03. Mortos não opinam
Ea, reino de Netuno
— Entenda, meu senhor, só vai ter coleção nova de bonequinhos quando a gente souber quem são essas pessoas, o que provavelmente vai ser só na próxima vida.
De todas as possibilidades para um final de noite de terça, estar no telefone com clientes normalmente não pareceria ruim, mas naquele dia era. O rapaz se encontrava profundamente agoniado com aquele telefonema, e cada vez que olhava pela janela do próprio apartamento, via a mesma inquietação estampada na face de sua ave.
Nikolai precisou respirar fundo e massagear a testa enquanto escutava o tagarelar no telefone, e depois da ave bufar pelo menos umas três vezes, ele decidiu que tentar desligar mais rápido só faria o assunto se estender mais. A temperatura fria de sua sala indicava que lá fora deveria estar ainda mais frio, e ele nem tinha ar condicionado em casa.
Com um movimento da mão, indicou para a ave, Docinho, entrar na sala pela abertura enorme na lateral do cômodo. Não era pra menos, o animal tinha um pouco mais de três metros de penas cinzentas e muita folga acumulada, e bom, Nikolai que não ia deixar sua neném do lado de fora naquele frio. O animal logo adentrou o recinto, balançando as penas freneticamente como um cachorro balançando o pelo para se secar, e logo deitou ao redor do sofá circular bem no centro da sala. Três pares de asas pareciam exagero por parte da natureza, mas quem sabe Docinho apenas teve muita sorte. O par maior no mesmo lugar de qualquer grifo, o par secundário logo acima das patas traseiras e com metade do tamanho das primeiras, e o par terciário já na cauda e com metade do tamanho do segundo par.
Se era exagero natural ou não, Docinho era fofa e Nikolai se sentou no sofá exatamente em uma posição para recostar o corpo na ave, jogando a cabeça para trás com o telefone ainda grudado em seu ouvido direito.
— E não, não vou abrir o jogo do bicho tão cedo, a fiscalização tá em cima e eu que não quero ser preso, não sou nem você — Nikolai bufou, passando uma mão pela testa com a cabeça ainda jogada para trás. — Faz o seguinte, leva esse contrabando pra Plutão e de lá despacha, os bonequinhos eu arrumo depois, vou falar com a equipe do design pra ver se eles têm ideia de alguma firula nova nem que seja sair andando e soltando estalinho, agora eu realmente preciso comparecer a uma reunião importantíssima, falo contigo depois.
E desligou. Nikolai encarou Docinho como se dissesse "essa gente inventa cada coisa pra encher nosso saco". E sim, nosso, ele via o quão entediada a ave ficava com aquelas ligações, e fez carinho na enorme cabeça para tentar aliviar o estresse. A ave cinzenta emitiu um som parecido com um ronronado em reclamação, e inclinou a cabeça em direção dele para deitar no colo de Nikolai. Ele não achava ruim, era como se tivesse apoiado em uma mesa, e por fim Docinho descansou a cabeça nele enquanto o resto do corpo se enrolava como uma minhoca ao redor do dono.
Nikolai pegou o controle da televisão, e enfim podia dar atenção para sua tão esperada reunião. Pelo horário indicado na tela, faltavam cinco minutos, e nesses cinco minutos ele permaneceria com o carinho na cabeça de Docinho enquanto se entretia com os comerciais aleatórios.
Dois minutos para a "reunião" começar, Nikolai já se preparava mentalmente para aquele evento, mas foi interrompido por uma voz bastante audível em sua cabeça.
"Meu escritório, agora"
Ele respirou fundo, dessa vez profundamente irritado.
— Por que? — perguntou, em voz alta, mas com a consciência de que a pessoa do outro lado ouviria tão claramente quanto ele ouviu.
Não surpreendentemente, a resposta não veio. Nikolai queria esfarelar alguma coisa só pela falta de respeito logo na hora da reunião. Grunhiu em raiva, e se pudesse rosnar, teria rosnado, mas isso ainda não era possível.
— O que os dois otários sabem disso? — falou em voz alta novamente, dessa vez direcionado a outras pessoas. Poderia ter apenas perguntado em pensamento, mas quem ligava, estava sozinho em casa e com vontade de sobra pra descontar em alguma coisa, precisava se manter ocupado.
"Que ou a gente também vai, ou o Regulus vem buscar aqui em casa à força" uma voz respondeu, e Nikolai acreditava naquelas palavras. Na vez em que não atendeu àquele chamado, a ave do líder de Netuno realmente foi até a residência de cada um dos envolvidos e os levou carregados pelo bico. Humilhante, no mínimo.
"Atrapalhou meu e-mail super emocionado e ainda levei esporro, isso sim" uma segunda voz respondeu, dramática.
Nikolai esfregou as mãos no rosto, gostaria muito de sair gritando "inferno" pela rua, mas ele não era disso e provavelmente seria preso se o fizesse. Depois de todos aqueles anos de negócios ilegais e acordos ilícitos, ser preso por balbúrdia pública seria no mínimo curioso.
— Bora, Docinho — ele disse, exausto, e indicou para a ave levantar.
Olhou para a própria roupa, seu usual moletom de ficar em casa, e decidiu que iria daquele jeito mesmo. As vozes na própria cabeça concordavam que se tiveram a audácia de atrapalhar aquele momento, Nikolai também não precisava estar formalmente vestido.
Desligou a televisão no exato minuto em que a reunião tinha começado, e logo subiu nas costas de Docinho. Se fosse fazer drama, poderia já chegar aos prantos teatralmente para fazer uma cena digna de louvores. E se fizesse isso, receberia um audível "vá tomar no cu", então se pouparia desse xingamento, talvez outros viessem depois.
O vento frio parecia ainda mais congelante naquele dia, pelo menos o edifício político de Netuno não ficava tão longe da residência de Nikolai. Pousou a ave no pátio principal, grande o suficiente para abrigar pelo menos cinco aves de tamanho médio, embora o tamanho médio já fosse gigante. E ali já estavam duas aves bastante conhecidas de Nikolai. Regulus, o que o levou pelo bico, e um grifo esverdeado de olhos dourados um pouco maior que Docinho, Ikram. Por força do hábito, Nikolai acenou cordialmente para ambos, e já tinha plena noção do que ocorreria a seguir ao ver Docinho correr até os dois e praticamente se jogarem ao chão em uma brincadeira bastante saudável, até certo ponto.
Ainda soava absurdo em sua cabeça entrar pela porta da frente daquele lugar, o símbolo de ordem e prosperidade do reino, e logo para ele, o cabeça de boa parte das ilegalidades existentes. Talvez fosse sorte, ou talvez fosse talento, não importava, o importante para Nikolai era a parte onde recebia dinheiro e tinha proteção por fazer tudo muito bem feito.
Seguiu pelo corredor principal, acenando amigavelmente para alguns dos soldados netunianos, e subiu para o terceiro andar, o setor administrativo. Nikolai já sabia muito bem o caminho até o escritório do líder do reino, já podia até se sentir em casa.
Para sua alegria, ao abrir a porta, o líder netuniano ainda não estava presente, e ele abriu um sorriso insatisfeito para as duas figuras já bem acomodadas, e irritantemente brilhantes. Nikolai passou brevemente a língua por seus caninos ligeiramente maiores, e pode ver que os dois sentados no sofá daquele lugar fizeram o mesmo. Em qualquer outro reino, achariam absurda a cena, principalmente pelos três estarem com os caninos expostos em uma situação que pareciam prestes a começarem a brigar.
Aproveitando a folga, Nikolai também se jogou no sofá ao lado do rapaz de pele oliva e olhos verde-prateados, fazendo um sinal positivo com a mão para a ruiva de olhos dourados.
— Atrapalharam a minha novela — Nikolai resmungou, e recebeu um olhar julgador vindo dos outros dois. — O que? Hoje era o último capítulo, o Aerion ia escolher qual das azaradas ia casar com ele.
— Quer spoiler? Assisti hoje mais cedo — o rapaz de olhos verde-prateados perguntou, e Nikolai automaticamente assumiu uma expressão altamente indignada.
— Como assim você assistiu mais cedo?
— Acho que a dona da emissora me acha fofo, aí pedi pra ver e ela deixou — Zyr explicou, como se fosse a situação mais normal do mundo, fazendo Nikolai abrir ainda mais os olhos em indignação.
— Fala, quem aquele filho da puta escolheu? — Ao perguntar, Nikolai empurrou o ombro de Zyr sem muita força, mas com bastante urgência.
— A insossa da Anfitrite. — Quem respondeu foi Eana, e ao mesmo tempo, Zyr suspirou como se tivesse perdido um ente querido, enquanto Nikolai abriu a boca em completa confusão mental. — Eu nem assisto isso, mas todo mundo sabe que ela não merecia a coroa.
— Mas é claro, a Efyra sempre foi muito melhor — Zyr argumentou, gesticulando com as duas mãos como se quisesse explodir alguma coisa.
— Eu preferia a Ivanora, era a escolha óbvia, mas que merda — Nikolai comentou, ainda sem aceitar o que tinha ouvido.
Os três se encararam, e cada um parecia prestes a cometer um atentado pela indignação daquele resultado. Nikolai ainda queria entender como Zyr tinha conseguido ver o capítulo tão antes de todo mundo, mas não adiantava esquentar a cabeça com isso, gente fofa sempre conseguia tudo e ele mesmo se aproveitava disso de vez em quando.
E sim, continuaria remoendo aquela informação até conseguir assistir assim que voltasse pra casa.
Infelizmente, não puderam remoer por tempo demais, logo a porta do escritório foi aberta e o responsável por aquele encontro adentrou o cômodo, recebendo três pares de olhos fendados igualmente inconformados de precisarem comparecer ali quase meia noite. O líder netuniano ignorou os três, dando atenção para a própria mesa e alguns documentos pertinentes, e só ergueu os olhos igualmente fendados de coloração verde-prateada ao ouvir um barulho vindo de Zyr.
Nephele, o líder de Netuno, ergueu o rosto após ouvir a tosse seca e forçada do rapaz, como se perguntasse a razão daquilo.
— Me pediram pra dizer que seu corte tá uma merda e que precisa fazer a barba — Zyr comentou, calmamente.
— Me pediram pra concordar com ele e dizer que vá fazer umas comprinhas porque essa roupa tá muito deselegante — Nikolai completou, erguendo uma sobrancelha ao repassar as palavras que vinham constantemente em sua cabeça. A pior parte era dele concordar com aquelas palavras.
— Quem tá morto não pode opinar, eu odeio vocês dois — Nephele comentou, encarando Nikolai e Zyr firmemente, olhando no fundo dos olhos de cada um a ponto de todos saberem a quem ele se referia.
Não aos dois rapazes, mas àqueles dentro da cabeça de cada um que insistiam em infernizar Nephele até mesmo depois de mortos. Era como se tivesse feito um juramento vitalício de ligação com pessoas que não largavam dele mesmo após passar desse plano para outro.
— E sua falta de bom senso pra se vestir não é novidade pra ninguém, agora qual o bendito motivo de ter atrapalhado a novela desses dois e a hora que eu ia varrer minha casinha? — Eana perguntou, tentando acelerar toda aquela conversa.
— Você varre de noite? — Nikolai estreitou os olhos ao perguntar, fazendo uma careta claramente confusa.
E no segundo seguinte, antes de Eana conseguir argumentar as várias razões plausíveis, a porta do escritório foi aberta novamente. Os três pares de olhos fendados sentados no sofá encararam diretamente o par de olho não fendado, e ali ficou óbvio daquela pessoa não ser natural do reino de Netuno. E pior que isso, Zyr e Nikolai estreitaram os olhos ainda mais, e isso certamente incomodou o indivíduo a chegar por último.
De cabelos bem pretos e olheiras profundas, o último a entrar caminhou diretamente até Nephele, entregando-o um dispositivo eletrônico pequeno. Por suas feições, chutavam dele ser natural de Marte, e felizmente chutaram certo. O líder netuniano agradeceu com um movimento da cabeça, e só então se deu o trabalho de responder a pergunta feita por Eana.
— Fiquei sabendo de coisas que não gostaria de saber, graças ao senhor Eike — Nephele explicou, indicando o homem tatuado ao seu lado. Passou uma mão pelo cabelo loiro antes de continuar, e conectou o aparelhinho no próprio computador enquanto prosseguia. — E por algum motivo eu tenho certeza que algum de vocês já meteu o bico nisso.
Não prestaram realmente atenção nas palavras de Nephele, o trio encarava Eike diretamente, como se vissem um pouco além da superfície, e o homem se sentiu bastante exposto mesmo não tendo revelado alguma coisa. Detestou a sensação de ter a própria alma analisada, se é que isso estava acontecendo ali.
— Perdeu alguma coisa na minha cara? — Eike perguntou, não contendo o incômodo em ter três pares de olhos fendados o mirando diretamente. Azul acinzentado, verde-prateado e dourado, Eike podia ter se acostumado com o verde-prateado de Nephele, mas ainda sentia um arrepio percorrer sua espinha ao ser encarado por mais de um daquela gente.
— Ignore, os três são esquisitos — Nephele comentou, revirando os olhos em seguida, e tinha certeza do trio estar conversando mentalmente naquele momento. Odiava isso, mas não poderia julgá-los. — Esses dois são meus filhos, como tinha te dito, o outro é agregado.
— Por que saberíamos alguma coisa? — Eana perguntou, quebrando o silêncio e movendo o rosto para encarar Nephele diretamente.
— Porque eu tenho um fofoqueiro, uma metida e um interesseiro com acesso a coisas demais, então com certeza sabem.
E novamente, os três sentados estreitaram os olhos. Eike tinha certeza que se fossem bichanos, teriam se espichado e pulado em cima de alguém. Que esse alguém não fosse ele, amém.
Nephele logo indicou para todos prestarem atenção na tela enorme na lateral da sala, e clicou para o vídeo começar a rodar. Não ter prestado atenção no líder netuniano ou em suas palavras rendeu um breve susto pela televisão já ligada, facilmente superariam isso, embora tenham demorado alguns segundos para reconhecer o local gravado. Filmagens do Museu dos Caídos, uma pessoa caminhando, em seguida dois pulsos brilhosos de puro poder antes das câmeras desligarem, o cristal há muito tempo morto brilhava novamente com ainda mais intensidade enquanto a figura brilhante o segurava. O vídeo foi repetido três vezes, para ter certeza de todos prestarem atenção.
Observar a reação dos três foi interessante, podiam ver que não havia surpresa, embora rever o vídeo trouxesse uma apreensão absurda para cada um deles.
— Talvez eu saiba alguma coisa — Nikolai declarou, esboçando um sorriso amarelo e sem separar os lábios.
— E vai me dizer o que é ou vai esperar que eu corte sua verba? — Nephele ergueu uma sobrancelha ao questionar, casualmente, como se fosse só mais um dia comum ao conversar com Nikolai.
Assunto delicado, Nikolai levantou o dedo indicador para pedir um momento de calma e paz espiritual. Claro que falaria, mesmo que quisesse muito fazer isso em troca de um preço, mas não colocaria seu emprego em jogo.
— Fiquei sabendo há um tempinho sobre o roubo, que foi por isso que fecharam o Museu, mas não tive acesso ao vídeo porque aparentemente esconderam muito bem. Contei pros dois aqui porque essa porra que tá na minha cabeça não parava de encher o saco — Nikolai explicou, apontando para a própria testa com um dedo.
— Isso é Mercúrio — Zyr disse, baixo, de testa franzida e ainda encarando a tela com o vídeo pausado.
— Que porra tá acontecendo aqui? — Eike perguntou, confuso, virando o rosto para Nephele em busca de uma resposta. Cada palavra a mais conseguia fazer uma bagunça ainda maior na cabeça dele.
— Só pessoas com poderes despertos conseguem ver o brilho das outras, por isso ele mostrou o vídeo pra gente — Eana explicou, suspirando de forma pesada como se não quisesse se meter com aquele assunto. Realmente não queria, embora talvez fosse necessário. — Como assim Mercúrio? A luz dela não era amarela?
— É, mas qualquer um que toque aquele cristal brilha desse jeito aí — Zyr continuou, com as duas mãos no rosto. Não seria pedir muito se só quisesse ir pra casa dormir e evitar a dor de cabeça. — Mas se voltou a brilhar do nada, então alguma coisa tá muito quebrada.
— Foi assim que essa putaria toda começou da outra vez — Nephele resmungou, exausto, e deu uma risada seca de incredulidade.
A risada dele tornou o cômodo muito mais pesado, não era apenas ironia, sarcasmo ou cinismo, era a risada de uma cicatriz emocional mal cicatrizada, e quase todos os presentes naquela sala sabiam muito bem do que se tratava. De todos os cinco, apenas um esteve pessoalmente presente um século antes.
— Não pode falar com o líder de Mercúrio pra ver se ele sabe alguma coisa? — Eana sugeriu, engolindo em seco.
— Se ele tivesse dedo metido nisso, acha que ia simplesmente abrir o bico? — Nikolai questionou, de testa franzida. — Até onde a gente sabe, eles não desistiram da ideia de desfazer a maldição de lá. Nunca vão dizer se pegaram ou não.
Antes de qualquer outro tentar discutir, Nephele movimentou uma mão em direção de Eike, indicando para ele continuar o que tinha para falar. Pelo menos aquela parte fazia sentido para o rapaz, pois todo o assunto entre Nephele e aqueles três dava um nó bastante apertado em seu cérebro.
Tirou uma pasta amassada de dentro da própria mochila, e a colocou em cima da mesa de forma que todos tivessem ampla visão sobre os papeis. Mais uma vez se sentiu como se estivesse em um ninho dos animais enormes daquele reino com os olhares recebidos.
— Algumas organizações também estão interessadas nos próximos passos do grupo de controle, e eu até poderia ter tentado fazer um acordo, mas não dava tempo. Peguei no pulo um agente da Cadente furtando essas anotações, e pelo visto vão fazer operações separadas pra achar o ladrão — Eike explicou, sua voz soando bem mais séria que o seu normal. Abriu a pasta e mostrou fotos dos militares envolvidos, assim como anotações de suas funções. — A reabertura do Museu vai ser na sexta, mas nem todos os palhaços vão aparecer pro show. Três foram designados pra visitar o presídio.
E pelo nome indicado no papel, não seria qualquer complexo prisional, seria um em específico. O mais protegido de todos eles, onde mantinham reencarnações contidas.
— Estão tão desesperados a ponto de tentar usar um de nós? — Zyr perguntou, fazendo uma careta. Foi o primeiro a levantar e olhar com mais atenção para as fotos e anotações da pasta, e segundos depois sentiu a presença de Nikolai se materializando ao seu lado. — A Maya vai, que merda.
— Olha só, ela é bonitinha — Nikolai comentou, erguendo uma sobrancelha ao olhar para a foto da oficial Shanti.
— Não — Zyr declarou, seriamente.
— O que?
— Ela é minha prima, você não vai fazer isso.
— Ela te odeia.
— Ainda é minha prima e você é um pau no cu, tira o olho.
Nikolai fez um biquinho dramático e teatral como se tivesse levado como ofensa, Zyr ignorou completamente e ainda mostrou o dedo do meio, só para ter os papeis puxados de sua mão por Eana, esta visivelmente incomodada com tudo aquilo.
— Se vão pro complexo então vão interrogar um dos dois que prenderam, e a gente nem sabe quem é um deles — Eana disse, respirando fundo. Ergueu o olhar para Eike, apontando para a folha simbolicamente. — O que mais sabe disso?
— Que vão, que é sigiloso e que Plutão é foco. Eles não divulgam nem mesmo a foto de Júpiter, acho que não é uma pessoa muito colaborativa. — Eike deu de ombros ao falar, realmente não tinha muito a acrescentar.
— Eu não deveria deixar nada disso, mas tentar evitar é pior, então se decidam e me digam o depois a merda que vão fazer — Nephele disse, cansado, levantando da cadeira e olhando para cada um. — Zyr e Eana, os dois foram convidados pro Centenário pela vice-rainha, então não morram até lá. Eike, toma de conta dessas pragas, por favor.
— Sim, senhor. — Eike acenou brevemente com a cabeça, em concordância.
Nephele já não tinha forças para continuar aquele dia, e antes de se retirar, avisou de todos poderem usar aquela sala pelo resto da noite. Retirou-se somente depois de depositar um beijo carinhoso no topo da cabeça de Eana e Zyr, também deixando um aviso para Nikolai se comportar.
Nenhum deles poderia questionar Nephele por não querer participar ativamente, muito menos por ele simplesmente jogar aquele problema de bandeja para resolverem o quanto antes. Protelar poderia ser pior para muita gente.
— Tá, e aí? — Nikolai perguntou, com falsa animação.
— Você conhece Plutão — Zyr disse, mantendo a face neutra.
— Conheço, mas sei que ele não quer sair de lá.
— Por que ele não sairia? — Eana questionou, virando o corpo para sentar na beira da mesa principal do escritório.
— Porque o trabalho do miserável era ser discreto. Agora ele tá com a cara estampada em um cartaz e em quase todos os sites que amam a gente, ninguém vai querer contratar o cara, na prisão tá mais tranquilo e sabe que vai ter roupa, teto e comida. — Embora Nikolai discordasse muito daquele jeito de pensar, ele entendia.
E a realidade parecia bem mais dura quando ouvida por esse ângulo. Eike acabou por soltar um riso anasalado, se estivesse no lugar daquela pessoa,quem sabe faria o mesmo meramente para ter um pouco de paz. Tirar de alguém seu modo de vida era pedir para entrar em desespero.
— É possível tirar ele de lá, só resta saber se vai querer.
— Se é possível então dá pra fazer — Eana concluiu, movendo os ombros.
— Eu disse que é possível, não que é fácil, e ia ser bem complicado chegar lá sozinho explodindo tudo e não é o tipo de atenção que eu quero pra mim. — E de todas as possibilidades de fazer aquilo, entradas triunfais definitivamente estavam fora da lista de preferências de Nikolai.
— Dá pra fazer — Eike tomou o lugar de fala, atraindo a atenção dos três, e talvez começando a entender o nível de porcaria onde estava se atolando. — Vão ter que abrir os portões pros soldados entrarem, pode ser a chance, e se o que sei vocês é verdade, com quatro deuses deve ser muito mais simples de sair de lá mesmo com as armas novas que eles conseguiram.
Eana inclinou a cabeça para o lado, curiosa. Eike não soube dizer se aquilo era bom ou ruim, então presumiu ser um momento reflexivo. E ao mesmo tempo, Zyr e Nikolai sorriram como se estivessem prestes a fazer algo bastante suspeito. Ou melhor, como se soubessem de algo muito interessante a ser usado naquele momento.
— Senhor, eu não sei o que ouviu da gente, mas muito prazer, meu nome é Zyriak, e eu gostei muito de você. — Zyr caminhou até Eike, colocando uma mão em cada ombro do homem como se estivesse o preparando para alguma coisa. Eike estranhou muito o ato repentino do rapaz, mas um sentimento crescia cada vez mais dentro de si, uma pequena voz o alertando de ser muito melhor o garoto de olhos verdes do que os dois atrás dele. — Já que vai ser nossa babá, pelo que entendi, então acho que deve saber de umas coisas sobre mim e sobre esses dois palhaços.
— Detalhes podem vir depois, o importante é que também temos armas à altura — Nikolai complementou, e olhou para Eana como se estivesse quase orgulhoso, ou como se soubesse muito bem o tamanho da explosão que poderiam causar. Por fim, estendeu a mão na direção de Eike, cordialmente. — Prazer, sou o fodido que carrega o poder do Sol.
— E você o da Lua — Eike comentou, baixo, e Zyr assentiu tranquilamente.
Eana já não precisava de uma apresentação, também tinha a face estampada em um cartaz tal qual Plutão, sua raiva era apenas da foto ser muito feia. E indiretamente, Eike entendeu perfeitamente a razão daquela cordialidade. Nenhum deles era conhecido, nenhum deles tinha uma identidade pública, e se alguém viesse a descobrir, viriam diretamente até ele. Eike estava igualmente fodido, sabia disso perfeitamente.
— Quem deu a eles armas novas? — a ruiva perguntou, erguendo as sobrancelhas.
— Saturnianos.
Pela reação geral, já sabiam o grande pé no saco que aquilo seria. Sempre saturnianos. E tinham uma breve noção da complicação por sempre os equipamentos daquele reino funcionarem bem até demais. Precisariam ter uma conversa amigável com o autor das novas armas, isso era certo, mas só depois de livrarem a cara de Plutão. Para Eana, era como uma piada de muito mau gosto ter que ir soltar justamente essa reencarnação.
— Vocês sabem quem são os outros? — Eike deixou a curiosidade vencer.
— Grande parte. — Nikolai ergueu as sobrancelhas ao falar.
— Dá pra ver a aura da maioria por foto digital, mas não por foto impressa. Dos maiores, conseguiram esconder Júpiter muito bem e Mercúrio só apareceu agora. Dos menores, sabemos muitos, mas a maioria deles não vai nem acordar — Zyr explicou, fazendo uma careta desgostosa. — Outros já acordaram e ficaram em negação, que nem nossa caçula e uma uraniana que acho que tá morando em Júpiter agora.
— A Psique ainda tá nessa? — Nikolai perguntou, verdadeiramente desacreditado.
— Com aquele poder dela, ninguém vai julgar, mas não falem isso muito alto que o Nephele não faz nem ideia dessa parte — Eana avisou, e balançou a cabeça negativamente por um momento. — Eike, sua boca é um túmulo, entendeu? Você trabalha pro nosso pai, mas se isso chega nos ouvidos dele, você não vai ficar vivo o suficiente pra continuar trabalhando.
O homem estreitou os olhos, tinha realmente tentado se manter calmo até aquele momento, mas se tornava difícil quando abertamente o ameaçavam.
— Isso é uma ameaça?
— Se soou como uma, então é — ela respondeu, com um sorriso simpático enquanto inclinava o rosto para o lado.
A voz no fundo da mente de Eike berrava em alerta para ele ficar longe daquela gente, eram exatamente os tipos de pessoas que o poriam em risco de uma forma ou outra, e por isso deveria ter o cuidado redobrado. Ele bufou, bastante inclinado a quem sabe um dia cair no soco com a ruiva, mas algo também o dizia dessa ser uma péssima ideia.
— Tenta a sorte, otária — Eike respondeu, quase instintivamente.
— Adorei ele. — Eana abriu mais o sorriso, dando um pulinho para sair de cima da mesa e esticando as costas preguiçosamente.
Eike sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo novamente, sua mente não conseguia encaixar o fato dos caninos tão mais evidentes, e isso deixava o sorriso de qualquer um mais macabro.
— Amanhã a gente termina de resolver isso tudo, tá tarde e eu ainda quero ver minha novela hoje pra terminar de passar raiva — Nikolai declarou, colocando as mãos na cintura como se já tivesse decidido a ir embora.
— Eu tenho que terminar meu e-mail mensal, dessa vez ficou bastante emotivo, e ainda vou varrer o apartamento, então... — Eana esticou as costas novamente, dessa vez mais devagar, como se segundos pensamentos e preocupações passassem por sua mente ao mesmo tempo. — Boa noite.
Não havia muito o que fazer além de dar um aceno de boa noite, Nikolai e Eana logo se retiraram. Zyr e Eike permaneceram no recinto, o segundo realmente abismado com as prioridades nos novos conhecidos. No fundo, ele mesmo estava ali meramente a trabalho para ganhar o salário do mês.
— Eles são estranhos, mas você se acostuma — Zyr comentou, dando dois tapinhas no ombro de Eike de maneira amigável.
— Vocês são realmente filhos dele? — Mais uma pra lista de perguntas feitas no impulso, e Eike não se arrependia, gostaria de saber exatamente onde enfiava o pé.
A expressão no olhar de Zyr mudou, pensativo, e Eike decidiu não insistir abertamente. Os olhos do garoto, tão parecidos com os olhos de Nephele, assumiram um ar ligeiramente entristecido, mesmo que sua expressão facial tentasse se manter mais alegre.
— Ele criou nós dois, então sim, é nosso pai.
O marciano apenas assentiu, soava como resposta suficiente. Com isso, deram por encerradas as conversas daquele dia. Já passava de meia noite, e se encontrariam bem cedo no dia seguinte.
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