Dia 7. Mês 4. Ano 2.
— Me responda agora: de um a cem, qual a sua escala de dor?
Naquela madrugada, resolvi seguir alguns dos procedimentos padrões para me ludibriar. Talvez o turno terminasse mais rápido.
Rinno tocou o queixo, pensativo. Permaneceu assim por um longo tempo, implicante à minha pergunta.
— Ande — forcei —, não me aborreça hoje.
— Preciso de tempo para sentir. — Ele coçou a atadura sobre o braço. Parecia mais quieto que o seu normal. Fez novamente aquela expressão pensativa. Soltei o ar escancaradamente.
Em cada ato, um peso. Devo fazer o que me foi ordenado. Nada de fugir às normas. Ficarei em paz. Confortável nos próximos três anos de viagem.
Girei meu pulso para observar as horas. Mais de quatro para terminar o turno. Era impressionante como o tempo parecia se rastejar.
Meus dedos quase escorregaram pela a tela da prancheta. Tinha tédio o bastante consumindo minhas forças, até mesmo a pouca que fazia em segurar uma simples caneta. Um tédio que não era natural, dado a natureza do meu trabalho.
Por sorte — e também azar, naquela ocasião — já havia adiantado os preenchimentos dos formulários mensais nos últimos dias. Só me restava aplicar o procedimento de dor. E isso era de mão única.
Puxei o dispositivo eletrônico fino do meu bolso. Fazia mais ou menos uma semana que estava fuçando pelas histórias dele. Não havia muita coisa de interessante na rotina do antigo Rinno. A maioria das anotações eram descrições maçantes de seus serviços como engenheiro.
Mas havia uma pessoa que aparecia com frequência nos seus registros, além de sua filha, Luzie. Era um homem chamado Max. Deslizei os dedos pelas páginas virtuais até que encontrasse o trecho que queria.
— Já pensou? — perguntei, olhando para o sujeito, quase morto, por cima do diário eletrônico. Ele me encontrou com o olhar e mexeu a cabeça.
Continuei deslizando. Dias e mais dias de dramas e preocupações com Luzie. Naquela escrita meio engarranchada, via um Rinno feliz por ter conseguido um espaço na viagem orbital. Muitas das descrições soavam exageradas, mas entendia que aqueles registros foram feitos na ótica de nossa antiga vida. Deu até para sentir nostalgia.
Demorou segundos até Rinno notar o objeto que eu estava segurando.
— Esse é meu diário???
Confirmei brevemente com a cabeça.
— O que está fazendo com ele? Hein? — Escutei ele se movimentando em cima da maca. — Eu... eu pensei que eles tivessem arquivado todas essas coisas relacionadas ao Capitão.
— Ah, que inocente. Não, não mesmo.
Rinno enraiveceu as sobrancelhas. Respondi com mansidão.
— Ele queria que eu desse uma olhada — disse, aparentando sinceridade, o olhar ainda preso nos registros. Não conseguia encontrar a passagem exata. — Você sabe como o Mestre pode ser persuasivo, né?
— Não tem nada aí que te interesse! Larga isso!
O jeito que Rinno falava deixava evidente a sua vergonha. Sorri quando movi meu olhar na sua direção.
— Tá tudo bem, mecânico. Não li nada que mudasse minha impressão sobre você. Absolutamente nada.
O rosto dele queimou de avermelhado. A súbita energia de constrangimento.
— Só não estou encontrando o trecho que achei ontem...
— Que trecho?
— Com aquele seu amigo, Max. Era um trecho tão b...
Um suspiro lamentoso alto escapou dele. Abaixei o dispositivo e o encarei.
— O que foi?
— Você.
— Eu?
— Sim.
— Bem, nenhuma novidade. Sempre sou eu, né?
— Mas hoje é definitivamente você.
Girei o rosto sem entender completamente.
— Você tinha outra impressão de mim?
Rinno passou a mão diante dos olhos, diminuindo a energia que havia trazido junto do sentimento humilhante.
— Pra mim, você que tá morto, Julian. Não vai conseguir se transportar para o meu corpo de meses atrás lendo essas... — ele olhou para o dispositivo com repulsa —, palavras enterradas.
Não era normal ele dizer meu nome. Já tirava por aí que ele tentava remover a atenção de si. Eu havia atingido ele.
— É — subi meu olhar para o teto, pensativo —, não acho que vou entender coisa alguma mesmo. Se eu dissesse a real para você, não adiantaria também.
— Tarde demais pra esses... papinhos.
O último tom daquelas palavras foi dolorido.
— É só que, esse Max parecia ser um bom amigo pra você e...
— Cala a boca. — Rinno tampou os ouvidos. — Não estou te ouvindo!
Passei a mão pela testa, fechando os lábios e esperando que ele desistisse.
— Queria dizer uma coisa... mas acho que não consigo. — Isso captou uma breve atenção de Rinno. Continuei. — É. Você está certo. É tarde demais.
Quando bati o olhar em Rinno, um sentimento borbulhou dentro de mim. Ele não estava firme, zangado ou irônico. Seu rosto se contorcia, provavelmente pela dor no braço, e ele parecia até mais encolhido deitado sobre a maca. Via um outro alguém por debaixo da sua marra característica. E não sei se gostava disso.
Rinno havia fechado os olhos, espremendo-os numa intensidade que aposto que doeria sua vista. Quando comecei a me atentar sobre o que ele sentia?
Em extremo, uma ideia maldita e contrária passou pela minha cabeça. Olhei sua atadura, me vi arrancando-a e passando a lâmina gradualmente, ouvindo a orquestra de seus gritos como numa ópera macabra e me satisfazendo com seu sofrimento, como se me libertasse do meu próprio. Aquilo geraria bastante dor. Sim. Muita dor e o que restava do precioso Dorphicus.
Era isso o que esperavam de alguém como eu.
— Por que você nunca me trouxe café?
A pergunta que Rinno fez foi efetiva, para retomar o fio das minhas ideias.
Sorri de maneira branda, remexendo o canto da boca, o que também pareceu pegá-lo de surpresa. Mas não lhe respondi.
Larguei o dispositivo no bolso do meu jaleco e me levantei.
— Tem algum ponto de preferência para o corte?
Ele me olhou desconfiado. Uma risada de quatro notas escapou para fora de mim. O suficiente para deixá-lo estupefato.
— Ah, vamos lá, Rinno! — Apontei minha lâmina para outros pontos do corpo. — Coxas? Tórax? Pernas? Se você preferir, ficamos só no velho e bom braço.
Continuou em silêncio, a expressão passeando entre um sofrimento contido e uma retração raivosa. Vamos, fale!
— Você está em expiração, companheiro — lhe disse seriamente. — Querendo ou não, eu terei que te cortar hoje.
Ele finalmente explodiu.
— E teve alguma vez que não quis, babaca?!?
Parei meu braço a meia distância do dele. Olhei para o chão e me segurei. A pergunta dele estava bem mais afiada que minha lâmina.
— Pra falar a verdade? Talvez em grande parte das sessões — confessei.
Encarei a portinha do meu cubículo, pensativo. Já havia pesado meu ato.
Não queria passar mais horas ali.
- - -
A vista espacial estava tediosamente igual como todos os dias nos últimos meses, mas a parte atraente do local é que ele estava vazio naquele horário da madrugada. E tenho que admitir: o espaço escuro e vazio da paisagem, que me causava arrepios, havia se tornado o melhor remédio visual ao longo dos meses. E especialmente necessário naquele momento.
— Não tem sabor algum.
Rinno bebericava a água com barulho. Foi o máximo que consegui para aquele reclamante de plantão, às sombras do refeitório quieto.
— Garanto que você não tá perdendo nada trocando pelo café.
— Você acha justo?
Por um momento, achei que estivesse se referindo à minha escolha de bebida. Olhei para ele com dúvida, subindo as sobrancelhas, enquanto conectava parte dos conduítes em sua careca.
— Ele — continuou —, o Mestre. Prega tanto o discurso de salvador, um ídolo heróico, pra só ficar de cara pra cima, apertando uns botõezinhos automáticos. Ele devia ser o primeiro a oferecer o cérebro.
Aquilo pareceu engraçado vindo da comum histeria de Rinno, embora fosse de uma realidade que sempre me fazia questionar. O Mestre não nos obrigara a nada. Apenas apresentou uma opção e tomou conta dela antes que um outro tomasse. E se não fosse esse o nosso destino, qual seria a opção? Um bem pior?
Podia confessar que o Motim, depois dos nove meses, me parecia até meio tranquilo. A rotina e tudo mais, sem novas rebeliões. Mas eu estava numa posição confortável. Não precisava ser rasgado e oferecer substância do cérebro para fazer navegar um monstro no espaço, carregando uma gigantesca tripulação.
— Tome vergonha e aceite — falei com aspereza. Foi fácil para mim fingir. — Poucos sacrifícios para centenas. Este é o nosso mundo agora.
Terminando de colocar os fios, comecei a arrumar a bandeja de lâminas e uma calha para escorrer o sangue num balde.
— Ah, é? Por que o puxa-saco não enfia essa faca na própria língua? — Ele jogou o copo vazio num dos estofados. — Vai se ferrar!
— Silêncio, Rinno. Por favor.
Todos os instrumentos estavam nos seus lugares. Posicionei a cadeira de rodas de Rinno em frente a vista espacial. Mensurei as mãos com expectativa.
— Incrível, não?
— Não. É a bosta de um espaço escuro. O que tem de incrível nisso?
Outra fala dele que me pegou. Lembrei da sensação descrita por ele em seu diário, no primeiro dia a bordo, e a declaração seca atual só deixava mais claro a distância gigante entre os dois tempos.
— É o máximo que posso fazer — disse.
A boca dele se estreitou como se fosse cuspir veneno.
— Você é um pau no cu do caralho.
Me sentei ao lado de Rinno, numa das cadeiras que miravam para a longa vista a fora. As palavras dele não machucavam como antes. Elas perderam o seu poder, pois eu sabia o que tinha que ser feito agora. Ele estava bem mais vulnerável desde a partida de todo aquele processo.
Ao ritmo dos insultos que Rinno dizia, eu pensei numa pergunta igualmente desprezível. E disse-a, calmamente.
— Acha que não aguenta mais, covarde?
Me surpreendi com a real intenção de ter falado aquilo. Não era para deixá-lo zangado ou ainda mais discutível, mas sim ver sua expressão irredutível de coragem. Ver ele mostrando força me dava uma sensação esquisita. Era algum tipo de... admiração?
Foi revigorante ver seu rosto firme, em contraste ao brilho encoberto das estrelas. Ainda assim, a pergunta que ele fez contava com a mesma personalidade de medo das últimas semanas.
— Eu deveria te agradecer por me matar mais cedo?
Nem eu contava com isso, pensei, me envergonhando mais do que o normal. Não o julgava. Repassei todos aqueles longos meses ouvindo Rinno me xingando ou afastando minhas mãos para longe, como um mecanismo de defesa natural.
— Eu não sei o que dizer — respondi.
E aquele algo se rompeu de vez.
O espaço negro me consumia a cada momento que eu me pegava o olhando. Daquela vez, não foi diferente. Ainda me sentia muito pequeno e insignificante.
Mas Rinno também olhava para a mesma vista que eu. Imensa e infindável. Não imaginei e nem podia saber como ele se sentia naquele momento. Seria bondade ou injustiça minha extraí-lo hoje?
Vamos lá, não fique penoso, recusou algum pensamento no meu cérebro. Pena não traz sentimentos bons, você sabe! Está na hora.
— E quem se importa com horas? — perguntei retoricamente num tom alto. Rinno me olhou com um levantar de sobrancelhas. Aposto que ele achava que eu tinha enlouquecido, coisa que eu não discordaria totalmente.
Arrumei o meu crachá no peito.
Me pus de pé.
Rinno não estava sorrindo. Encarava a vista lá fora, numa expressão contida; eu não consegui lê-la.
— Escala de dor? — lhe perguntei novamente.
— Setenta e cinco é alto demais para mim?
Então eu abri levemente a boca e formei a linha de sorriso mais genuína em todos aqueles meses.
— Muitíssimo alto para alguém que não é covarde.
Rinno balançou a cabeça com certa satisfação.
— Acho que esse é o número certo — concluiu, e mostrou a mão do único braço bom, num tom honesto.
Quando peguei a mão gelada dele, tive certeza.
Eu estava admirado pela minha terceira irritação.
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