(𝕴𝖓)𝖊𝖝𝖎𝖘𝖙𝖊𝖓𝖙𝖊
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❝Afundo cada vez mais num profundo sonho lúcido. Estou presa num sonho que é uma armadilha.❞ — Dreamcatcher, What.
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⠀⠀⠀⠀Siyeon encontrava-se em um magnífico jardim, resplandecido pela luz da grande estrela.
Belas flores, das mais diversas cores, coloriam o verde da paisagem. Os raios de sol aqueciam sua pele de forma aconchegante, mas o vento gelado impedia que sua temperatura corporal subisse demais. Era o clima perfeito. Siyeon estampava um sorriso em seu rosto, não sabia o porquê de estar tão feliz, mas sentia seu coração em completa plenitude. Não se lembrava da última vez que se sentiu tão bem assim.
Um lago reluzia em meio ao jardim, a água cristalina brilhava como se produzisse luz própria e Siyeon conseguia ver seu reflexo como se estivesse olhando em um espelho.
– O que você sonha em conquistar Siyeon? – Uma voz, atrás dela, questionava. Não sabia distinguir se era feminina ou masculina, se sequer pertencia a uma pessoa. Por algum motivo nunca se virava para descobrir quem estava falando com ela.
– Eu não tenho nenhum sonho. – A menina respondeu com sinceridade.
– Todos precisam de um sonho! Algo que os incendeie com paixão. – A voz dizia como uma mãe explicando algo para um filho.
Era nesse exato momento em que o sonho se tornava um pesadelo. O jardim em volta da morena começava a pegar fogo, o cheiro de folhas queimando inundava suas narinas. Conseguia sentir a essência de algo podre, sabia que não teria como vir das flores, então olhava para baixo e percebia que também estava pegando fogo. O vestido branco que trajava era consumido pelas chamas. Porém, ela não sentia nada, nenhum vestígio de dor.
– Pessoas sem sonhos não tem propósitos. Sem um propósito você vai deixar de existir. – A voz continuou.
– É tarde demais para isso, já não existo mais. – Siyeon sorria fraco ao observar o jardim se dissolvendo em um mar de cinzas.
Ao voltar o olhar para a água, notava que seu rosto havia sumido. Não havia mais uma boca para se expressar, um nariz para experimentar novos cheiros ou olhos para admirar novas belezas. Seu rosto era um vasto nada, não mais humano. O exterior representava seu interior, oco. Como uma fruta tomada por insetos por dentro, sem aparentar, aos olhos inocentes, que já está estragada porque a casca reluzente guarda uma podridão que só será revelada ao ser cortada, para então ser descartada.
O que um dia foi cheio de vida, não passava de uma casca apodrecida.
A paisagem tão cheia de cor e vida havia se tornado puro cinza. Siyeon não se abalava com a cena de destruição, a sensação de plenitude se mantinha ao pensar que agora também era apenas cinzas.
【•••】
Siyeon despertou surpreendentemente calma, seu coração acelerado pelo despertar abrupto contrastava com sua mente, há muito tempo entorpecida pelas noites conturbadas. Ela vinha tendo o mesmo sonho todas as noites, por meses a fio.
Estava chovendo, notou. As gotas de água batiam contra a janela de vidro de seu quarto como se fossem balas disparadas pelo céu. As rajadas de vento pareciam anunciar o fim do mundo.
Que deleite seria despertar para descobrir que nunca mais despertaria de novo. Enfim, estaria livre do pesadelo que lhe atormentava todas as noites. Perdendo apenas para a realidade que lhe atormentava todas as manhãs.
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A vasta escuridão tomava conta do horizonte anunciando o início da noite.
O plano era simples: Dirigir por seis horas sem pausas para visitar seus pais no interior de um estado vizinho. Eles haviam mudado para uma região afastada de tudo após a aposentadoria. Siyeon gostaria de poder fazer o mesmo, ela se imaginava inúmeras vezes largando tudo na cidade para se refugiar na natureza. Infelizmente nunca passava de uma fantasia.
Por ser uma região tão isolada dos centros, mesmo se pegasse um avião teria que percorrer horas do aeroporto até a residência deles. Sendo assim, preferia percorrer um trajeto único. Mesmo que cansativo era a alternativa mais simples, só tinha que seguir o GPS e dirigir. Siyeon gostava da simplicidade.
Ela havia perdido um pouco a noção do tempo, já estava dirigindo pelo que parecia uma eternidade. Uma rápida olhada no visor do celular e constatou que tinha se passado três horas. Seus olhos ardiam e lacrimejavam, tentar manter o foco na estrada mesmo estando morrendo de sono era exaustivo. Siyeon era uma criatura diurna, não funcionava direito de noite. Seu estômago se contraiu de fome, lembrando-a que a última coisa que consumiu fora um pacote pequeno de cookies de baunilha, a única coisa que tinha comido o dia todo.
Ela sabia que deveria parar em algum lugar para recarregar as energias, mas sempre teve um sério problema para perceber seus próprios limites. Se forçava sempre, apenas percebendo que o atingiu quando as consequências de suas atitudes imprudentes se faziam presentes.
A menina tentou ignorar o aperto nas entranhas, focando na música que tocava no rádio.
"Por favor, me sacuda, ache a resposta nesse pesadelo. Por favor, segure minha mão, acenda o fogo para eu acordar."
Seu estômago se contraiu novamente. Os faróis do carro iluminaram uma pessoa que andava pelo encosto da estrada. Não conseguia enxergar seu rosto nitidamente, estava parcialmente coberto por um lenço branco. Mas pelo vestido branco, e a silhueta feminina, conseguiu distinguir ser uma mulher. Ela parecia estar sorrindo, mas assim que a ultrapassou perdeu a certeza do que tinha visto.
Toda vez que Siyeon avistava alguém caminhando pelo acostamento, ela se perguntava como era a vida dessas pessoas. O que as levou a estarem em uma estrada deserta no meio do nada? Como foram parar ali? Às vezes ela indagava se as pessoas que via eram reais ou fantasmas de pessoas que morreram ali.
Sua mente divagou na possibilidade mórbida de virar um desses fantasmas. A morena olhou para baixo, analisando o que estava vestindo. Uma calça de moletom preta e uma blusa felpuda em tom caramelo com um ursinho marrom estampado não era um look muito fantasmagórico, pelo menos não em uma adulta. Será que alguém teria medo de um fantasma com uma blusa de ursinho? Provavelmente não. Ora, ora, não teria sucesso nem na morte. Não servia nem para ser uma assombração.
Nuvens pesadas começaram a tomar conta do céu, para sua tristeza não seria uma noite estrelada. Ela rezava, para qualquer Deus que escutasse, para que não chovesse, não queria ter que parar. Siyeon era uma das poucas exceções que realmente gostava de pegar a estrada. Sua teoria era de que a maioria das pessoas não se incomodava com o trajeto em si, mas sim com o principal problema em ter que dirigir por horas, o tédio. Se estiver sozinho, existe um problema ainda maior, o silêncio. A ausência de sons pode causar efeitos devastadores na mente, pois ele te obriga a pensar. Siyeon não era mais uma vítima do silêncio, não existia mais nenhum pensamento sombrio do abismo de sua mente que já não fosse familiar.
Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você. Ela já havia se acostumado com esse olhar.
Uma placa de madeira foi iluminada pelos faróis e chamou a atenção da garota. "Restaurante Maison - A cinco minutos de distância." Suas mãos apertaram o volante com força, a fome tomando conta de vez.
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Siyeon franziu as sobrancelhas e enfiou as mãos nos bolsos de sua blusa ao descer do carro. Esse lugar era definitivamente centenário. A estrutura era antiga, para se dizer o mínimo, clássica, isso se quisesse amenizar seu estado decadente, pois era totalmente feita de madeira e havia se desgastado pelo tempo. O único sinal de que não estava abandonado era a luz amarelada que irradiava de dentro.
A jovem contemplava a ideia de voltar para seu carro e seguir viagem. Faltavam somente mais três horas até a casa de seus pais, não era como se fosse morrer de fome. Seu estômago discordava, podia sentir o ácido atingir sua boca implorando para que comesse alguma coisa, qualquer coisa.
Siyeon encarou o céu, agora negro, respirou fundo e caminhou até a entrada do restaurante. Ao adentrar se surpreendeu ao constatar que não estava vazio, pelo exterior jurava que só teriam almas penadas ali dentro. Bem, talvez realmente fossem. Era o cenário perfeito para ser assombrado por almas penadas.
Ela varreu o lugar procurando por algum funcionário e avistou um homem atrás de um balcão. Ele vestia um avental impecavelmente limpo por cima de uma regata branca. Seu olhar estava totalmente concentrado no fogão, ele cozinhava o que parecia ser ramen em uma grande panela metálica. Aparentava ser novo, jovem demais para trabalhar em um local tão antigo. Siyeon teorizou que deveria ser algum parente do dono, auxiliando no negócio de anos da família. Sua estatura era pequena, não devia ser muito mais alto do que ela. O cabelo negro quase cobria seus olhos, deveria cortar logo se não quisesse que isso o atrapalhasse na hora de cozinhar. O modo como manejava os ingredientes, cortando-os com precisão, passava a impressão de que tinha experiência na cozinha, apesar de jovem. Suas feições eram delicadas em contraste com a cara de poucos amigos com a qual lhe recebeu.
– O que vai querer? – Sua voz era grave e carregava pressa em seu tom, como se a moça estivesse o incomodando.
– Um prato do que quer que esteja cozinhando. – Ele acenou com a cabeça e voltou sua atenção para a panela.
Siyeon se sentou em uma mesa afastada dos outros. Bem, o mais afastado que era possível, o lugar não era muito grande. Ela pensou em pedir o cardápio, mas duvidava que o restaurante possuísse um. Não tinha problema, ramen era uma boa opção, até quando não estava tão gostoso era satisfatório para seu estômago faminto.
Enquanto aguardava a comida ficar pronta, aproveitou para checar seu celular. Não mexia nele fazia horas. Queria poder dizer que era por motivos de segurança, por estar dirigindo, mas era a mais pura falta de vontade de se comunicar com os outros. Ela se agarrava qualquer desculpa que lhe permitisse alguma forma de isolamento.
Pelas notificações notou que a mãe a havia mandado diversas mensagens para tomar cuidado. A preocupação de seus pais não tinha parado quando atingiu a maioridade. Sabia que a maioria dos jovens se incomodaria com isso, mas era uma das poucas coisas que a fazia se sentir grata. Não saberia como reagir se fosse jogada pra fora do ninho no estado em que se encontrava. Apesar de já ser considerada uma adulta, ainda tomava decisões tão imprudentes quanto quando era uma adolescente. Ela sorriu levemente pelas mensagens, porém não abriu a conversa.
Sempre se sentia mal quando fazia isso, mas no momento estava ignorando a realidade. Era a melhor parte de viajar sozinha, você podia esquecer de tudo por algumas horas e fingir ser outra pessoa. Ou melhor, fingir que nem existia.
– Aqui está! – O jovem cozinheiro colocou o prato de ramen na mesa de madeira. – Mais alguma coisa?
– Não, obrigada! – Respondeu e ele retornou para o balcão.
Siyeon levou a comida até a boca e se surpreendeu com o sabor. Estava esperando algo pior do que aqueles instantâneos baratinhos, mas estava delicioso. Se o cozinheiro tivesse o mínimo de simpatia, ela teria ido lhe elogiar.
Estava focada em quebrar o tofu em pedacinhos quando alguém lhe chamou. A voz parecia de certa forma familiar, mas deveria ser apenas sua mente lhe pregando peças. Quais as chances de encontrar alguém conhecido em uma espelunca no meio do nada?!
– Boa noite!
Siyeon levantou o olhar e se deparou com uma mulher de vestido branco e cabelo tão alaranjado que parecia brilhar como os letreiros neons do centro da cidade em que morava. Ela sorria abertamente, como se fossem amigas de anos. O vestido lhe fez questionar se essa era a mesma pessoa que viu na estrada. Não, seria impossível que tivesse lhe alcançado estando a pé. Sem contar que a mulher da estrada estava indo na direção oposta da sua.
– Me chamo Handong! Posso me sentar com você? – A ruiva não esperou uma resposta e tratou de sentar-se no banco de madeira do outro lado da mesa. – Sabe, sou uma sensitiva. Sinto que sua energia está bem obscura, não gostaria de uma ajudinha com seus problemas?
E é por isso que não se deve parar em lugares no meio do nada, a morena se martirizou por sua decisão. Aparentemente não podia ter paz nem mesmo num lugar esquecido por Deus.
– Olha, só quero terminar minha refeição em paz. Se puder se retirar ficarei agradecida.
– Mas é exatamente isso que quero lhe proporcionar, paz!
– Eu realmente não estou interessada...
– Vem tendo pesadelos, não é?
Siyeon fechou as mãos em punhos. Seu coração disparou com o palpite certeiro, mas ela tentou racionalizar a situação. Todo mundo tinha pesadelos, seria o mesmo que deduzir se alguém sentia tristeza por estar cabisbaixo. O palpite fora um tiro no escuro com o qual qualquer um poderia se identificar, não ia cair no papo de uma charlatã.
– Todo mundo tem pesadelos.
– Isso é verdade! Mas não precisa ter que lidar com eles sozinha quando te colocam numa atmosfera sombria que reflete em sua aura. Tenho a solução perfeita pra você! – Handong sorriu ainda mais e começou a vasculhar a grande bolsa preta que carregava. Ela suspirou de alívio quando encontrou o que procurava e retirou o objeto com cuidado da bolsa, o depositando na mesa.
Se tratava de um cristal levemente rosado, envolto por outro cristal transparente e arredondado. Parecia muito com um globo de neve.
– Um cristal? – Siyeon indagou.
– Ele é ótimo para problemas com sonhos!
– Não preciso disso. – Recusou, voltando a atenção para seu prato numa tentativa de mostrar seu desinteresse para a estranha.
Handong segurou a mão de Siyeon que estava sob a mesa, fazendo-a se assustar pelo contato inesperado. A pele da mão de Handong era coberta por uma grande queimadura.
– O que você sonha em conquistar, Siyeon? – O semblante da ruiva mudou de repente. Seu sorriso vibrante se transformou em algo inexpressivo.
De repente, as madeixas laranjas da desconhecida lhe recordaram labaredas, as mesmas que eram presentes em seus pesadelos. Ali estava a exata pergunta que lhe atormentava todas as noites.
Não, isso era uma coincidência. Tinha que ser.
– Quer saber, não vou nem te cobrar por isso. Uma alma conturbada como a sua merece um pouco de gentileza!
Handong voltou a sorrir antes de levantar-se e sair do restaurante. O encontro foi tão breve que fora como se tudo não tivesse passado de uma alucinação. A única prova de que não estava louca e tinha imaginado tudo era o cristal posto à sua frente. A fome arrebatadora de momentos atrás sumiu por completo, mesmo não tendo comido nem metade da comida, dando espaço a uma náusea que tomou seu corpo. Siyeon empurrou o prato pro lado, não conseguiria continuar comendo depois disso.
– Não vai mais comer? Não está bom? – O jovem cozinheiro apareceu do seu lado com os braços cruzados.
– Não, está ótimo! Só fiquei enjoada de repente. – A morena tirou algumas notas da carteira, deixando uma boa gorjeta por não ter terminado a comida. Ela agradeceu se curvando e dirigiu-se rumo a saída.
– Eu não levaria isso se fosse você. – O jovem falou em um tom baixo, alto suficiente apenas para ela escutar.
Siyeon nem percebeu que tinha pegado o cristal. O objeto machucava a palma de sua mão de tão forte que o segurava.
– Aquela cobra não é confiável! – Ele falou despejando seu próprio veneno no xingamento.
– Você a conhece?
– Handong é conhecida aqui na região. Ela é uma bruxa, vive fazendo acordos traiçoeiros com os viajantes ou moradores desesperados o suficiente para ignorarem sua reputação.
– Bruxas não existem, garoto! – Siyeon soltou uma risadinha. O medo que sentia se dissipou, não acreditava que quase tinha caído na ladainha de uma charlatã do interior.
– Todos pensam isso até se deparar com uma. – Disse descruzando os braços. – Enfim, confie em mim e jogue isso fora. – Ele pegou o dinheiro e o prato da mesa. – Valeu pela gorjeta!
O cozinheiro sumiu por uma portinha atrás do balcão e ela seguiu para a saída.
O céu parecia ter piorado, com certeza iria começar a chover a qualquer momento. Siyeon avistou uma lixeira do lado de fora do estabelecimento, perto de onde tinha estacionado. Ela pensou em seguir o conselho que recebeu, mas não o fez. Ao invés disso, guardou o cristal no bolso da blusa e entrou no carro.
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O mundo estava acabando.
Pelo menos essa era a impressão que a tempestade torrencial passava. Cubinhos de granizo batiam forte contra a lataria do veículo, o vento uivava como se fossem gritos e a estrada estava escorregadia como uma pista de patinação.
Siyeon sabia que acabaria batendo o carro se continuasse dirigindo, mas algo dentro dela a impedia de parar. A ideia de uma morte acidental lhe agradava. Ela poderia se livrar do vazio de sua existência sem sofrer as consequências por isso. Seus pais não se culpariam por não ter conseguido ajudar a filha deprimida. Não queimaria no fogo do inferno por cometer o pecado de tirar a própria vida, caso o pós vida fosse real. Ela estaria apenas aceitando que sua hora tinha chegado, simples assim. Era apenas a vida seguindo o ciclo inevitável da natureza. A única real consequência seria sua morte, mas no momento ela não considerava isso como algo negativo.
Os trovões frequentes pareciam uma orquestra tocando e ecoando nos vastos campos de escuridão da estrada. Siyeon deveria parar o carro. Ela seria um fantasma engraçado, ninguém se assustaria com a sua presença e sua blusa felpuda de ursinho. A menina tocou a roupa para sentir o tecido confortável e macio que tanto gostava uma última vez. Ela foi lentamente afrouxando as mãos do volante e fechando seus olhos. O mundo estava mesmo acabando, o mundo em que existia.
Siyeon foi abruptamente retirada de seu transe suicida quando sentiu a bola de cristal esquentar e queimar sua mão através do pano da blusa. Era como se tivesse tocado numa panela quente, sua pele ardeu instantaneamente. Enquanto estava confusa tentando processar o que tinha acabado de acontecer, uma placa de metal entrou em seu campo de visão. Por algum milagre ela conseguiu meter o pé no freio, parando o automóvel a milímetros de colidir com a placa.
A placa metálica dizia: "Motel Red Sun".
Siyeon avistou a luz vermelho néon do letreiro através do para-brisa, que estava a poucos metros de distância do motel. Com dificuldade, ela conseguia distinguir a grande estrutura do lugar em meio a chuva. Sua visão do estabelecimento era borrada e distorcida por tanta água que caía do céu.
Seria isso um sinal divino? A morena geralmente não acreditava nessas coisas, mas a coincidência de surgir um motel do nada enquanto contemplava parar para esperar a chuva passar era demais pra ignorar. Apesar de que, se parasse para pensar, dormir em um motel afastado da civilização também não tinha nada de seguro. Era o lugar perfeito para se refugiar de algo ou de alguém e ninguém fugia de coisas boas. Certamente deveria ter apenas esquisitos hospedados ali, mas Siyeon não podia julgar muito, afinal ela mesma era uma fugitiva. Fugia da vida desde que se lembrava por gente.
Além disso, havia uma grande possibilidade de algum esquisito decidir aleatoriamente lhe assassinar em seu quarto. Isso também devia contar como uma morte acidental, certo?
Siyeon parou no estacionamento e desligou o carro.
【•••】
Siyeon fechou o guarda-chuva transparente ao chegar na entrada do local. O objeto não foi de muita ajuda, mesmo tendo corrido até lá a chuva forte não lhe deu trégua. A sensação de ter os sapatos ensopados era extremamente desagradável.
Com uma breve análise, notou que o lugar estava em melhor condição do que tinha imaginado ao observá-lo de longe. Definitivamente mais novo e bem cuidado do que aquele restaurante.
Ela abriu a porta de vidro, fazendo um sininho tocar e anunciar sua presença. Um senhor que estava lendo o jornal e tomando uma xícara de café parou o que estava fazendo para lhe encarar.
– Um quarto para a noite? – Ele perguntou já se dirigindo para pegar uma das chaves penduradas na parede. Ela notou que não tinha nenhum espaço vazio ali. Deveria ser a primeira cliente da noite, provavelmente a primeira cliente a aparecer há tempos.
– Isso mesmo!
O senhor lhe entregou a chave e recitou as regras. Sem barulhos, o que quebrasse teria que pagar e sem interações com os quartos vizinhos. Ou seja, era para agir como se nem estivesse lá. Para a sorte de Siyeon, ela era ótima em fingir que não existia. A menina pagou o valor pedido, agradeceu e se retirou.
Seu quarto era o último de um longo corredor branco. A chave girava com dificuldade na fechadura, mas com um pouco de insistência a porta abriu. O cômodo era um mar de bege e poeira. Alguém definitivamente tinha sido assassinado lá dentro, uma grande mancha presente no carpete sustentava essa teoria. Siyeon tirou os sapatos molhados e se jogou na cama, ignorando o fato de que os lençóis tinham um leve cheiro de mofo.
Aquele senhor deveria ser o único funcionário do motel e por certo não se preocupava com a limpeza do estabelecimento. Apesar das condições não serem exatamente boas, ela tinha parado para descansar e faria exatamente isso. Seu corpo estava dolorido de ficar sentada na mesma posição por tantas horas.
Ela fechou os olhos apenas para descansar a vista, porém acabou apagando em questão de segundos.
【•••】
Siyeon encontrava-se em um magnífico jardim, resplandecido pela luz da grande estrela.
Estava tendo o mesmo sonho de sempre, porém tinha algo diferente dessa vez. A ruiva que encontrara no restaurante estava perto do lago, encarando o próprio reflexo como Siyeon fazia todas as noites.
– O que você sonha em conquistar, Siyeon? – A voz que era sempre impossível de distinguir agora pertencia a Handong.
– Eu não tenho nenhum sonho. – Respondeu, sem saber se o fez por estar seguindo o roteiro do sonho ou por não conseguir formular uma resposta diferente.
– Todos precisam de um sonho! Algo que os incendeie com paixão. – A voz da ruiva era doce, mas seu semblante era amargo.
Siyeon aproximou-se do lago conforme as chamas tomavam conta do jardim.
– Então você realmente é uma bruxa? É a responsável pelos pesadelos que ando tendo?
– Não, minha cara, você é a única responsável por sua própria tragédia. – A bruxa disse sorrindo. – Estou aqui para te ajudar. Não é por isso que guardou o cristal, para que eu lhe ajudasse?
A bola com o cristal rosado surgiu em uma das mãos de Siyeon.
– O que você sonha em conquistar, Siyeon? – Ela repetiu.
– Eu sonho em ter um sonho. Eu quero existir.
– Muito bem! – A bruxa de madeixas alaranjadas segurou na mão livre da morena. – A solução é simples! Você precisa roubar o sonho de outra pessoa.
– Como assim? – Siyeon perguntou confusa.
– É só dar esse cristal para uma pessoa com quem queira trocar de vida. A pessoa ficara presa em seu pesadelo e, em troca, você terá o sonho dela.
– Mas isso é errado, não é?! – Siyeon perguntou, questionando a moralidade disso. Não sabia se seria capaz de colocar alguém em seu lugar. Seu inferno pessoal era algo que não desejaria nem para seu pior inimigo.
– Pessoas sem sonhos não tem propósitos. Sem um propósito você nunca vai realmente existir. – Handong segurou o rosto da menina delicadamente e o virou para encarar a água. – Olhe, você é vazia. Oca. Como uma árvore cujo cerne apodreceu.
O rosto de Siyeon não refletia na água. Não havia mais uma boca para se expressar, um nariz para experimentar aromas ou olhos para admirar as belezas do mundo.
– Sonhos são algo pelo qual vale a pena vender sua alma, Siyeon. – A ruiva sussurrou em seu ouvido antes de desaparecer.
O vestido branco de Siyeon começou a ser consumido pelas chamas, as labaredas logo alcançaram sua pele. Porém, diferente das outras vezes, ela sentia toda a dor causada pelo fogo queimando seu corpo.
☽⋆゜
Uma pancada na porta do quarto do motel fez Siyeon despertar subitamente.
– Ei! Não disse que fazer barulho era proibido?! Pare de gritar! – O senhor disse do lado de fora.
Ela escutou os passos dele se afastando da porta. Estava tão perturbada com o pesadelo que nem teve tempo de criticar o comportamento do homem. Ele nem se importou com o porquê de ela estar gritando, apenas que o barulho era incômodo.
Siyeon ainda sentia estar em chamas devido ao sonho lúcido, a dor ainda estava mais do que vivida em sua mente. No desespero, ela correu para o banheiro e entrou no chuveiro de roupa e tudo. Colocou no modo frio, sentindo a água gelada bater contra seu rosto. Depois de um tempo acalmando os nervos embaixo da água, ela desligou o chuveiro, respirando profundamente enquanto tentava voltar pra realidade.
Ao sair do boxe, notou um velho espelho pendurado na parede em cima da pia. Ao passar pelo objeto, seu coração pareceu parar de bater por completo.
Nada refletia no vidro. Era como se ela não estivesse lá.
E pela primeira vez em sua vida, Siyeon se desesperou com a ideia de não existir.
☽⋆゜
Kim Minji colocou as mãos na cintura enquanto observava o capô do carro emitindo fumaça.
Ao menos não estava mais chovendo, o céu azulado e o tempo ensolarado eram seu único consolo ao observar seu carro, que havia acabado de quebrar.
A loira queria apenas comprar algumas cerejas de produtores locais para levar para sua família, sua filha amava as pequenas bolinhas vermelhas. Seriam também presentes para seu marido que se matava de trabalhar no restaurante da família, ele merecia algo doce para alegrar a rotina cansativa.
Quando estava prestes a ligar pra ele, para pedir auxílio, um carro surgiu e estacionou atrás do seu. Uma moça de cabelos negros desceu do veículo, a blusa felpuda de ursinho que vestia fez Minji abaixar a guarda. Era impossível se sentir intimidada por alguém vestindo algo tão adorável. Ela suspirou aliviada, os céus haviam enviado alguém para lhe ajudar.
– Bom dia! – A desconhecida cumprimentou se aproximando. – Sou Siyeon, Lee Siyeon. Precisa de ajuda com o carro? Eu entendo de uma coisinha ou outra.
– Ficaria muito grata se pudesse me ajudar! – A loira disse colocando uma mão no peito. – Ah, me chamo Minji!
– Vou dar uma olhada, Minji, vamos ver o que posso fazer!
A moça sorriu abertamente, que sorte Minji tinha tido.
– Que apanhador de sonhos fofo! – Siyeon comentou, observando o objeto pendurado no carro.
– Obrigada! Adoro essas coisas místicas, acredito muito no poder delas.
– É mesmo?! Então acho que tenho algo que você irá gostar.
– Também se interessa pelo místico? – A loira comentou surpresa. Era tão raro encontrar alguém de mente aberta no interior, será que tinha acabado de fazer uma nova amiga?
Siyeon voltou para seu carro para pegar o objeto que tinha mencionado. Em suas mãos estava o que parecia ser um globo de neve com um cristal rosado dentro.
– Me diga Minji, o que você sonha em conquistar?
☽⋆゜
❝A vida era um inferno, ela sabia. Contudo, seu sorriso deixava entrever que ela tinha queimado tudo isso dentro dela. Seu sorriso tinha uma ponta de superioridade: nós não teríamos tido aquela coragem de nos queimar por dentro; e isso ela também compreendia.❞ — Garota Interrompida.
𝔢𝔰𝔠𝔯𝔦𝔱𝔬 𝔭𝔬𝔯: rkbunny
𝔦𝔫𝔰𝔭𝔦𝔯𝔞𝔡𝔬 𝔢𝔪: What
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