Capítulo 11 - Resgate da irmã falida
Não custava a Afonso desviar um pouco da rota para pegar a irmã de Astrid. Gostava muito dela, da causa pela qual lutava, e via em Astrid uma grande amiga. Talvez, uma de suas melhores amigas.
A mãe sonhava, ansiava por um casamento entre os dois. Afonso podia apostar que já tinha até sugestões de nomes para os futuros/fictícios netos.
Acontece que nem ele, nem Astrid estavam interessados em se amarrar. Dona Edwiges não queria entender uma coisa tão simples.
Suspirando, Afonso tamborilou os dedos no volante, armando–se de paciência para enfrentar o trânsito na entrada da cidade. O celular apoiado no carregador estava com o GPS ligado. Ele desistiu de tentar telefonar para Lunna e decidiu achar sozinho o endereço.
Uma hora depois e a paciência já tinha quase se esgotado. O calor estava sufocando–o e ele sentia ainda mais por causa da máscara. Olhou ao redor e viu gente sem máscara dentro dos carros. Olhavam para ele como se fosse uma aberração. Um rapaz riu e apontou o dedo. Afonso mostrou o dedo do meio. O cara se assustou e desviou o olhar.
Ótimo.
Finalmente, o trânsito começou a fluir. Ele virou à direita e depois, a esquerda, pegando as ruas vazias da periferia. Parecia ser um bairro antigo, com prédios sólidos e seculares. As árvores proporcionavam sombra aos carros estacionados. Ele parou, e foi atrás do número duzentos e dois.
O referido endereço estava situado no meio do quarteirão. Logo se revelou um cortiço. Como aqueles prédios abandonados que os moradores de rua se apropriavam para viver. A estrutura era antiga e solene, mas a improvisação em seu interior revelava um muquifo mal cheiroso... Ele entrou e foi seguindo na direção do elevador, que estava quebrado. Naturalmente.
–Ei, ei, o que quer aqui? – indagou uma senhora, vindo correndo de uma das portas do térreo.
– Estou procurando uma moça chamada Lunna Rodrigues.
– Ah, a biscateira fugiu sem pagar.
Afonso ficou olhando para ela.
– Como assim, fugiu?
–Ela não pagou o último mês e se mandou, deixando uma carta dizendo que pagaria quando pudesse.
– Tem alguém que conheça ela, alguém que possa me dar alguma informação?
– Depende... – A velha lhe lançou um olhar calculista. – Você vai pagar a conta que ela deixou?
– Depois de conversar com alguém, quem sabe... Caso contrário, darei queixa a polícia de pessoa desaparecida e que a senhora está se negando a dar informações.
Ela fez uma careta, um pouco assustada.
– Lunna era amiga da Naya, uma garota de programa – Apontou para as escadas, com mórbida satisfação. – No oitavo andar. E também da Zilda, uma velha coroca que mora no segundo andar.
– Alguma delas está em casa?
– Não sei. Não sou babá delas.
– Qual o número dos apartamentos?
– E o que eu ganho com isso?
Ele se virou e lhe lançou um olhar tão penetrante, que a mulher prontamente forneceu os números dos apartamentos.
–Acho que não adianta você ir lá em cima. – A mulher falou, com satisfação. – Zilda está no hospital, fazendo exames, e Naya também não está em casa...
– A senhora acabou de dizer que não era babá delas... Deixa para lá. Sabe onde encontro qualquer uma? – ele olhou ostensivamente para o relógio de pulso.
– Não sei qual o hospital, nem a que horas a Zilda volta. Quanto à Naya, só sei que ela faz bico no Katmandu, quando não está abrindo as pernas por aí.
Afonso quase fez uma careta diante da vulgaridade da mulher a sua frente.
Pensativo, ele imaginou que Katmandu fosse o nome de um bar, ou de uma boate. Deu meia–volta, pronto para colocar o nome no Google Maps. Mas, primeiro, bateria nas portas, pois não confiava na palavra daquela mulher.
– E quanto ao aluguel? – A mulher indagou em voz alta. Ela não pareceu se importar de vê–lo subir as escadas. Mesmo que fosse um gesto óbvio de que não confiava nela.
–Veremos. – Ele respondeu, sem lhe dar mais bola. Subiu as escadas e encontrou o primeiro dos apartamentos, o de Zilda. Bateu na porta e esperou. Ninguém atendeu.
Subiu até o oitavo sem dificuldades, pois estava em forma, e bateu de novo. Esperou. Ninguém atendeu. Desceu as escadas, decidido a procurar o tal Katmandu.
–––
A música alta explodiu nos ouvidos desacostumados de Afonso, tão logo passou pelas portas escuras da boate. As luzes caleidoscópicas piscavam no compasso da música. As pessoas se aglomeravam na pista de dança. Tudo ilegal, do seu ponto de vista. Sem máscara, sem higiene; um tremendo aglomerado.
Dando de ombros, ele higienizou as mãos, ajeitou a máscara preta a la Bane, e circulou por entre as mesas, em busca de alguém que pudesse lhe dar atenção.
As garçonetes passavam rápido demais. Pareciam lambaris escorregadios driblando as mesas. Ele avistou o balcão do bar e achou por bem ir até lá. A bartender enchia os copos com eficiência. Lançou lhe um olhar de esguelha, assim que Afonso alcançou o balcão.
–O que deseja beber?
–Na verdade, eu desejo uma informação. Estou procurando Naya.
A bartender, cujo crachá dizia se chamar Gil, não respondeu de imediato.
– O que quer com ela?
– Temos uma amiga em comum, cuja irmã me mandou procurá–la.
A mulher lhe lançou um olhar alerta, como se o avaliasse rapidamente. "Olhos de raio X", ele pensou, por um instante. Algo nele deve ter lhe inspirado confiança, porque ela resolveu falar:
– A moça que procura é a que está chegando com a bandeja vazia – apontou com o queixo.
Ele se virou a tempo de ver Naya colocando a bandeja no balcão. Seus olhos se encontraram. Ela o avaliou, sentindo que havia alguma coisa no ar. Gil tratou de esclarecer.
– O moço está querendo falar com você.
Naya cruzou os braços, cobrindo o decote, como que para se proteger. – O que você quer comigo?
Afonso ofereceu seu sorriso mais charmoso, mas não funcionou. Achou melhor ir direto ao assunto.
– Sou amigo de Astrid, a irmã de Lunna. Ela me pediu para vir buscá–la, mas não está no endereço que forneceu à irmã.
Naya balançou a cabeça, compreendendo.
– Isso porque ela teve que se esconder de um assediador safado que mora ao lado da quitinete dela.
Afonso ficou alerta. A história ficava cada vez mais interessante. – Assediador?
– Sim... Eu não sei exatamente onde ela está morando. Mas sei que ainda está fazendo uns bicos por aí... O que consegue fazer, porque está com o braço quebrado. Tá com tipoia e tudo.
– Não entendo porque não contou à irmã?
–Acho que ela contou – Naya franziu o cenho.
– Não, eu quis dizer que não sei porque ela não contou do assediador. – Ele comentou, vistoriando as belas pernas da moça. – Astrid sabe do braço quebrado, por isso quer levar a irmã para a fazenda.
Ele desviou os olhos das pernas dela e contemplou a pista de dança lotada.
– O problema foi que o celular dela ficou sem bateria. – Comentou Naya, dando sem querer a explicação para as ligações perdidas.
Ele voltou a encarar a moça.
– E você pode me indicar o lugar onde ela está agora?
– Posso fazer mais que isso, se você tiver paciência de esperar o meu turno acabar, eu levo você até lá.
Então ela sabia exatamente aonde Lunna estava. Se há uma coisa que ele não gosta é de mentiras. Ainda mais mentiras que o levam a perder tempo.
– E então? – Ela o encarou.
Afonso refletiu por um momento. O que seria um atraso de mais algumas horas? Já tinha perdido o dia todo mesmo. Acabaria por se hospedar em algum hotel e pegaria a estrada no dia seguinte.
– Enquanto espero, pode me ver um drinque? – ele pediu à bartender, enquanto Naya colocava os copos cheios na bandeja e se afastava para atender às mesas. E pensar que a velha do muquifo disse que Naya era garota de programa. Coitada, era apenas uma garçonete.
– E o que vai querer? – Indagou a bartender.
– Me surpreenda – ele respondeu, cansado.
–Tudo bem – ela deu um sorrisinho misterioso e começou a montar o drinque da casa.
Afonso se pôs a observar o movimento das garçonetes. Principalmente Naya. De repente, um cara sentado ao lado dele se inclinou e disse: – Lindas, né?
Afonso o ignorou.
– Pelo preço certo, você pode ter qualquer uma. Inclusive aquela com quem estava conversando. Uma tremenda tigresa na cama.
Afonso avaliou o sujeito. Comportava–se como cafetão.
– Elas se prostituem – concluiu em voz alta.
–Bingo. garoto do mato! – O cara estava se divertindo com aquela conversa. – Mas o programa não tem nada a ver com a direção do Katmandu. É por fora, entende? Só tem que me dizer qual você quer. Você me paga e eu descolo a garota e o lugar.
– Entendo. Valeu a dica – Afonso disse, com desprazer.
O cara entendeu que devia se calar. Mas não se afastou. Quando Naya voltou, Afonso reparou que ela vacilou um passo ao ver quem era a pessoa ao lado dele.
–E aí, Naya? – Disse o sujeito. – Já estou te arrumando trabalho pra hoje.
– O que você está fazendo aqui? – ela sussurrou, em choque.
–Você não apareceu para acertar a minha comissão, então, eu tive que vir.
–E–eu vou acertar, mas é que não consegui o suficiente.
–Não me interessa – disse ele elevando a voz.
–Você vai me prejudicar se fizer escândalo aqui.
–Vou te fazer perder o emprego se não me pagar, sua pu...
Ele não terminou a frase, porque Afonso esticou o braço, agarrou a nuca sebosa do sujeito e bateu sua cara com força na quina do balcão. Ele caiu desacordado e dois seguranças chegaram, sem saber o que aconteceu.
Calmamente, Afonso tomou um gole da bebida e explicou: – O cara estava importunando as garçonetes. Acho melhor vocês tirarem o lixo para fora.
Os dois caras olharam para a bartender, que confirmou com um aceno, provando que Afonso estava falando a verdade. Eles ergueram o cafetão e o levaram embora. Afonso se voltou para Naya e percebeu que ela estava tremendo.
– É verdade?
– O–o que é verdade?
– Que você se prostitui.
Ela acenou brevemente, olhando fixo para o chão.
– Não se preocupe, eu não tenho nada a ver com isso. Só preciso achar Lunna e voltar para casa.
– Claro – disse ela, sem saber porque sentiu–se decepcionada com a resposta dele. O que esperava, garota? Ouvi–lo dizer: "Não se preocupe, eu não me importo com isso porque valorizo a pessoa e não o que ela faz".
Mas claro que Naya, tão calejada pela vida, sabia que essa crença era o mesmo que dizer que ela ainda acreditava em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa.
–––
O turno acabou e ela foi trocar de roupa. Alguém lhe disse que o dono do Katmandu ficou sabendo do que aconteceu e queria falar com ela. Naya passou no escritório consciente do que iria acontecer.
Foi sumariamente demitida.
Havia um esquema em que as garçonetes interessadas saíam com alguns clientes. Mas era tudo por fora e o dono fingia não ver. Mas na medida em que isso interferia com a clientela habitual, ele não tolerava tal coisa.
Pelo menos ele lhe pagou o mês trabalhado. Naya colocou o dinheiro na bolsa e se afastou em direção ao bar.
Afonso a esperava pacientemente. Gil já tinha lhe cantado a pedra de que o escândalo com o cafetão rendeu uma chamada à sala do chefe. (E que isso não devia ser coisa boa). Ele esperou que Naya lhe contasse alguma coisa a respeito. Ou mesmo que o culpasse pelo que aconteceu.
Ela não fez nem uma coisa, nem outra. Olhou para Gil e disse: – Foi bom trabalhar contigo! – Gil e Afonso entenderam na hora o que aconteceu. Naya não se deteve no ocorrido, virou–se para Afonso e perguntou: – Vamos?
Ele avaliou–a agora, sem maquiagem e com uma roupa simples. Pareceu apreciá–la mais assim do que produzida. Calmamente colocou o copo sobre o balcão e fez que sim com a cabeça. Levantou–se da banqueta e a seguiu em direção à saída.
– Deixei o meu carro no estacionamento do...
– Não vale a pena! Vamos a pé.
Ele não pareceu contente, mas concordou. Naya dissimulou um sorriso. Só de imaginar o cowboy Marlboro desfilando com ela pelas ruas apinhadas... Àquela altura, a área estava lotada de gente sofisticada procurando os bares, as boates, e os restaurantes 24 horas... Era uma região que vivia para a noite. O fazendeiro, como ela o apelidou, pareceria bem deslocado entre os passantes.
No entanto, a medida em que caminhavam, ela percebeu que ele parecia tão confortável quanto se estivesse andando entre bois e vacas. Olhando mais atentamente, ela se deu conta de que ele tinha aquele olhar de que já viu muito na vida, e não se importava. Só se importava com os seus. O cara era do tipo protetor, e você tinha que merecer entrar para o seu círculo restrito de proteção.
Por isso, ele estava ali. Porque fez uma promessa a uma amiga e não iria embora enquanto não cumprisse o que prometeu. Ela o admirou por isso. Certamente, era muita sorte ter um amigo como ele.
Naya sentiu pena de si mesma, por nunca ter podido contar com pessoas assim.
–Que foi? – Ele indagou, percebendo que Naya pareceu deprimida ao encará–lo.
–Você está bem longe de casa cowboy – ela desconversou, para que ele não percebesse o quanto ela estava se sentindo diminuída, naquele momento.
–Pois é – foi tudo o que respondeu, de um jeito indolente. Naya não fazia ideia do que se passava na cabeça dele. Era a primeira vez que isso acontecia, porque normalmente para ela, os homens eram fáceis de serem decifrados.
Atravessaram a calçada movimentada. A temperatura estava ficando mais agradável, na medida em que a noite caminhava para o seu apogeu.
– Onde estamos indo, exatamente? – ele perguntou.
– Vamos até o último trampo da Lunna. Talvez eles saibam por onde ela anda.
Ele concordou. Continuaram andando em silêncio por algum tempo.
–E, então... Está confortável com o que faz, ou gostaria de mudar de vida? – Ele perguntou.
– Nossa! Você é direto, hein?
– Não tenho tempo a perder com rodeios – ele meneou a cabeça.
– Ah, é...? E quanto a você?
– O que tem eu?
– Está confortável com o que faz? Aliás – ela emendou. – O que você faz, mesmo?
– Eu vendo produtos esportivos, – convenientemente, deixou de lado o fato de administrar uma fazenda, um empório, e ser dono de uma distribuidora de bebidas.
Ela assentiu, decepcionada por ter se enganado a seu respeito. Podia apostar que fosse fazendeiro. Vai ver ele apenas gostava do estilo cowboy...
– ... E eu tenho uma fazenda sustentável.
Bingo! Sua intuição não estava tão ruim.
–O que significa sustentável.
–Que eu não maltrato animais. Que eu valorizo alguns tipos de plantação mais do que outros.
–Ah... – Ela continuou sem entender, mas se calou., para não demonstrar ignorância.
–Como você e a Lunna se conheceram – ele mudou e assunto.
–Foi... Uma coisa boba – ela não quis abrir para o lance do cliente que não quis pagar, bateu nela e Lunna a levou a um hospital.
–Uma coisa boba – ele repetiu, deixando bem claro que percebeu o oceano de palavras que não foram ditas. Mudou de assunto novamente. – Você não respondeu se está confortável com o que faz.
– Ao contrário do que alguns dizem, a gente não faz o que faz porque gosta. Bem, algumas até gostam, mas geralmente as que gostam fazem exatamente por isso, não porque precisam. A maioria de nós faz porque não tem outro jeito.
–Sempre tem outro jeito.
–É muito fácil para quem está de fora, julgar.
–Bom, isso é verdade – ele reconheceu, para espanto de Naya. Que cara complexo.
–Não pretendo trabalhar à noite pro resto da vida – ela desabafou, não querendo que ele sentisse o seu desespero para deixar aquela vida. Ela odiava ter que se prostituir, mas odiava ainda mais se fazer de coitadinha, ou que sentissem pena dela.
Também odiava ter que atuar como garçonete à noite. Seu sonho era voltar a estudar e se formar esteticista. E era por isso que o cafetão estava atrás dela. Porque ela estava reservando dinheiro para começar o curso.
– Eu quero ser esteticista – disse ela, sem saber porque lhe contou aqui.
– Ah, é? – Ele sorriu, um tanto ausente.
– É – respondeu a moça, beligerante. – Estou vendo uns cursos e...
"E agora, ela está desempregada", ele concluiu em pensamento. Provavelmente afundaria o pé na lama para sobreviver. Se antes era garçonete fazendo bico na prostituição. Iria se tornar prostituta em tempo integral. Caso contrário, acabaria morando na rua. Não que aquele muquifo que ele visitou fosse grande coisa... Mas ao menos era um teto sobre sua cabeça.
O que o preocupou (e ele ficou irritado por ficar preocupado), foi o fato do cafetão estar atrás dela. Ele não deixaria barato o lance da comissão. Muito menos o fato de ter apanhado na boate por causa dela. E isso, era culpa dele próprio, Afonso reconheceu. Afinal, foi ele que nocauteou o sujeito.
– O que vai fazer daqui pra frente? – Ele quis saber.
–Que importa!? – Sentiu–se mortificada por ter revelado a sua frustração, ajeitou a alça da bolsa pesada no ombro, com todos os pertences que esvaziou do armário do Katmandu. As palavras do dono "esvazie o seu armário" ainda reverberavam nos seus ouvidos.
–A ironia de tudo isso é que o que me pagavam no Katmandu mal dava para o aluguel. Não sobrava para comer, nem para luz e água... Ou condução. Era com... Você sabe... os bicos... Que eu ia me segurando.
–Qual é a ironia? – ele indagou, com a sobrancelha levantada.
–Isso, que o dono não quisesse a prostituição das garçonetes, mas as remunerasse tão mal.
–Você está enganada, meu bem – ele zombou baixinho. – Ele sabia muito bem e não se importa. O cara só não queria um escândalo dentro do seu estabelecimento, afugentando os clientes mais certinhos. Ou mais medrosos. Ele sabia e de forma indireta, também lucrava.
Ela pensou no que responder, mas o cowboy já estava tirando a alça da bolsa do seu ombro e colocando no dele.
Continuaram andando.
– Obrigada. – Ela disse.
–Não por isso. – Ele sorriu.
De repente, todo o absurdo daquela noite atingiu Naya e ela começou a rir baixinho. Os olhos dele desceram para os seus lábios e foi a primeira vez que ela se sentiu tímida. Desviou o rosto, encarando os pés, enquanto andavam.
"Ora, ora" – ele pensou. – "Então você não é tão descolada assim".
Ele refletiu, com certo desgosto, que pessoas assim como ela deviam sofrer muito quando se submetiam a fazer coisas das quais não gostavam. Ele conhecia bem demais as mulheres para saber que ela era do tipo que não gostava de certas coisas.
– Esteticista – murmurou. – Algo me diz que você vai conseguir ser quem deseja ser.
Ela não entendeu o comentário, dito mais para si próprio do que para ela. Tornou a encará–lo. –Pensa mesmo assim?
– As pessoas tem que começar de algum lugar – ele lhe lançou um olhar daqueles intensos, antes de desviar o rosto. – O mais importante é chegar a algum lugar. O caminho percorrido não é da conta de ninguém. Desde que seja honesto.
– Hum... Profundo.
Ele sorriu, revelando uma covinha. Quase pareceu um menino. Quase.
Ele a olhou de soslaio. De repente, colocou a mão nas suas costas, para evitar que Naya colidisse com um transeunte afobado. A garota sentiu um arrepio bem naquele ponto em que os dedos quentes tocaram a sua pele. Não podia ser química! Não com o fazendeiro amigo da irmã da Lunna. Um sujeito que ela provavelmente nunca mais veria de novo!
Deu um passo para o lado, evitando o contato. Ele baixou a mão, fingindo não perceber, pois continuou a falar:
– Como você e a Lunna se conheceram?
Com um suspiro, ela acabou contando: – Um cliente... Não me pagou e me espancou. Lunna me ajudou a chegar ao hospital. Ficou comigo lá a noite toda. Dali em diante, nós nos ajudamos mutuamente.
Ele balançou a cabeça. Sua camiseta quadriculada de flanela tremulou com uma súbita rajada de vento. O chapéu quase voou, mas ele foi rápido em enterrá–lo na cabeça. Naya tremeu de frio.
Afonso colocou a bolsa dela no chão e prontamente tirou a camiseta de flanela para vestir nela. Ficou apenas com a camiseta branca, de regata, com aqueles músculos gritantes de fora.
Gritantes.
Pigarreando, ela agradeceu baixinho. Eles voltaram a andar até encontrar um beco que dividia dois prédios quase idênticos.
–Me fale mais sobre o sujeito que estava assediando Lunna.
–Ela não se sentiu mais segura na quitinete e se escondeu no porão deste prédio. Isso porque ela estava devendo o aluguel também. A senhoria queria despejá–la. O aluguel aqui é pago mês a mês.
Ela apontou para o prédio em questão. Com desgosto, ele identificou a janela quebrada do porão. "Meu Deus", pensou, "que perigo ficar assim, exposta a qualquer um que aparecesse".
Ele se abaixou para espiar pela janela quebrada. Mesmo na escuridão, percebeu o amontoado de caixotes, a umidade, o cheiro de mofo e urina, tudo misturado. – Você tá de brincadeira?
–Tenho cara de quem está brincando? – Naya apontou para si própria. Por um instante, ele avaliou o seu rosto cansado e abatido. – Agora, dá licencinha!
Afonso automaticamente se afastou. Ela foi enfiando a cabeça para dentro e elevou a voz: – Lunna, sou eu! Naya!
–Ai, flor! Já acendo a luz!
De repente, uma lâmpada amarela foi acesa. Naya sorriu da janela e começou a descer meio desajeitada por sobre os caixotes, antes que Afonso pudesse impedir ou ajudar. Lá embaixo, ela parou, esperando que ele também descesse.
– Jesus – murmurou ele, enquanto se lançava pelo buraco, segurando nas bordas da janela. Cuidou para não se cortar, nem se desequilibrar naquelas caixas. Alguma podia quebrar sob o seu peso. Ele foi testando a pisada até chegar lá embaixo. "Astrid me paga".
Nem ele, ou Naya reparou no choque de Lunna. Quem era aquele cara?
Lunna observou que era um cara muito alto, imponente, olhando para ela, de cima.
– Lunna, esse é o Senhor Roveda – Naya apressou–se em explicar. – Foi procurá–la em seu antigo endereço.
– Pode me chamar só de Afonso, por favor. – Ele foi logo dizendo, enquanto espanava as calças. Estendeu a mão, mas logo se lembrou da nova etiqueta e ofereceu o cotovelo. Lunna não se mexeu. Ele ficou no vácuo, sentindo–se um idiota. E era por isso que Afonso não curtia as etiquetas pós COVID. Preferia apenas um aceno de cabeça. Mas, achou que se esbanjasse simpatia, a moça confiaria nele. O que não aconteceu.
Decidiu deixar a simpatia para lá e foi direto aos finalmentes.
– Sua irmã me mandou.
– Eu... Hã... Eu...
Naya logo percebeu o desconforto da amiga e assumiu a conversa. – Ele é meio doido sabia?
Afonso sorriu sabendo a que ela se referia.
–Por quê? – Lunna quis saber.
– Por que socou o meu cafetão.
– Já gostei de você – disse Lunna. – Só por socar o Rangel.
–Eu não soquei... – Ele franziu o cenho, enquanto olhava o ecrã do celular. – A cabeça dele foi ao encontro do balcão do bar – gesticulou brevemente, como se não tivesse sido nada demais.
– Tanto faz – Lunna replicou, sorrindo.
Pepita surgiu latindo e surpreendeu os três, quando pulou em Naya. – Ei bonitinha!
–É sua? – Afonso quis saber, guardando o celular no bolso.
–Eu sou dela. E Pepita vai aonde eu for.
– Parece a sua irmã falando. – Afonso revirou os olhos, então sorriu. – Podemos ir?
– Vou pegar as minhas coisas – disse Lunna, feliz da vida.
–––
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