervos de Aleksy pela falta de especificidade, a falta de resposta concreta. Gostava bem mais de quando os entrevistados tinham a língua frouxa, isso era fato.
Felizmente, para as duas, o momento foi interrompido pela chegada da figura de cabelos verdes, e pela face dela, parecia bem menos empolgada com aquela situação do que Enyo.
— A Rainha das Facas, finalmente — Aleksy comentou, esboçando novamente um sorriso animado ao ver a mulher.
Tendo seu título dito daquela forma, soava como ironia, mas Frida realmente não queria se dar ao trabalho de entrar nesse mérito. O papel de cínica sociável sempre foi de Enyo.
— Uma rainha sempre comparece, não é mesmo? — Frida perguntou, sem realmente esperar uma resposta.
— O verde em seu cabelo parece até mais vivo, suponho que seu cabeleireiro sempre faz um ótimo trabalho para manter a tonalidade. — Aleksy encostou a caneta digital no queixo, com o olhar curioso direcionado à Frida, casualmente.
— Ele é ótimo, posso passar o contato depois.
— Bom, indo direto ao que interessa, sua grande apresentação na sexta. Houveram boatos de que faria um número exclusivo em parceria com o renomado Hallik, e isso é realmente um grande evento, mas não tem receio de usarem esse tão esperado dia para uma aparição inesperada? Dizem por aí que o Controle guarda preciosidades nos fundos de suas instalações, não me espantaria se duas ou três reencarnações decidissem fazer parte da plateia.
Frida franziu a testa, incapaz de esconder o quão tendenciosa era aquela pergunta. Desviou o olhar para Enyo por um breve segundo, a dona da Lágrima parecia quase inabalável, ou talvez fosse a paciência esgotada com aquela conversa. Enquanto jogavam palavras ao vento, ela poderia estar terminando a planilha orçamentária do evento.
— Vou considerar que gostam muito do meu trabalho e foram apreciar o evento assim como todas as outras pessoas. — Bastou uma resposta, Frida já sentia o cansaço e o peso da situação. Sua cabeça pesava, e temia da enxaqueca voltar logo naquele momento. — Falam muita coisa sobre todo mundo, que nem aquela ideia maluca que inventaram há alguns anos de que Netuno ia voltar e terminar de explodir esse reino como vingança, ou quando falaram que Júpiter veio pra punir os infiéis. — A esverdeada virou o rosto em direção de Enyo, movimentando uma mão ao falar. — Você lembra?
— Claro, ri bastante, mas fiquei triste que nunca aconteceu. — A resposta certamente chamou a atenção de Aleksy, já que Enyo parecia bem mais inclinada a falar. — Pessoas falam demais, fazem de menos, e ainda perdem dinheiro nessa brincadeira.
— E isso de vingança é sempre uma furada, se fosse pra ter acontecido, já teriam feito alguma coisa. Todo mundo tem mais o que fazer — Frida concluiu, inclinando o corpo para trás e se recostando na poltrona de forma mais folgada. Passou uma mão pelos cabelos verdes como se quisesse massagear o próprio crânio, sentindo outra pontada de dor na parte superior da cabeça. Felizmente, tinha aprendido a mascarar aquele incômodo. Infelizmente, tocar naquele assunto fazia a sensação piorar violentamente.
— De fato. E por último, o que devemos esperar para a apresentação? — Aleksy estreitou levemente os olhos, mantendo uma expressão neutra.
— Luz, água, muito brilho. — Frida dessa vez sorriu, empolgada com a perspectiva, e aliviada por terem mudado de assunto. Apreciava bem mais falar do próprio trabalho.
Falar um pouco mais da apresentação trazia uma leveza ao coração, principalmente por gostar do que fazia. E desviar a atenção de assuntos polêmicos sempre seria bom e benéfico. A neutralidade daquele lugar e de seus funcionários deveria ser mantida, essa sempre foi a prioridade.
Encerraram o assunto com Aleksy o mais rápido possível, sempre tentando manter um tom amigável, simpático, mesmo que isso custasse até a última gota da paciência de Frida. A de Enyo já não existia, mas colocar um sorriso no rosto nunca foi um problema para a mulher.
O problema maior era a crescente dor de cabeça de Frida, e ela precisou voltar para a piscina salgada antes de se tornar insuportável. Pouco entendia, pouco compreendia, mas suas horas junto do mascote da Lágrima e com os pés dentro da água aliviavam demais aquela sensação, e todo o caminho de volta até a piscina foi silencioso entre as duas. Frida queria o silêncio, e Enyo se mantinha preocupada, não com sua funcionária, mas com sua amiga.
Frida sentou na borda e colocou as pernas dentro da água, logo sendo recebida pela foquinha animada e desajeitada. O animal nadava em círculos e tentava mover a única nadadeira como se chamasse qualquer uma das duas para verdadeiramente entrar.
— Você pediu mais tinta, não pediu? — Frida quebrou o silêncio, com os olhos fechados enquanto tentava focar apenas na água tocando sua pele e na dor decrescente.
— Fica tranquila, pedi e já encaminhei pro Naghi dar um destino, ninguém vai suspeitar de nada — Enyo garantiu, abaixando o corpo para ficar quase da altura de Frida, mesmo sem sentar.
— Primeiro um elogio, depois vão questionar até o que eu uso pra manter assim. Se sabem que essa porcaria já nasce verde, vão me levar presa. — Ela abriu os olhos, com a preocupação estampada na face. Frida virou o rosto e encarou Enyo, franziu os lábios em seguida. — E agora vou me apresentar bem embaixo do nariz deles. A princesinha é uma mentirosa, você sabe disso.
— Mas pelo visto ela consegue se defender, e se não falou nada nem dela mesma, não vai falar de você. Andou tendo sonhos de novo? — Enyo perguntou, com a voz mais baixa, e finalmente sentou na borda da piscina bastante próxima de Frida.
— Sempre a mesma coisa. — Ela deu uma pausa, inclinando a cabeça para o lado e deitando o rosto no ombro de Enyo. Abaixo dela, a foca acinzentada permaneceu nadando e batendo com a nadadeira nos pés das duas, e se permitiram soltar um risinho seco ao ver a empolgação do filhote. — Mas ficou diferente.
— Diferente como? — Enyo também inclinou a cabeça, apoiando na de Frida, e se mantendo naquela posição de maneira confortável enquanto ambas tinham o olhar voltado para Max, para a água, e para qualquer outro objeto em seus campos de visão.
— Antes eu assistia a morte dos meus pais, repetidas vezes, mas algumas vezes era só minha mãe, e mesmo ela estava diferente, e eu tinha irmãos. Eu tentava segurar a vida dela nas mãos, mas escorria como essa água, toda vez.
Definitivamente diferente, Frida nem ao menos tinha irmãos. Talvez fosse menos doloroso caso um parente seu estivesse vivo, o pensamento de ser a última da família era assustador. E os vislumbres de uma família que ao mesmo tempo era e não era sua, deixavam Frida com os nervos à flor da pele.
— Se apegar ao que viu é um jeito legal de ficar maluca, não faça isso. — Enyo virou o corpo, depositou um beijo no topo da testa de Frida e indicou querer levantar. A esverdeada ficaria ali por mais alguns minutos, sentia a cabeça extremamente mais leve. — São só sonhos, podem significar muita coisa, mas não podem machucar mais do que já aconteceu.
— Você é horrível consolando alguém.
— Eu sei.
Ambas riram baixo, e Frida moveu a cabeça em agradecimento pela companhia. Ela mesma era muito pior, Enyo pelo menos tentava.
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