Dia 30. Mês 3. Ano 2.
Era noite, embora ninguém pudesse notar a mudança de horário sem a presença de seus relógios recalibrados ou sem olhar a pequena variação de luz que emanava do sol; a constante negra do espaço dava uma ambientação estranha de estarmos presos numa noite eterna, tal como em alguns lugares isolados na Terra.
Ali estava ainda mais escuro.
Me esgueirava para dentro do compartimento onde um Rinno magro dormia, surpreendentemente, sem roncar. Era sua noite de descanso, e deveria ser a minha também.
Vasculhei num olhar o ambiente quando minha vista se acomodou com a pouca luz. Minha mesinha com utensílios estava próxima do rosto de Rinno, alguns ainda sujos de sangue. O cheiro ferruginoso infestava aquela área da sala.
Encontrei o dispositivo ainda estando parado na porta. Me aproximei com cuidado, fazendo a borracha dos meus sapatos ressoarem pequenos guinchos. Por sorte, podia contar com o sono pesado do Provedor.
Meus dedos encostaram no cartão-crachá com mais alívio que previa. Tive vontade de xingá-lo, ainda que a culpa de estar ali não fosse dele. Mas o tempo que gastei procurando aquilo, criando futuros macabros em que o Mestre me punia por ser descuidado...
Apertei ele com força, querendo quebrá-lo no meio. O cartão não rachou. Isso seria suficiente, por hora.
Fugi da ala de armazenamento correndo. Os corredores passaram por mim como borrões idênticos do mesmo material prateado de aço. Atravessei o grande salão de conferências, vazio e vasto naquela noite; todos os que permaneciam acordados estariam no grande espaço da vista espacial.
Próximo da entrada não havia ninguém. Pude escutar o som bem abafado de músicas tocando entre uma falácia fraca de pessoas. Me encostei na parede e pus a cabeça com cuidado no vão da porta, vasculhando a extensão da festa zumbificada.
Todos deviam estar ali. Pelo menos, todos os Executores. O Mestre era rígido quanto à presença de seu pessoal nos eventos. Ninguém queria ficar na mira do comandante do módulo.
Luxo este que nem mesmo meu empenho perfeccionista poderia me trazer de volta. A atenção dele se prendeu a mim no momento que utilizei meu Provedor de modo errôneo, ou talvez até mesmo antes disso. Afinal, eu era filho de quem era.
Não enxerguei o Mestre na festa. Isso assustou meu sistema circulatório. Mas não mais do que sentir uma mão no meu ombro e a voz gélida-gentil entrando na minha orelha.
— Estava passeando por aí?
Me voltei depressa para o Mestre, que vestia uma versão azulada-escura de seu costumeiro smoking. Estava perfeitamente calmo.
Já eu, nunca.
— O-oi, senhor! Boa noite! Eu... m-me a-atrasei pois...
— Me acompanhe.
Ele foi andando pelo corredor leste.
— Mestre, me desculpe. Eu só... Esqueci de hoje e...
— Por favor, não tente remediar a situação com essas... palavras falsas. Sabe que isso é execrável para mim.
Ele elevou a cabeça para cima, deixando a iluminação do corredor brilhar no seu cabelo loiro raspado. Soltou o ar e dobrou numa esquina.
— Seja honesto, Julian.
Não era bem uma armadilha. Se ele quisesse comer meu fígado, faria isso antes que eu notasse a falta do órgão dentro de mim.
— Não... não quero ir para a festa — confessei. Andamos alguns metros até que eu falasse mais. — Eu queria descansar, fazer alguma atividade prazerosa...
O Mestre desenhou um leve sorriso com o canto dos lábios.
— Pensei ter lhe dado a mais prazerosa das duas funções.
— Eu sei, senhor. Eu agradeço por isso e...
O olhar dele foi suficiente para cortar minha remediação.
— Tá. Eu só sinto prazer porque posso despejar as minhas frustrações nessa atividade. Mas as frustrações também vem justamente daí, senhor. — Pensei um pouco, parando a torrente de palavras. Senti um medo em falar a próxima sentença, mas fui adiante mesmo assim. — Eu acabei com tudo que era importante da minha vida anterior ao Motim. Isso acabou com tudo que me deixava... confortável.
O Mestre parou os passos brevemente numa das janelas envidraçadas que davam para o espaço infinito. Me coloquei do seu lado.
— Estou inclinado a discordar disso, Julian.
Seus olhos viajavam pela constante escura. Não como eu olhava, com aquele terror vasto e imprevisível, mas de um jeito que esbanjava prazer nas órbitas dos olhos. Algo que o alimentava a continuar sendo o que era.
— Agradeço pela sua honestidade. Tentaremos dar um jeito nisso.
Soava como uma promessa falsa, mas eu sabia que o Mestre não era do tipo que perdia tempo à toa em coisas fúteis. Ele tinha a capacidade de fazer o que bem dizia.
Estávamos na área onde os engenheiros costumavam trabalhar. Mal estive ali desde que o módulo fora posto em órbita. Só sabia que em alguma daquelas salas fechadas com portões de ferro ficava o local de alimentação das caldeiras e gestão dos gases para movimentar o módulo.
Ele voltou a andar e eu o acompanhei. Quando me dei conta, estávamos dentro de uma dessas salas de alimentação, as fornalhas brilhando num tom médio de amarelo.
— Sabe, já tem um tempo que eu queria lhe perguntar algo que me vem encucando há umas semanas.
Balancei afirmativamente a cabeça antes de notar que ele não me olhava.
— Sim, sim. Claro, senhor.
O Mestre passeou um pouco pela passarela acima das caldeiras antes de continuar. Cruzou os braços e se virou para mim, à uma distância de dois metros.
— Você é meu aluno, Julian.
Era, eu pensei. O Mestre notou na hora. Jogada errada, droga! A expressão de desgosto saiu naturalmente do meu rosto.
— Sim, você era — ele confirmou. — Esse é o problema. Você está cada vez mais parecido com seu pai.
O Mestre suspirou e se sentou por entre as grades da passarela. Me chamou com uma das mãos e isso bastou para que eu caísse no espaço ao seu lado.
— Sabe como o seu pai morreu?
O olhar dele caiu sugestivamente para as fornalhas abaixo de nós.
— O quê???
A indignação saiu transparente demais. Senti um novo tipo de terror corroer meus nervos. Minhas mãos agarraram as barras de metal à minha frente, tentando segurá-las como o único porto seguro ao meu redor.
— Julian, seu pai prezava bastante pelo respeito interno. Por isso, não me leve a mal. Você deve se lembrar dele falando aquelas frases toscas, mas essenciais para manter a esperança viva no módulo.
Ele estava falando do meu pai, DO MEU PAI! E isso era tudo o que eu podia escutar. Meu pai, meu pai, meu pai... MORTO!
— "Faz parte do processo" — proferi sem tremer a voz, sabendo que era aquilo que o Mestre estava esperando para continuar seu discurso.
— Há algo mais conformista que isto? Você acha que chegaríamos até onde estamos com esse tipo de pensamento? O seu pai não nos traria uma duração longa com apenas frases. Precisávamos de algo prático!
Eu sei que havia dito que não sentia falta do meu pai, mas sim da minha vida que estava atrelada ao seu comando. Ah, mas como eu estava errado! A maior das mentiras que eu havia criado naquela estadia no regime torturante.
Eu sentia a falta do Capitão Suerde.
— Eu sinto falta dele! — gritei. — Era isso o que o senhor queria? Sim, eu sinto falta das coisas como eram, mas sinto mais falta dele! — Alívio me consumia, e eu queria mais. — Ele era um péssimo pai e acabou destruindo a própria carreira como comandante, mas ele era um pai, O MEU PAI! O único!
Lágrimas escaparam dos meus olhos, mas os vapores e o calor da sala quente logo as faziam sumir. Eu me coloquei de pé e dei as costas ao Mestre, fungando, tremendo, enxugando o nariz na manga do paletó.
O Mestre voltou a falar, meio alheio ao meu surto.
— Antes de tudo isso acontecer, o seu pai havia instituído que cada um dos engenheiros — homens que estavam sob seu comando direto — fizessem uma espécie de diário de bordo. Dizia ele ser uma estratégia para documentação de futuros subordinados para a Central.
— Eu... soube. — A única coisa que sabia era o perigo de estar ali.
— Inclusive — continuou —, seu Provedor brucutu cedeu a esse procedimento e também escreveu um diário. Muitas palavras de medo e drama.
Olhei para o Mestre com surpresa. Eu devia estar parecendo um fracote com aqueles olhos marejados e arregalados.
— P-por que está m-me contando isso?
— Talvez você queira ler isso — ele puxou uma caderneta metálica de dentro do smoking e andou até mim. Colocou ela no meu bolso —, já que está tão próximo dele agora.
Ele sabia. Não que fosse um super segredo como me sentia diante de todas as últimas ações. Mas o que era mais surpreendente era ele me oferecer aquele diário como uma oferta de... conserto.
O Mestre colocou uma das mãos sobre meu ombro e me puxou para fora dali, enquanto eu tremia feito uma britadeira descontrolada. Ele sussurrava no meu ouvido:
— Bom, Julian. Muito bom. Você foi muito bem. Fez a coisa certa.
Ele me arrastou de volta para a festa. Controlei as tremedeiras o suficiente, ainda que o salão estivesse escuro e fosse acendido esporadicamente com luzes azuis e rosas estonteantes.
Subimos até um patamar alto, onde estava um sofá luxuoso e comprido que logo notei não ser natural dali. O Mestre me colocou numa das pontas e me ofereceu uma taça de líquido borbulhante. Eu segurei com as duas mãos, mirando o seu rosto perfeitamente calmo e mais satisfeito.
— Volto já.
Ele se afastou para conversar com alguns cientistas e estudiosos influentes que também estavam naquela área vip. Olhei a taça nas minhas mãos com enjoo e susto. Fechei os olhos, mas não me distanciei da festa. Meus ouvidos continuaram fazendo sua função.
A música principal da festa estava tocando. Eu entendi isso enquanto ela era recebida com um clamor alto de palmas e urros. A voz de uma cantora longínqua começou a recitar:
Let me down easy
For your love for me is gone
Let me down easy
Since you feel to stay is wrong
I know it's all over
But the last goodbye
Oh, let me down easy
Eu senti uma vontade de chorar novamente, durante a repetição do "let me down easy" enquanto a batida eletrônica crescia. Aquela música me tocava tão profundamente diante das minhas circunstâncias. Parecia responder exatamente a última conversa que tive com o Mestre.
When you pass by me, baby
Does it hurt so much to smile?
We promised that we'd still be friends
'Til the very end
Abri os olhos e vi o público dançando com mais vigor. Até o Mestre remexia a cabeça ao movimento das ondas sonoras que despontavam das caixas de som.
Esse foi o momento mais alto da festa. Observei o conjunto de balões que estavam presos na parede principal, indicando o "FELIZ 9 MESES DO MOTIM". Era a festa do nosso procedimento, do método que salvara a todos de ficar vagando como outras naves fracassadas ao redor da Terra.
Nada daquilo era legado do meu pai. Nada, além de mim.
A caderneta emanava em meu bolso. Queria ser aberta o quanto antes. O objeto que me faria entender Rinno. Agora não. E distanciei a vontade.
Era esquisito. A música que tocava parecia ter sido especialmente escolhida pelo momento. Serviu para me acalmar, e eu gostei.
A música trocou para outra, de melodia mais melosa e que iniciava com notas do que eu pensei serem de trompetes. O Mestre sentou do meu lado, indicando a bebida.
— Relaxe, Julian. Hoje é a noite para isto. Se envolva conosco!
Ele parecia estar inteiramente por fora de toda nossa última conversa. Por isso, nem tentei esconder a minha expressão assustada.
— Está com medo? — perguntou. Não respondi. Ele me fez olhá-lo rosto a rosto, bem dentro de seus olhos azuis. — Não queria deixá-lo assim. Parece pior do que estava e... Espera, espera! Essa é a minha favorita!
O Mestre apontou para a saída de som e uma cantoria em espanhol iniciou.
Con manos llenas te abracé
Y no hiciste nada para entender
Lo puse todo a tus pies
Y mis labios siempre contarán
La gran falta que tu me harás
Y mi ojos siempre guardaran
La farsa que encontré en tu amor
Eu entendia espanhol bem mais que inglês, é claro. Essa nova música parecia uma resposta frustrante à letra da primeira música. E nela também estava o nome do módulo. La gran falta.
Era essa a música preferida do Mestre? Difícil acreditar que ele tinha paixão por algo tão... hispânico. Já que ele depôs meu pai e me tratava como um filhotinho abandonado de uma espécie estranha.
Só consegui sentir mais repulsa da música, ainda que fosse do mesmo artista da primeira. Um tal de ODESZA. Essa era bem mais lenta e apelativa. Pelo menos, ela me deixou mais sóbrio enquanto prestava atenção na letra. O Mestre imitava com a boca os vocais femininos.
Siento que vives en mi corazón
Se muy bien que no vas a salir
Te extrañara toda mi piel
Y en mis caricias siempre estarás ahí
O Mestre pediu meu cartão com uma expressão feliz no rosto. Digitou alguns códigos nele e o brilho do dispositivo retornou ao dourado. Ele havia me devolvido o acesso especial.
— Obrigado, Mestre.
Minha cabeça focou somente nele. Aí viria a grande pergunta.
— Eu era muitíssimo próximo de seu pai, Julian. — A face dele tomou uma sombra terrivelmente assustadora. — Acredite. Sim, era. Ele morreu surpreso, devia ter visto a expressão dele, orgulhosa, apagando-se com os segundos. E agora... eu o vejo tanto em você! Minha última opção seria te sacrificar!
Eu estava com medo. O Mestre me fez sentir o medo. Não aquele que me assolava a cada abrir dos olhos após poucas horas de sono. Não aquele em perceber que estava preso no módulo ao redor da Terra. Não aquele que eu sentia em cortar um ser humano diariamente, para submetê-lo à dor.
Era um medo abissal, predatório.
O Mestre recostou a cabeça no sofá, mirando o teto, sorridente.
— Eu preciso de você. Seu pai ficaria bastante orgulhoso do seu feito como um Executor. Gostava de coisas exageradas, como pode se recordar.
— Com licença, Mestre.
Me pus a levantar, atordoado demais.
Num movimento rápido, ele me segurou pelo ombro.
Não me virei para escutar a pergunta, o que pareceu tornar as palavras dele sombras sufocantes e pesadas atrás de mim.
— Depois que ler... Você ainda vai querer continuar como um Executor?
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