Qual poderia ser o foco da leitura sensível?
Acho que as pessoas têm que cuidar com esse lance de "leitura sensível". Porque corre o risco de cortar a espontaneidade e deixar tudo muito raso, tudo muito superficial. Só pensar no politicamente correto entra em desacordo com a realidade. A realidade não é politicamente correta. A não ser que o autor ou a autora não queira discutir questões sociais... Pois se muitas vezes a gente quer discutir um preconceito e, por meio do senso comum das pessoas, levar o leitor a refletir consigo próprio e/ou debater com outros leitores.... Daí, porque alguém disse: "Olha, o termo correto não é esse"... Resta a pergunta: como as pessoas de carne e osso falam? Fazemos o quê? Cortamos? Mas e se a expressão faz parte do problema que queremos debater?
Omitimos?
Li no Instagram a opinião de um internauta que disse: "Para mim, quem não sabe o significado da sigla LGBTQIA+, não é gente".
Como é que é? Quer dizer que todo mundo é obrigado a saber? Não é bem assim... As pessoas tem origens diferentes, são de gerações diferentes e não é na base da agressão verbal, ou pressão, que irão aprender. Adorei a resposta de um artista transsexual que explicou a questão para o internauta revoltado.
Aí, no meu entender, entra o papel do escritor. Ele tem o poder de fazer conhecer diferentes formas de pensar para diferentes tipos de leitores. E acredite, os leitores se interessam em aprender. Você tem o poder de conquistá-los e ajudá-los na jornada por meio de suas estórias.
É evidente que precisamos cuidar com as palavras e como as empregamos. Mas isso não significa fechar olhos para os conflitos, como se as personagens vivessem no mundo ideal da Barbie e do Ken.
Parafraseando, ou reinterpretando Karl Marx: primeiro você fala a linguagem que um grupo de pessoas entende, ganha a sua confiança e respeito; para, então, conduzi-las para a linguagem que você quer que elas compreendam. Existe a psicologia do texto, os discursos presentes no texto, e você é o maestro ou a maestrina. Você pode conduzir à mudança. Mas mudança é muito melhor assimilada pela persuasão e compreensão do que pela intimidação/assédio moral.
Isso significa que não é na base da imposição de termos e palavreados, na realidade do leitor, que você vai conseguir fazê-lo entender o aspecto politicamente correto.
Stephen King criou um vilão estuprador, homofóbico, com aversão a judeus e afro-americanos, que maltrata a própria esposa durante anos. Ele também é um mordedor. Um cara que inflige dor aos outros por meio de dentadas e, com isso, o sujeito sente prazer. É um sádico.
Seu nome é Norman e o livro se chama Rose Madder.
Daí o nosso simpático Norman surta em divagações sobre o quanto valem as pessoas, conforme ele as classifica: mulheres com "cabelo loiro de puta"; ou pessoas deficientes (alusões que ele pretende fazer piadinhas). O que seria do livro, e do autor, se Norman xingasse um judeu e em seguida dissesse: "Mas não façam isso em casa, pessoal!"; ou simplesmente King cortasse tudo o que Norman fala e pensa sobre as mulheres, os judeus, os afro-americanos, os deficientes, as loiras, os vulneráveis, os... enfim!
Não haveria mais livro, posso garantir.
A ideia do autor, pelo que depreendi, foi mostrar como um cara como Norman pensa. Cacos como ele existem aos montes, porém, são pessoas... Pessoas que não nasceram assim. É preciso confrontar a realidade que criou Norman. Acredite se quiser, as ações e omissões de pessoas boas também são responsáveis pela construção de uma pessoa má como o Norman - a pessoa que ele se tornou.
Como dar credibilidade para mergulhar na vilania de Norman, se assim não fosse? Como enxergar o preconceito, se o leitor não acompanha o fio da meada? Norman tinha que ser revelado/mostrado, e não didaticamente dissecado. Só assim,o leitor perceberia o que lhe está sendo apresentado. A visão de Norman se torna um aprendizado real e emocional; não artificialmente percebido (ou superficialmente intelectualizado).
Se puderem, leiam Rose Madder como um exercício de escrita e de criação de personagem e pense a respeito.
Questões sensíveis? O universo de Shakespeare parece cheio delas... O ciumento mouro Otelo casa-se com uma nobre branca... e sente-se depreciado pela elite local, já que ele é um estranho no ninho... Mas decide viver entre eles. Pensa estar sendo traído e comete feminicídio.
A Megera Domada poderia ser considerada, hoje, uma ode ao machismo institucional. Se naquela época houvesse uma leitura sensível, Shakespeare teria ficado intimidado, e não teria escrito a maioria das suas peças mais famosas.
Acho que nenhum jovem teria acompanhado Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, com tanta matança entre adolescentes e crianças, se os livros da trilogia tivessem passado por leitura sensível (nos moldes de hoje).
Por tudo isso, penso que controlar a obra de um autor, que é o que todos esses penduricalhos fazem (leitura crítica, sensível, beta, etc, etc, etc, etc,), é como aleijar a criatividade do escritor.
Submeter a obra à betagem, leitura crítica e sensível, como troca de ideias, para melhorar a qualidade do texto, é uma coisa. E daí eu estou plenamente acordo... Porém, isso já é o papel do editor... Pelo menos era, antigamente. E sim, é válido e importante.
Agora nortear todo o projeto do livro, inclusive o desenrolar das personagens aos desígnios e interesses políticos e ideológicos dos outros, é bancar o escritor robozinho. Que não reflete por si mesmo. Depende inteiramente dos outros para tudo.
A leitura sensível deveria auxiliar um autor a esclarecer uma ideia para o entendimento dos leitores. Contudo, como está posta, parece ter substituído a antiga censura da época da ditadura.
Eu acredito que é o leitor quem deve fazer a leitura sensível, como anda sendo feita nos dias de hoje. E não os vendedores de sonhos engarrafados.
A relação com o leitor por meio da crítica construtiva faz o exercício da cidadania fluir. E se um autor tiver que ser responsabilizado por suas palavras, que seja! Só não podemos impedir o direito das pessoas de se expressarem.
Andamos fazendo muito isso ultimamente. Eu sou adepta da máxima: "Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo."
As pessoas estão cada vez mais intolerantes às diferenças e diversidades porque não se trabalha o núcleo do problema. E o núcleo do problema é a falta de interesse público em investir na educação do ser humano.
Isso mesmo. EDUCAÇÃO.
A regra principal a ser seguida, para mim, é: seja respeitoso; seja educado e o resto se ajeita.
Respeitar as ideias diferentes das nossas é essencial. Se o nosso pensamento é agressivo e desrespeitoso, guardemos para nós mesmos. Ninguém tem obrigação de aturar a feiúra ideológica, uns dos outros. No mais, elementos extraídos do cotidiano, no meu entender, não merecem reações supervalorizadas.
Mas isso é a minha opinião. Ninguém tem que concordar comigo.
Convenhamos que, quando deviam ter feito uma leitura sensível, deixaram passar muitas e muitas obras ou formas de entretenimento poluído. Animes (os Hentai tarados); Jogos de videogames sanguinários; Programas de TV com mulheres e homens cometendo barbaridades uns contra os outros; filmes; e livros... não sejamos hipócritas quando falarmos de leitura sensível.
Trópico de Câncer, de Henry Miller, está por aí até hoje e agora têm status de clássico moderno. Os 120 de Sodoma, do Marquês de Sade, classificado como romance filosófico... Dá pra filosofar em cima de tanta filosofia, não é, Sade? O sexo inspira operetas filosóficas bastante intelectuais... Tsc, tsc, tsc....
E 50 Tons de Cinza não tem do que reclamar... bufê de sadô-masô cor de rosa. Façam fila, pessoal, que a boia está servida!
Que tal roteiros como Round 6 e A Casa de Papel...? Nos quais, ladrões de banco são enaltecidos como santos e heróis revolucionários; e milionários pagam para ver os pobres e bandidos se matarem numa escape room da morte...?
Nada contra programas de TV bem feitos e cativantes, que fazem pessoas críticas refletirem, pois prendem a atenção do começo ao fim. Mas volto a repetir: não sejamos hipócritas quando falamos de leitura sensível, determinando a um escritor o que ele deve cortar, ou não, quando temos todos esses exemplos aí para dizer que não é bem assim que a banda toca...
BATATINHA FRITA... UM, DOIS, TRÊS!
SÓ QUE NÃO!
Não é só livro que passa por leitura sensível. Preste atenção à tarja de algumas produções de TV: conteúdo sensível, recomenda-se discernimento ao espectador". São obras com indicativo e classificação. São os pais e os adultos que devem sentar e conversar com os adolescentes, restringindo o que acham que devem restringir. E cabe aos adolescentes, quando não são restringidos pelos pais, com a devida orientação, botar o cérebro pra funcionar e observar o que acontece a sua volta.
Discernimento quer dizer: habilidade de refletir com bom senso. De separar ficção da realidade, ou ter capacidade de separar o certo do errado.
O mesmo se aplica aos livros, na minha humilde opinião. Os livros não são os únicos meios de linguagem e de comunicação, mas fazem a base para a maioria das demais produções. É moda lançar livros inspirados em séries de sucesso. Até Star Wars tem livros publicados...
Se dependessem de uma leitura sensível, filmes como Plano de Fuga, com Mel Gibson, jamais teriam sido rodados.
O garoto fumante teria sido excluído, provavelmente. Assim como as barracas de "visita íntima" do presídio.
Mas a questão central aqui é: escrever barbaridades (assumidamente ideias do autor), é uma coisa. Quando um autor conclama seus leitores a saírem às ruas matando criancinhas, nem deveria ser publicado. Deveria ser preso.
Quando o autor apresenta a morte de criancinhas indefesas e faz a gente refletir sobre essa atrocidade por meio de personagens boas e más... daí estamos falando de fazer um recorte realista e apresentar ao leitor para o debate.
É preciso ter em mente que a discussão só é possível se o autor não for restringido por vieses de apresentação - no que os outros vão pensar a respeito... Certamente, algum político iria preferir que o autor lidasse com o tema de um jeito. Um militante de algum direito iria preferir que cortasse isso ou aquilo. Um grupo de religiosos consideraria ofensivo tal e qual coisa. Um profissional de alguma editora talvez se detivesse em alguns dos aspectos acima mencionados, ou nas suas próprias predileções...
E o autor vai fazer o jogo do contente ou o jogo de contentar alguém?
Um contrassenso, pois os livros polêmicos são os mais notados. São os que provocam reações e mudanças, quando escritos de maneira consistente. Livros que discutem tabus, preconceitos e até valores arraigados em sociedade. Livros que não são confortáveis e geram debates. E se não os conhece, basta pesquisar sobre o impacto de uma das obras abaixo, à época em que foram publicadas.
Temos um amplo espectro de exemplos:
Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler
Laranja Mecânica, de Anthony Burgess
Senhor das Moscas, de William Golding
O Sol é para Todos, de Harper Lee
Tempo de Matar, de John Grisham
O Príncipe, de Maquiavel
O Anticristo, de Nietzsche
O Amante de Lady Chatterley, de D. H.
Lawrence
O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger
A onda, de Todd Strasser
Christiane F, 13 anos, drogada e prostituída, de Christiane F.
O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz
As Vinhas da Ira, de John Steinback
Lolita, de Vladimir Nabokov
Os miseráveis, de Victor Hugo
Presença de Anita, de Mário Donato
A espera de um milagre, de Stephen King
David Copperfield, de Charles Dickens
Ligações Perigosas, de Chordelos Delaclos
Oliver Twist, de Charles Dickens
Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues
Um conto de Natal (Scrooge), de Charles Dickens
O Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis
A mulher só, de Harold Robbins
Os ensinamentos de Don Juan, de Carlos Castanheda
Sol dos insones, de Lord Byron
O cortiço, de Aluísio Azevedo
1984, de George Orwell
Saco de Ossos e Rose Madder, de Stephen King
Madame Bovary, de Gustave Flaubert
A carne, de Júlio Ribeiro
Mesmo O conto de Natal, de Dickens traz uma dura lição. Não foi o presente mágico que os autores costumam oferecer aos seus leitores, nessa época do ano. Imagine lê-lo em 1843. E falar em espíritos de falecidos entre religiosos rancorosos fazendo o sinal da cruz... Pois o sucesso foi tanto, que rompeu qualquer mentalidade tacanha.
Pergunte-se se você quer escrever um livro ou oferecer água de chuchu para os seus leitores... quem sabe um clone mal acabado de um autor estrangeiro.
Digo isso porque fazer clones do que você acredita ser uma fórmula politicamente correta, e de sucesso, leva você a se tornar mais um fantoche nas mãos daqueles que exploram os escritores.
Não seja explorado. Seja você mesmo e não a sombra de outro escritor ou a sombra de uma ideologia de Poliana.
Seja aquele que muda ideologias preconceituosas e retrógradas.
🦾🦾🦾
Assim sendo, acredito que o principal papel da leitura sensível deva ser o de ajudar um escritor a evitar reproduções de estereótipos por meio da escrita. De maneira inerente à própria escrita. Especialmente no que se refere ao racismo.
Eu explico: Não podemos pactuar com expressões que denigrem a trajetória histórica de um povo ou etnia. Seja nos aspectos de sua religião, aparência física ou costumes. Todos merecem ter sua trajetória histórica respeitada.
Portanto, existem expressões que o narrador pode e deve evitar. Na época em que escrevi meus livros, não havia uma discussão tão enfática como hoje.
As pessoas da minha geração usavam (com certa ingenuidade) palavras e expressões, sem conhecer suas origens... Eu mesma confesso que nunca associei um livro negro a uma pessoa afrodescendente. Eu associava a "proibido" ou " negativo". Também não associava à questão do racismo, a receita da nega maluca, em que não vai recheio nem cobertura de brigadeiro, e sim, uma camada "espelhada" (portanto é bem diferente do bolo de chocolate).
Mas a gente aprende que precisa se reciclar, especialmente com os estudiosos do tema (a maior parte composta pelos protagonistas de tais discussões).
E aqui entra em jogo o tão necessário letramento racial. Que é um conjunto de práticas que objetiva auxiliar a descobrir como as questões raciais modelam a sociedade.
Por outro lado, precisamos reconsiderar a maneira como, antigamente, víamos piadinhas sujas como engraçadas. Não acho graça alguma em ressaltar defeitos físicos como se fossem adjetivos do caráter de uma pessoa. Como se a beleza fosse sinônimo de bondade ou vitória. Como se feiura fosse sinônimo de maldade e derrota.
Alguém já leu "O Corcunda de Notre Dame", ou "O Fantasma da Ópera"? Obras que discutem como a beleza e a feiura podem destruir a vida das pessoas.
E veja o suprassumo do machismo, que trata as mulheres como criaturas burras ou bobas que dependem dos homens para tudo. Que nasceram para parir filhos... É o caso de comédias românticas, novelas mexicanas e brasileiras. A novela A Sucessora precisaria passar por uma remodelação se fosse para ser exibida hoje.
Fica a dica: monitore e troque expressões preconceituosas por outras que não tenham marcas ideológicas.
Abaixo, sugestões, entre as quais, algumas que já são amplamente utilizadas:
Mercado negro = Mercado ilegal
Livro negro = Livro restrito ou proibido (não são as expressões mais exatas, e sim, mais próximas)
Pixaim = crespo
Nega Maluca = bolo de chocolate (aproximadamente)
"Vá falar assim com as tuas negas" = "Vá falar assim com as pessoas do seu círculo de amizades". Ou " vá falar assim com os seus iguais".
Mulato = Pardo.
Quadro negro = quadro de giz; lousa.
Criado mudo = mesa "de cabeceira" ou de apoio.
Denegrir = difamar, aviltar, caluniar, macular, manchar, rebaixar, desacreditar, injuriar.
🖤
Então, no que se refere à reprodução de palavras com teor carregado de sentidos negativos históricos, você deve estar atento em como elas vão aparecer no seu texto.
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