A FUGA
Eles tinham combinado de se encontrar perto da rodoviária exatamente à uma e meia da manhã. O carro dele era um gol branco que ela ia reconhecer facilmente por causa do adesivo de um palhaço sinistro no vidro lateral.
Jennifer ajuntou suas coisas de tarde e fingiu que estava arrumando o guarda roupas. Sua mãe e sua irmã não desconfiaram de nada.
Ela tinha que aproveitar porque agora sua mãe não trancava mais a porta do quarto dela, se fosse há uns dois meses atrás a fuga ia ser muito mais difícil.
Ela ajuntou tudo o que achava que valia a pena carregar daquela casa e colocou em duas sacolas e uma mochila.
Jennifer entrou em contato com Maurício pelo WhatsApp por volta das seis e disse que estava pronta.
Ele chegou a perguntar se era exatamente isso o que ela queria e Jennifer disse que sim. Ela já não aguentava mais a vida que estava levando e via em Maurício, um cara 17 anos mais velho que ela, uma oportunidade de ser livre.
Maurício parecia ser um cara legal. Ela não o conhecia, a não ser nas conversas online, mas ele tinha jeito de ser um cara legal. Além disso ele disseram que está a apaixonado por ela e queria passar o resto dos seus dias ao seu lado.
Jennifer estava decidido a por um ponto final em seu sofrimento.
Sua mãe, uma mulher de 44 anos era usuária de drogas, tinha sido presa várias vezes por tráfico de drogas e a única coisa que ela sabia fazer era bater. A irmã era uma puta lésbica que vivia trazendo mulheres para dentro de casa e ela já não aguentava mais aquela vida, já estava de saco cheio de ter que escutar merda o dia todo, fazer todo o serviço e ainda assim apanhar.
A última surra tinha sido há menos de quinze dias, e ela tinha apanhado porque havia errado o ponto da massa de bolo, sua mãe lhe betera com um chicote e arrancara sangue de suas costas.
Não, ela não aguentava mais. Jennifer tinha decido dar um basta naquilo e já que não era amada- e não entendia porque- resolveu se matar.
Foi então que Maurício aparecera.
Ela estava em muitos grupos de WhatsApp e em um deles conheceu aquele cara bem mais velho mas que parecia ser gente boa. Começou com elogios, Maurício não se cansava de elogiar. Dizia que ela era linda, que ela parecia uma princesa.
As conversas foram evoluindo e um dia os dois foram para o PV e estreitaram ainda mais a relação virtual. Era gostoso conversar com Maurício, era tipo uma fuga, ele a fazia esquecer dos problemas e seus elogios eram como carinhos que ela nunca tinha recebido na vida.
Então, um dia, algo inusitado aconteceu: Maurício a pediu em namoro.
Jennifer não se via namorando alguém à distância, achava aquilo uma merda. Ela também não esperava namorar um cara de 37 anos, te do ela 20. Era como namorar seu pai, que era só um pouco mais velho que Maurício.
Mas algo em Maurício a encantou de tal forma que ela viu-se dizendo sim.
Maurício parecia um príncipe encantado, daqueles dos contos de fada, e a maneira com que ele a tratava a fez ficar perdidamente apaixonada.
Então, um dia ela se abriu, contou tudo a ele, não deixou escapar nada de sua vida, e em sua mente vislumbrou o vim de seu namoro virtual. Mas então Maurício a surpreendeu com uma mensagem, e a mensagem era: vem morar comigo.
A ideia de se libertar daquele inferno que era sua vida lhe pareceu maravilhosa demais para ser recusada e ela disse sim.
Eles planejaram tudo. Na noite do dia 15 de setembro, eles se encontrariam perto da rodoviária, ele estaria em um gol branco com um adesivo de um palhaço sinistro colado na janela.
Jennifer arranjou suas coisas e esperou ansiosamente a hora passar. Seu coração palpitava quando ela pegou suas coisas e avançou a passos de gato pela casa. Se fosse pega talvez sua mãe a matasse.
Mas ela não foi pega. Ela sabia que a porta da frente nunca era trancada. Ela conseguiu sair da casa. Houve um momento de desespero quando o portão fez muito barulho e os cachorros dos vizinhos começaram a latir. A adrenalina e o medo não a abandonou enquanto ela percorria os dois quilômetros até a rodoviária, e continuou lá enquanto ela esperava por Maurício que chegou exatamente no horário marcado. O carro era mesmo um gol branco e de fato havia um adesivo sinistro no vidro, um palhaço medonho.
Maurício desceu do carro e a abraçou. Depois os dois se beijaram. O perfume dele era ligeiramente amadeirado, meio forte, mas muito bom.
— Tudo bem?
— Sim. Fiquei morrendo medo de ser descoberta.
— Bem, você não foi. Vamos?
— Sim. Vamos.
Maurício jogou as coisas dela no porta malas. A tensão começou a aliviar quando ela sentou-se no banco do passageiro e afivelou o cinto de segurança, e praticamente a abandonou por completo quando Maurício saiu da cidade e entrou na rodovia que levava até Pindamonhangaba, a cidade que ele morava, e onde ela esperava começar uma nova vida.
Fizeram todo aquele trajeto em silêncio então Maurício olhou para ela e perguntou:
— Tudo bem?
Jennifer o fitou e tentou sorrir.
— Tudo bem. Só um pouco de adrenalina.
Maurício ligou o rádio do carro e colocou uma música suave para tocar.
— Quer voltar?
— Não! De jeito nenhum. Aliás não vou fazer falta. Minha mãe vai acordar e descobrir que eu fugi e vai dar graças a Deus.
— Sua mãe parece uma filha da puta!
— É. Ela é. – Disse Jennifer olhando para fora.
Maurício colocou a mão na perna dela e disse:
— Vai ficar tudo bem agora. Vai acabar logo.
Jennifer olhou para a mão dele em sua coxa e a segurou. Ela sorriu.
Não sabia muito bem como estava se sentindo, mas achava que era muito bem.
Jennifer encostou a cabeça no vidro e acabou adormecendo.
†
Ela abriu os olhos e viu que ainda estavam na estrada. Sentiu uma leve dor nas costas. Não fazia a menor ideia de que horas eram. Estranhamente notou que parecia mais escuro.
Maurício continuava dirigindo, totalmente em silêncio.
A música suave no rádio tinha sido substituída por rock, ela achava que era Iron Maiden ou algo parecido.
Jennifer bocejou e perguntou:
— A gente ainda está na estrada? Essa sua cidade de nome estranho é vem longe.
Maurício permaneceu em silêncio.
De repente o celular tocou, era o toque de notificação, e por algum motivo ele a fez dar um salto.
Jennifer pegou o telefone e viu que era uma mensagem de WhatsApp.
Abriu o app e franziu o cenho. Era uma mensagem de Maurício.
— Ei. Por que Me mandou mensagem? Eu...
Jennifer franziu o cenho e leu a mensagem:
“ Oi gata. Negócio é o seguinte: esquece aquele lance. Não vai dar. Eu estou com problemas e não vou poder cuidar de você aqui. É melhor você ficar por aí mesmo. Desculpa tá?”
Jennifer exibiu um sorriso meio nervoso.
— Que brincadeira é essa Maurício?
Maurício permaneceu em silêncio, ocultado pelas sombras do carro.
— Ei. Tá de brincadeira...
Havia alguma coisa. Jennifer podia sentir. Ela descobriu que seu coração estava palpitando.
Segurou o celular e começou a digitar:
“ Que brincadeira é essa? “
“Brincadeira nenhuma,
Eu só não quero mais você. Desculpe.”
“Como não quer?... Você está aqui... Está dirigindo o carro”
“você está louca Jennifer?
Como estou aí? Eu estou na minha cama garota. Olha... É melhor a gente não se falar mais. Tchau. Desculpa.”
Agora Jennifer estava tremendo. Um medo apavorando dominava todo seu interior.
Ela guardou o celular em seu bolso. Olhou para o lado de soslaio vendo o motorista semi oculto pelas sombras, percebendo pela primeira vez que o interior daquele carro era grande demais para ser um gol.
Jennifer engoliu em seco.
— Quem... Quem é você?
O motorista acendeu um cigarro, a chama do fósforo iluminou o interior do carro por alguns segundos e depois se apagou. Jennifer viu que ele estava usando um boné com um símbolo de uma caveira, uma jaqueta vermelha, apesar do calor.
Ele abriu a janela, e soltou a fumaça no ar.
Só então ele respondeu, e pela primeira vez Jennifer percebeu que havia alguma coisa muito errada com aquele homem:
— Ele me chamam de muitos nomes. Teve um cara que me chamou de vírus de estrada. Eu já fui chamado de demônio pelos mais fanáticos. Mas hoje Jennifer, especialmente hoje, eu sou a verdade.
Jennifer não conseguia entender o que estava acontecendo, não era capaz de compreender como não perceberá que aquele carro não era um gol e como aquele homem não era Maurício.
Então o homem acendeu a luz de leitura do teto.
Jennifer começou a gritar.
O rosto do homem estava deformado, era um rosto em carne viva, os olhos eram duas órbitas vazias de onde escorria sangue.
O homem começou a gritar imitando Jennifer, e depois passou a gargalhar.
— Grite garota! Grite a vontade. Muitas putas como você já gritaram nos bancos desse carro, algumas gritaram de tesão. Mas é tudo a mesma coisa. Entende? Não existe diferença. Só existe a loucura querida. Então grite.
O cara aumentou o volume do som e consequentemente a velocidade.
Jennifer gritou até que lhe pareceu que gritar não fazia qualquer diferença, então ela parou. Estava chorando, em pânico. Mas então uma certeza povoou sua mente e ela passou a agarrar o pensamento com unhas e dentes: aquilo era um pesadelo. Ela tinha muitos pesadelos e aquele era só mais um. Tudo o que ela precisava fazer era acordar e tudo ficaria bem.
O motorista morto pareceu ler seus pensamentos:
— Vá em frente. Acorde. É sempre assim. Basta acordar.
— Meu Deus! O que está acontecendo?!
— Deus! Deus não está aqui querida. Não nessa porra de carro. Ele deve estar parado em algum motel fedorento de beira de estrada comendo uma puta. Nesse carro eu sou Deus!
O cara aumentou ainda mais a velocidade. Agora eles estavam indo muito rápido, Jennifer custava a acreditar como uma coisa tão velha podia correr tanto.
— Se acalme! – Exclamou Jennifer. — Fique calma e acorde! Simplesmente acorde.
Ela fechou os olhos e quando voltou a abri-los o pesadelo ainda estava ali.
— Relaxa garota. Simplesmente relaxe. Afinal é só num sonho, né? Não é real.
— Não. Não pode ser!
— Não mesmo. Se fosse real eu poderia fazer isso?
De repente ele arrancou a própria cabeça e ficou segurando ela com a mão direita.
Jennifer começou a gritar desesperada. O cara atirou a própria cabeça no banco de trás e o carro começou a ziguezaguear na pista.
Jennifer gritava em estado de total pânico.
— Bosta! Vou precisar da cabeça! – Disse o homem morto. — Não consigo enxergar a porra da estrada.
O corpo virou-se para trás e começou a procurar a cabeça. A achou e a encaixou no pescoço.
— Porra. Muito melhor assim.
Ele olhou para Jennifer encolhida no banco do passageiro e sorriu.
— Está na hora de curtir a viagem moça, ela pode ser longa. Só depende de você.
— Do... Do que está falando?
— Você ama a sua vida?
— O que?...
— Você se ama? Ama aquela bosta que você chama de vida? Eu sei que não. Já encontrei muitos como você nessa porra de estrada. Às vezes eles mandam pra mim. Tem muitos na estrada, e de vez em quando eu pego alguns.
— Do que está falando?
O cara apontou para fora e disse:
— Dê uma olhada.
Jennifer olhou para fora e viu pessoas. Havia pessoas paradas na beira da estrada. Os faróis do carro as iluminavam e de repente Jennifer viu que todas elas estavam mortas.
— Almas. – Disse o motorista. — Eu sou um maldito condutor de almas. Meu trabalho é pegar as que são marcadas e as levar para onde elas precisam ir. É isso que eu faço.
Jennifer meneou veementemente a cabeça. Não podia ser. Não podia!
— Algumas ficam por aí, vagando pela estrada até que passe outro carro. – Continuou o motorista. — Outras são de alguma forma salvas e encontram os outros. Os outros caras. Hoje é seu dia de sorte.
— O que está acontecendo?! – Perguntou Jennifer chorando. — Eu... Eu estou morta?!
— Mais ou menos. Nesse exato momento você está se matando. Sei lá, acho que você não gosta muito da sua vida e resolveu cair fora. É compreensível. Eu fiz isso uma vez.
— Eu... Eu não entendo.
— Simples. Estamos no exato momento em que sua alma sai do seu corpo. O que acontece é que você vem pra cá, para a estrada, e era a sua vez de pegar carona. Então o tio aqui vai te ajudar a decidir.
O motorista meteu o pé no freio e o carro parou bruscamente.
Eles estavam agora em um cruzamento. À direita a estrada seguia se perdendo na escuridão, a mesma coisa para a esquerda. À frente havia um enorme penhasco.
Jennifer viu algumas placas no cruzamento e as leu:
ESTRADA 666
INFERNO
SHEOL
Abaixo daquilo alguém havia pichado uma frase Obscena:
Joana dá o cu. De graça.
A lua brilhava intensamente num céu opaco que parecia uma mortalha.
— Não existe opção moça. Você tem que escolher. Eu vou para a direita ou para a esquerda?
Jennifer balançou a cabeça.
— Não!
— Não o caralho, o seu tempo acabou. Escolha agora ou eu escolho pra você.
— Não! Eu não estou morta!
— Está. Deve ter cortado o pulso, ou se pendurou Em alguma corda, ou tomou um copo de veneno. Ah, a minha preferida: ou estourou a cabeça com um tiro.
— Não!
— Por que não admite logo de uma vez?
Jennifer puxou o ar para si e respirou fundo.
— Porque eu estou respirando, porra!
Jennifer engatou primeira e meteu o pé no acelerador por cima do pé morto do motorista.
O carro saiu em disparada e despencou pelo penhasco.
††
Na estrada.
Parada na estrada
Uma estrada deserta.
Sua mala estava ao lado.
Ela estava no que parecia ser um ponto de ônibus caindo aos pedaços, em um cruzamento.
Ela ouviu o ruído de um motor e logo um carro se aproximou. Era um opala vermelho sangue, barulhento.
O motorista veio a toda a velocidade, passou pelo ponto de ônibus onde ela estava e meteu o pé no freio fazendo os pneus cantarem.
Os vidros eram pretos. O vidro do lado do motorista foi aberto e uma bituca de cigarro foi atirada no asfalto.
Então o carro saiu em alta velocidade e desapareceu.
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Debora Quesada
Luís Fernando Alves
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