Capítulo 8 - As escadas da vida
Lunna não era exatamente uma trabalhadora temporária... Fazia bicos para viver, e preferia se autointitular "trabalhadora informal". Achava que assim ficaria mais bonito no currículo.
Procurava não se desesperar diante da carteira de trabalho em branco. Além do mais, com a reforma trabalhista, pouca gente via vantagem em se matar de trabalhar para se aposentar só quando estivesse com o pé na cova. Para quê sustentar uma Previdência que retornava tão pouco do que o trabalhador lhe entregava? Sem garantia de remuneração ou assistência de saúde, num momento de necessidade... O trabalhador apodrecia na fila do SUS ou pagava por fora. Nem via a cor da sua suada contribuição.
O dinheiro era roubado na cara dura! Sustentava as festas e orgias dos políticos que Lunna já viu por aí, com os próprios olhos. (Teve um tempo em que trabalhou de garçonete em um restaurante que ficava ao lado de um salão de festas. O espaço costumava ser alugado com frequência pela corja de políticos locais. Seu coração doía só de se lembrar dos abusos que presenciou do outro lado da mureta...).
Pelo menos não era a sua contribuição como trabalhadora que estava sustentando tanto disparate. O dinheiro que recebia era pouco, mas ficava todo para ela.
As pessoas com carteira assinada pagavam mensalmente para ter uma velhice garantida. Mas pagavam à toa. O dinheiro era embolsado pelos sanguessugas. E os jovens estavam aprendendo que lucravam bem mais vendendo drogas do que trabalhando honestamente.
Quando pensava em sua vida de trabalhadora informal e temporária – temporária, mas honesta –, Lunna se sentia menos pior diante da situação de muitas crianças e adolescentes que são recrutados pelas organizações criminosas, acenando–lhes com dinheiro fácil. Pelo menos, Lunna conseguiu chegar até a fase adulta e se manter, sem descambar para o lado negro da força.
Muita criança sequer tinha escolha. Nascia em situação de vulnerabilidade e acabava ou no tráfico, ou na prostituição. E dos dois jeitos, acabava na cadeia.
Os pais falecidos fizeram questão de educar as duas filhas com princípios morais muito rígidos e, por outro lado, incentivaram–nas a serem criativas. A irmã, Astrid, era a sua maior heroína. Vivia com pouco e administrava um refúgio para animais resgatados usando de muita criatividade.
A ligação de Lunna com os animais sempre foi positiva... Mas, desde os grandes resgates que sua irmã orquestrava na infância (e para os quais costumava arrastá–la), tudo o que Lunna fazia na cidade, relacionado aos bichos, era passear com os cães para os tutores endinheirados. Especialmente aqueles que moravam no centro, entre a Avenida Cintra com a Rua Dutra.
Os dois logradouros eram tradicionais e formavam a zona dos condomínios Vips; e os pets dos condomínios Vips, por sua vez, rendiam uma boa parte de sua remuneração. Mas não foi fácil e nem aconteceu assim, de cara.
Lunna tentou compensar o problema da carteira em branco investindo no compromisso. Muito respeito, dedicação e jamais se esquecer da simpatia. Assim, tornou–se a pessoa de confiança para levar os cães ao passeio, às consultas com o veterinário, e até mesmo às sessões de beleza.
A conquista da confiança gerou outros trabalhos nas redondezas, tais como ajudar no consultório do dentista local, quando a recepcionista não dá conta da demanda; ajudar na limpeza de alguns estabelecimentos; lavar os pratos do restaurante da esquina, quando estão acumulados e não há tempo para os funcionários fazerem o serviço; bancar a ajudante de garçonete, quando o movimento é muito grande; e no final de semana, ela ainda vendia cacarecos na praia, para ajudar alguns autônomos idosos, que não conseguiam mais ficar andando de um lado a outro com os varais de roupa pendurados nos ombros. Ela também vendia lanches para os turistas, feitos e embalados pelas lanchonetes e quiosques que queriam alcançar o cliente na areia da praia.
Claro que com a pandemia tudo ficou bem mais difícil... Mas ela ainda conseguia um bico aqui e outro ali, por ser uma pessoa confiável. E jamais se deixou cair na clandestinidade, vendendo pirataria, carregando drogas ou se prostituindo.
Entretanto, ela não criticava os trabalhadores informais que o faziam. Viver no Brasil não era nada fácil. Era para os fortes. E os piores bandidos estavam nos postos chaves da cadeia de comando do país.
–––
O problema surgiu que ela resolveu aceitar o trabalho de pintar paredes. Sabia fazê–lo, pois aprendeu com a irmã "faz–tudo". A escada, porém, estava mal posicionada e acabou caindo... Resultado? Lunna quebrou o braço. O ganha–pão se baseava na força de trabalho; em suas mãos e braços. Agora, como faria para continuar trabalhando? Como não perder a clientela? Como preservar o braço na tipoia e garantir que os ossos se solidificassem adequadamente?
Astrid teve duas reações, quando Lunna ligou pedindo ajuda: "Todo mundo anda se quebrando ao meu redor", foi a primeira. Ao que parece, o veterinário que atendia o santuário tinha quebrado o braço ou a perna. A segunda reação da irmã foi: "Vamos dar um jeito, você vem para cá cuidar da lojinha do Santuário".
Lunna reclamou, dizendo que ela não iria ganhar dinheiro atuando como voluntária. "Pelo menos terá comida e teto sobre a sua cabeça", argumentou sabiamente a irmã.
Como sempre, Astrid estava com a razão. Mas, daí, Lunna contra–argumentou que não tinha dinheiro para viajar. Como se locomover para o interior, sem dinheiro? Ao que Astrid ponderou, antes de bater o martelo: "Fica pronta, que assim que eu resolver esse problema, você vem".
Mais pronta, impossível! A quitinete estava limpa – de comida, principalmente. Ela já não tinha mais nada na despensa. E logo logo a senhoria viria cobrar o aluguel... Lunna só podia deixar uma carta, dizendo que mandaria o dinheiro desse último mês quando pudesse. E iria sair pela escada de incêndio (rezando para não se esborrachar por causa do braço na tipoia).
Por causa da "senhoria perdigueira" e do vizinho tarado/assediador, Lunna andava passando mais tempo dentro da quitinete, do que fora. Quando saía, era pela escada de incêndio... Só para subir e ficar lá no terraço do prédio, tomando um pouco de ar. Uma forma de aliviar o calor que passava no cubículo abafado. Às vezes, no meio do caminho, passava no cubículo de Naya, que trabalhava como prostituta à noite. Também passava pelo cubículo de Dona Zilda, que tinha 80 anos e vivia só, no segundo andar.
As escadas de incêndio tinham suas vantagens. Ela podia visitar todo mundo sem ter que cruzar com a senhoria ou com o vizinho tarado. Às vezes dormia lá no terraço, olhando as estrelas. Mas agora, com o braço na tipoia, era um risco.
Uma tipoia meio torta e que já estava rachando, porque ela teve que fazê–la num posto de saúde, depois de muito implorar ajuda do dono da parede que ela ia pintar. Como o dono da parede em questão trabalhava num posto de Saúde, ela conseguiu ser atendida rapidamente para examinar o braço e fazer o gesso.
A parte do gesso, porém, foi outra novela... Ela teve a sorte de se jogar na frente de um médico, em lágrimas. E por ser bonita, o homem acabou ajudando–a. Ela fingiu não entender os avanços posteriores e se mandou com sua tipoia nova. Como diz sua irmã: "o mundo é uma selva, meu bem!"
Uma selva ainda pior para uma mulher sozinha.
Com o aumento do feminicídio e da violência contra as mulheres, estas ficam cada vez mais vulneráveis a homens valentões, que não as respeitam. Lunna vinha sofrendo um assédio crescente do cara que alugou a quitinete ao lado. Ele achava que por ela estar sozinha, deveria estar disposta a receber as atenções de qualquer um. Perseguiu–a, tentou entrar à força na sua moradia...
Ela estava conseguindo mantê–lo à distância, lançando mão de manobras evasivas. Mas, tornava–se cada vez mais difícil a convivência no prédio. E agora, com o braço quebrado, ela tinha que se manter alerta. As escadas de incêndio a ajudavam nesse sentido também... Quando sabia que ele não estava no próprio apartamento, ela ia e voltava rapidinho e mantinha a sua janela muito bem trancada!
–––
Lunna escutou Pepita latindo lá embaixo, no beco. Era uma cadela de rua que ela alimentava, desde que começou a trabalhar no restaurante da esquina. A cadela acabou seguindo Lunna e fazendo do beco a sua moradia. Primeiro, ela achou que Pepita desistiria. Mas com o passar do tempo, percebeu que a filhote tinha lhe dedicado toda a sua devoção. Lunna arrumou alguns panos e um pote de sorvete vazio, para colocar água. Juntou duas telhas grandes para lhe dar uma certa proteção contra o clima e o tempo.
Nessas horas, ela lamentava ser uma temporária sem eira nem beira. Gostaria de ter uma casa para onde levar Pepita. Ao ouvir os latidos, Lunna abriu a janela e apareceu para a cadelinha – que saltitava de felicidade.
– Já estou descendo – disse Lunna, desejando ardentemente que a cachorrinha não fizesse um escândalo.
Pegou o sachê de Pedigree, encheu uma cumbuca com ração e uma garrafinha com água e abriu a janela. Desceu as escadas com cuidado e sem fazer barulho. Demorou um pouco mais do que o costume, por causa do braço. Foi recebida por uma Pepita festeira e seu coração magoado ficou um pouco menos ferido, diante dessa recepção. Lunna caminhou com Pepita para o fundo do beco, ajeitou os panos e as telhas, trocou a água do pote, colocou a ração e misturou o Pedigree no outro pote vazio. A cachorrinha comeu rapidamente. Estava faminta.
–Pois é, querida... Não sei até quando terei comida para te dar...
Ela agradou Pepita, brincou com ela, então começou o lento processo de subir para a quitinete, pelas escadas de incêndio. Qual não foi o susto ao dar de cara com o seu assediador, o vizinho tarado, debruçado na própria janela.
E sem máscara.
– Olá, bonita... Andou sumida. – Aquela cara que ele acabou de fazer era para ser sensual? Lunna sentiu asco, enquanto ele prosseguia: – Agora eu sei porquê... Está saindo pelas escadas de incêndio, é?
Lunna não quis olhar para a própria janela, que estava aberta. Apenas assumiu uma postura destemida e respondeu: – Não é da sua conta!
– Ora... A lindinha morde! – Ele debochou, imperturbável. – Que tal subir até aqui e me mostrar os seus dentinhos, querida?
Ela voltou a se mexer, só que no sentido contrário.
– Acho que alguém anda mantendo um cão de rua nos arredores do prédio – ele ergueu a voz, enquanto ela descia de volta para o beco. – Alguém precisa chamar a carrocinha da prefeitura. – Ele colocou o celular na orelha.
Um momento de distração. O sujeito entrou e fechou a própria janela.
Lunna entrou no "modo alta velocidade". Subiu as escadas rapidamente e entrou em sua quitinete. Juntou as coisas, colocou em sacos e em duas mochilonas velhas, e passou tudo pela janela. Deixou uma carta para a senhoria e destrancou a porta, deixando–a encostada.
Desceu as escadas novamente, agora empurrando a bagagem e carregando os sacos com uma mão só. O seu vizinho tarado não foi rápido o suficiente para entender o que estava acontecendo. Quando ele abriu a janela de novo, ela já estava lá embaixo, recolhendo as mochilonas. Lunna levantou a cabeça e lhe mostrou o dedo do meio. Desajeitada por causa das sacolas, bateu na coxa para incitar Pepita a se mover com ela.
–––
Lunna sabia onde iria ficar. Era o plano B, até que conseguisse resolver sua vida. Ela deu a volta no quarteirão, e entrou num outro beco, onde havia um prédio com porão. Uma das janelas estava quebrada, assim, ela colocou a cachorrinha, depois as mochilonas, as sacolas, a bolsa – e ela própria desceu pisando nos caixotes que sabia estarem ali à sua espera.
Você não se torna um trabalhador informal, sem mapear a região. Assim, tem o plano A, o plano B e o plano C (popularmente conhecido como plano "Deus me Acuda"). Já tinha investigado a área e sabia que conseguiria acessar o Wifi do prédio. Contudo, aquele era o plano B. Nunca se executa um plano B, a não ser que esteja desesperado. Pois bem...
Quem sabe conseguisse falar com Naya para pedir ajuda. A amiga nunca deixaria de ajudá–la.
Naya era uma dessas boas almas que acabou vendo o lado ruim da vida, cedo demais. E mesmo assim, não deixou que a sujeira se colasse, por assim dizer. Naya jamais negaria um prato de comida a quem precisasse. O problema é que quando sacou o celular para falar com ela, percebeu que estava sem bateria.
– Que droga! – Lágrimas surgiram em seus olhos. Sem dinheiro, sem bateria, sem conseguir avisar ninguém onde estava...
Só sabia que lá, na quitinete, ela não podia mais ficar. Se não fosse a senhoria dando um jeito de expulsá–la, seria aquele cara nojento usando as escadas de incêndio para entrar no seu quarto pela janela. Bastava pôr o pé para quebrar o vidro. Lunna não tinha segurança alguma. Ainda mais com um braço quebrado.
Em pensar que ela achou aquelas escadas "maneiras"... Até descobrir que outras criaturas perigosas poderiam usá–las também.
Lunna caminhou aos tropeções até a porta e acendeu a luz do porão. O lugar era usado como depósito de quinquilharias inúteis. Estava abarrotada de caixas, ferramentas e até alguns materiais de construção. Dava para notar que ninguém ia lá faz tempo... A poeira se acumulava sobre o topo dos objetos; o chão escuro mal disfarçava a sujeira. Olhou ao redor e começou a arrumar os caixotes para ter uma estadia minimamente confortável e protegida de olhares curiosos.
Pepita não latiu nem uma vez – talvez sabendo da necessidade de silêncio, ou, estava feliz demais em ter a companhia da tutora que ela adotou. Nesse sentido, tudo era uma festa para a coitadinha.
Assim que terminou de improvisar uma cama e de guardar suas coisas, Lunna desligou o rabicho de luz para não chamar a atenção do lado de fora... Sentou–se sobre a cama, no chão, e Pepita correu para se deitar ao seu lado.
– Vamos rezar por um milagre, Pepita – murmurou Lunna, fazendo um carinho na cabeça da cachorrinha.
– Au, au!
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