Dia 9. Mês 3. Ano 2.
Respirei aliviado.
Uma das mais longas madrugadas que já atravessei naquele lugar abafado estava finalmente se tornando manhã. Enxuguei o suor frio que me escorria pelos braços e tomei um copo d'água para molhar a garganta.
Como eu odiava aquela salinha! O odor de antisséptico infestava cada molécula de ar e prendia a circulação do oxigênio numa frieza seca. Meu nariz ardia e coçava a cada minuto, enquanto meus olhos pareciam ter levado uma enxurrada de areia fina.
— Aaarg, que frio nojento!
Rinno ouviu minha reclamação com atenção.
— Já terminou? Se manda daqui.
— Ah, não pense que estou estendendo o meu turno porque quero. Tenho que ajeitar essa bagunça antes! — bufei. E tinha mesmo. Não podia levar mais advertências.
A maca estava manchada de sangue tal como um quadro abstrato de pintor. As bandagens por cima do braço ruim de Rinno fediam e transpareciam uma combinação de cores infernais, entre o amarelo da solução antibactericida e o vinho do sangue puro.
— Vou trocar esse curativo primeiro.
Rinno protestou com raiva.
— Pra quê??? Isso... — ele resfolegou. — Ele não vai voltar ao normal mais! — Rinno balançou a cabeça enquanto espremia os olhos. — NÃO AGUENTO MAIS ESSA MERDA!
Era só o que me faltava. Crise existencial a esta altura do jogo.
— Não se faça de idiota. Você sabe pra quê.
Desenrolei, com as luvas descartáveis, aquela bandagem suja do braço dele. Vi de relance a mão do outro braço segurar a barra da maca com força. Quando olhei a pele fina, mal-cicatrizada e molhada de secreção fedida de pus, virei o rosto para outro lado procurando minha máscara.
— Vocês vão queimar no inferno, bando de cretinos!
— Tá, tá! Eu sei. Agora fique quietinho se quiser permanecer sóbrio hoje!
Apertei a máscara no nariz e com ambas as mãos prendi o braço de Rinno enquanto ele se debatia, reclamando e apenas reclamando sobre tudo que eu já havia ouvido naquelas últimas semanas.
— Ai! — Ele soltou o grito perto do meu ouvido. — Panaca do caralho! Você disse que já tinha acabado com isso!
— Eu estou finalizando, não me escutou? Deixa a porra do seu braço quieto!
Passei raspando o pano embebido de álcool, mas Rinno puxou o braço bruscamente, me impedindo de completar a tarefa. Minhas mãos pararam, apertando o pano tão forte que o álcool escorreu por baixo do meu braço. Fiquei olhando ele sem acreditar.
— Por que maldição eu fui me alistar para isso, Max? Por quê?!? Eu não estudei tudo o que estudei para morrer de dor na droga do espaço!
Subi uma das sobrancelhas num curto momento de curiosidade.
— Quem é...?
Não completei a pergunta, pois Rinno voltou a escancarar ameaças para mim.
— Eu juro que te quebro o braço se passar esse negócio em mim!
— Ah, cale a boca — repliquei, num tom de voz calculada. Não tinha motivo para me irritar com ele ao final do turno. Mas eu estava me irritando.
E eu odiava ainda mais vê-lo reclamando daquele jeito, evidentemente exausto por tudo e já desfazendo aquele seu muro de coragem dos primeiros meses.
— Ai ai ai ai ai ai ai! — Ele soltou o que pareceu uma risada histérica, que logo se transformou em gemidos tristes.
Por fim, consegui passar o pano no braço dele que tremia ininterrupto. Enrolei uma bandagem limpa por cima do ferimento, desejando descrente que ela pudesse durar mais tempo no braço do homem.
— Pode se levantar e se sentar ali? — Apontei para a cadeira de rodas que raramente era usada. Ele me olhou como se eu tivesse enfiado uma faca no seu peito. — A menos que queira descansar nessa maca suja de sangue.
Rinno fez o que pedi, de modo hesitante. Ajudei com que se sentasse na cadeira de rodas e busquei um balde com água, álcool e detergente para limpar as extensões sujas da maca. Não demorei muito.
— Puta que pariu, que limpeza mal-feita hein?
Engoli o ar do jeito mais calmo que podia. Mas não consegui segurá-lo dentro do meu corpo, de novo.
— Devia mesmo deixar você definhando num ambiente sujo e decrépito! Porra, para de reclamar, cara! EU JÁ SEI QUE VOCÊ NÃO GOSTA DE SER CORTADO! EU JÁ SEI! E é normal, porra! Só que você está ultrapassando os limites!
Rinno ficou chocado, a boca entreaberta assim como ficara Layane no nosso último dia como amigos. Meus braços tremiam, ameaçando derrubar as lâminas de corte que carregava até a pia.
— Vai se foder. — Foi o que ele retrucou, com a voz baixa.
Joguei as luvas descartáveis fora e puxei o máximo de oxigênio que consegui.
À medida que eu levava a bandeja com os utensílios para a pia, escutei alguém bater de leve na porta metalizada. Foi difícil de início escutar algo sobre os gemidos de Rinno.
Esterilizei minhas mãos, enxuguei-as e parti para a porta, sentindo um pouco de ansiedade em ver ele. Ninguém nunca vem aqui, a não ser o Mestre em suas visitas semanais. Mas... bem no fim do turno?
Quando deslizei as placas metálicas, quase pulei pra trás de surpresa.
Não era o Mestre.
Vagamente, eu juntei as sobrancelhas, recompondo minha postura séria.
— O que faz aqui? — Já fui adiante. — Essa ala é proibida.
— Oi, senhor Julian — a menininha me cumprimentou, com as mãos atrás das costas. — Vim ver o papai. Acordei cedinho só para isso!
Observei aquela garota por um tempo. O cabelo dela crescera e estava chegando a altura dos ombros, mas ainda guardava um pouco do corte masculino prematuro que ela sofrera nas laterais da cabeça. Vestia também um uniforme característico dos técnicos de laboratório.
— Você não devia estar se preparando para sua aula, Luzie?
A menina sustentou seu olhar vazio e deprimente, firme demais para uma criança. Revirei os olhos.
— Olha, não é permitido a visita de nenhum parente.
— O Mestre achou que o senhor pudesse não permitir — ela observou por trás de mim, talvez escutando a inquietação de Rinno —, então ele mandou esse aviso.
É claro que ele mandou, pensei, esboçando um descontentamento no rosto. Agarrei o aviso da mão dela quase amassando-o. Li por cima e troquei o olhar entre Luzie e o papel.
— Espere um segundo. — Voltei para a sala e fechei a porta.
Rinno estava com as pálpebras fechadas e os dentes apertados uns contra os outros. Suava frio. Quando cheguei perto, pus um pano molhado à sua testa.
Ninguém deveria ver o pai assim. Ninguém.
Ele abriu os olhos, e transformei a curta empatia que me encaloreceu numa praticidade robótica. Eu era ótimo em disfarçar sentimentos rapidamente.
— A sua cria veio te ver.
Ao escutar meu anúncio, o homem rapidamente transformou a figura decaída em uma postura sóbria. Seu peito magro inflou sob as roupas brancas de paciente. Arqueou as sobrancelhas e encheu os olhos de pura raiva.
— Hã? O que vocês estão pensando?! Eu não pedi para ninguém trazer a Luzie aqui! — Foi se levantando da cadeira de rodas, com o rosto retorcido. A toalha fria caiu aos meus pés.
Me abaixei para pegá-la, e enquanto largava o pano de volta no balde d'água, dava uma explicação para Rinno.
— Veja bem... Permitiram a visita dela. — Lhe mostrei o aviso. — Ordens lá de cima, companheiro.
— Merda de ordens! — esbravejou, rasgando o papel e amassando-o num embrulho. — Que se foda! Vocês precisam que ela veja o pai dela morrendo? É esse o novo tipo de tortura?!
Cruzei os braços e fiquei observando, meio perplexo e sem palavras, aquela onda de energia repentina nele tomar conta de seu corpo moribundo. Algo crescia devagar dentro de mim.
— O que está olhando, panaca?! Mande ela voltar! Eu não quero ela aqui!
— Caramba, Rinno! Eu achei que você já tinha superado essa fase. A garota tá lá fora, esperando pra te ver. É a sua filha!
Aquilo saiu tão convincente da minha boca, mas não tinha nada do que eu realmente queria dizer. Eu só... me preocupava o mínimo com a garota! Também estava indignado com a falta de ética naquele ato do Mestre.
Rinno suspirou e balançou impetuosamente a cabeça. Fechou os olhos de modo tão pesado que achei que ele iria começar a chorar, mas só fez uma expressão cansada e triste.
— Faz tantos meses que eu não... — Ele não concluiu.
Eu também não gosto disso, admitiu uma ideia no meu interior. Aquilo me fez sentir um pouco melhor, mesmo que por fora eu parecesse compactuar com tamanha monstruosidade.
Apesar de tudo, guardei as lâminas, afastei a mesinha com os conduítes e o balde que reservava o sangue para trás da cortina da pia. Não que a menina fosse burra demais para não perceber os fatos, mas insisti em deixar o lugar menos horroroso o possível. Eu era um monstro criando sentimentos.
— Luzie, pode vim! — Rinno gritou, mas sabia que a garota não conseguiria escutar dali. Ele virou o rosto pra mim. — Vai embora, seu desgraçado!
Lhe dei um solícito sorriso magoado e me encaminhei para a saída. De costas, comentei francamente:
— Tá bom, eu desisto! Já estava na minha hora mesmo...
Abri a porta, deixei Luzie entrar, fechei a porta e me escorei na parede.
Era mais real ainda.
Havia algo de intenso crescendo no meu interior vasto, algo que corroía, que me deixava sem ar e que, por alguma maldita emoção, me fazia criar lágrimas que nunca, em hipótese alguma, deveriam existir nos olhos de um Executor.
Mal percebi quando Luzie saiu sozinha através da porta de metal e tocou meu ombro. Tomei um susto e olhei para o lado, envergonhado e sentido as gotas de lágrimas molharem minhas bochechas. Ela deu uma palmada leve no meu ombro. Parecia feliz, antes de qualquer coisa.
— Tenho saudades das suas aulas, professor Julian.
Enxuguei meus olhos. Olhei para ela e me arrependi na mesma hora. A expressão inocente daquela garota havia se misturado com alguma criatura noturna, devido às intensas marcas de olheiras. O rosto infantil estava sem vida.
Eu precisava sair dali antes que me batesse um desespero.
Mas eu não fiz nada.
E ela se foi primeiro, sozinha, através do corredor, caminhando calmamente. Como alguém tão jovem sabia controlar seus sentimentos?
Senti nojo de mim enquanto andava para o meu dormitório.
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