XXXII -Dave
Riley conseguiu soltar Alícia, que ainda estava desacordada, e colocou-a no chão aos seus pés. Ele estava completamente alheio à toda a situação. Missie gritou tão alto, num tom tão agudo e desesperado, que Dave teve que tirar os olhos de Bia por um segundo. Pedro apareceu nesse mesmo instante, com a perna sangrando e um sorriso satisfeito no rosto. Passou um braço pela cintura de Isabelle e os dois desapareceram. Dave deu um passo para frente e caiu sobre os próprios joelhos. O mundo ao seu redor girava descontroladamente, tremia violentamente e escureia aos poucos. Os sons extinguiram-se e foram substituídos por uma única nota aguda que aumentava a cada pulsação de seu coração acelerado. A marca em seu braço começou a arder, pulsar, queimar. E sua cabeça virou uma confusão.
Por causa do pacto, ele gritou. Qualquer movimento lhe deixava aterrorizado. Os urubus voando tinham garras afiadas, Krepto, um dragão que congelava com seu hálito, estava perto demais deles, e, pelo rei! Eles estavam na província da morte, o território da maior inimiga de Dave e sua princesa, Pedro Satomak podia estar em qualquer lugar, talvez atrás dele! Seu braço começou a tremer, e a fênix foi desfazendo-se em breu. Era como pixe escorrendo por seu braço. A cauda do pássaro escorreu por seus dedos, e desapareceu ao tocar o chão. Continuou a sumir até a cabeça do animal não estar mais no cotovelo de Dave. Seu braço esquerdo estava limpo, como se nunca tivesse sido marcado por luz. Então os sons voltaram com tudo, o mundo se estabilizou e Dave gritou mais uma vez. A palavra 'não' voava de sua garganta com força, com raiva, com dor. Missie segurava a cabeça de Bia, debulhando-se em lágrimas e apertando o rosto dela. Dave arrastou-se para mais perto. Suas mãos tocaram a poça de sangue que se formara abaixo do corpo. Estava quente e grudendo, mas ele não se importou. Aquilo ficaria preso em sua memória para sempre. Era seu pior dia. Uma chama avançava contra uma sombra, mas a escuridão dominu o fogo. Isabelle matou Bia. Ele podia ter adivinhado o significado daquilo. O sonho com Isabelle, o pacto... Bia não devia ter feito nada, ele não pedira socorro. Pelo menos não verbalmente.
A pele bronzeada do rosto dela estava manchada por uma única lágrima e sangue que continuava a escorer de seus lábios. Seus olhos estavam vazios, mortos. Ainda assim, ela era linda. Seus lábios saborosos, seu corpo deleitoso e a face mais perfeita de toda Érestha. E o riso mais delicioso que seus ouvidos já tiveram o prazer de ouvir, um coração enegrecido por mágoas do passado que ainda assim era quente e acolhedor. Ela não merecia nada disso. Dave aproximou seu rosto do dela e beijou sua boca cheia de sangue, acariciou seus cabelos e apertou sua mão.
-Dave, faz ela acordar! –Missie pediu, desesperada. –Por favor, Dave, por favor!
-Eu não posso –Dave sussurrou. As palavras tremeram em sua boca e uma lágrima lhe escapou.
-Por favor, acorde –Missie voltou a chacoalha-la. –Bia, por favor.
Dave queria estar sozinho. Só ele e Bia, para sempre, se fosse preciso. Alfos estava gritando, Riley chamava Alícia e Missie chorava. A cabeça dele estava doendo, girando, precisava de silêncio. Precisava de Bia. Ficou pior quando Tyler e Ajala chegaram até eles. A anã foi direto para Alícia, carregando um kit de primeiros socorros. Tyler atirou-se no chão, incrédulo, e gritou ainda mais alto do que Alfos. Dave não podia ser egoísta naquele momento. Todos faziam parte da vida dela, deveriam também estar ali em seu último momento.
-Temos que sair daqui, Dave –Riley falou. Ele carregava Alícia no colo, ainda desacordada, e demorou um bom tempo para continuar a falar, observando o corpo sem vida de Bia aos seus pés. –Temos que sair já.
Dave concordou com um aceno de cabeça. Ignorando as mãos de Tyler no rosto de Bia e os soluços de Missie contra seu peito, Dave passou uma mão por debaxo do pescoço dela e a outra sobre as dobras de seu joelho. Quando levantou-a, o sangue pingou e passou para sua própria roupa. Ele virou-se sem falar nada. O salgueiro-chorão não era uma árvore qualquer. Ela tinha um brilho, algo escondido atrás dela. Era uma passagem, e Dave não se importava de onde o deixaria. Ele andou naquela direção. Missie, Riley e Alfos seguiram-no sem falar nada. Tyler e Ajala protestavam, queriam voltar com os dragões.
-Então fiquem, levem-nos para Juliana –Dave falou, dirigindo-se a eles, mas ainda andando para a passagem. –Eu vou leva-la a seu pai.
-Vá, Duvin –Ajala falou. –Eu resolvo as coisas por aqui.
Bia não pesava nada. Seu sangue pingando e escorrendo não significava nada. Os olhos abertos, fitando o nada, não faziam a menor diferença. Elói precisava dela agora mais do que nunca, e Dave devia leva-la. Passou pela passagem de Tabata. Sob qualquer outra circunstância, ele teria parado e entrado em pânico, mas ele apenas continuou a andar. Pelo menos sabia para onde ir. A passagem resultava em uma outra árvore numa cidade castigada pelo sol do verão de Janeiro, perto da estação de metrô mais próxima do apartamento de tia Madalena. A estação São Bento estava cheia naquele horário, e três adolescentes carregando duas meninas ensanguentadas e desacordadas era um fato que chamava atenção. Alguns tentaram para-los, outros gritaram que eram assassinos, outros ainda pegaram seus celulares para documentar tudo. Dave continuaou a andar. As luzes da casa de Madalena estavam apagadas, assim como as de Nicolle. Estava cedo, deviam estar se preparando para a hora do almoço. Dave lembrava-se da passagem que usaram para chegar em Elói nas últimas férias, e chegou ali em pouco tempo.
Ali nevava tão intensamente que Dave não via o caminho a sua frente. Ele apenas sentia-o. Passou por mais duas passagens internas e chegou ao Castelo de Plasma em cinco minutos. Aos portões, os guardas não fizeram perguntas. Arregalaram os olhos e chamaram por ajuda. As criadas tapavam a boca com as mãos, choravam e desmaiavam. Dave não deixou que uma enfermeira tocasse em Bia, mas Riley entregou a irmã para ela. Dentro do castelo, as irmãs adotivas de Bia foram as primeiras a ver o corpo. Bonnie caiu no chão em prantos e Livia engasgou-se em seus soluços. Adam, o filho homem de Elói, apontou para o corredor que levava para o quarto de Bia e abraçou Livia. Dave já conseguia ouvir os gritos de dor de Elói. Missie foi na frente e abriu a porta do quarto da menina.
A cama dela ficava à esquerda. Era grande e tinha cortinas douradas atrás dela. A penteadeira à direita estava arrumada com perfumes, fósforos e fotos em molduras. A janela era grande e estava fechada por cortinas brancas finas. Deitado na cama estava Elói, segurando seu braço e olhando desesperado para os braços de Dave. O príncipe gritou e tomou o corpo para si.
-Minha filha!
Ele caiu no chão com horror e pesar no olhar. Missie agaixou-se e abraçou o príncipe por trás. Dave dobrou os joelhos para afagar os cabelos dela mais uma vez. Estava acabado. Era como se nada mais fizesse sentido. No dia seguinte ele não iria para a escola, nem falaria com Thaila sobre os acontecimentos. Queria voltar para sua mãe, passar a noite desfrutando de seu abraço que espanta pesadelos como fazia quando criança. Queria esquecer de Isabelle, deixar todos os momentos dos dois morrerem. Todos os segundos que ele passara pensando como sentia-se realmente em relação a ela deveriam ser queimados. Sua vida em Érestha perdera o brilho uma vez, sem Isabelle. Agora, estava completamente apagada, com a chama de sua vida pingando sangue em seu próprio carpete bege. Ele não sabia que era possível sentir dores físicas no coração, mas o seu batia tristemente, com desgosto, quase desistindo. Como uma cãibra a cada pulsação, uma rachadura formando-se a cada batimento.
-Eu ouvi –ele falou para o silêncio. Elói ainda lamentava-se como um cão entristecido e Missie chorava tanto que não poderia escuta-lo. –Ela disse que me amava. Eu ouvi, e não falei nada.
Como esperado, ninguém fez comentário algum sobre sua confissão. Ele sentia-se péssimo. O vazio dentro de si era assustador. Nada melhoraria aquela sensação. Chorar, gritar, espernear, lamentar-se... Tudo inútil. Ele queria poder deitar-se ao seu lado e fechar os olhos até ela acordar e chacolhar seu braço para mais um dia. Dave não sabia o que exatamente era esse tipo de amor de que Bia falara. Ele amava a mãe, e amava Thaila, mas de maneiras completamente diferentes. Ele faria qualquer coisa pelas duas, morreria quantas vezes fosse preciso. Lavava os pratos para mãe, coroava os cabelos da princesa, controlava Rick e passava tardes conversando nos jardins reais. Bia jamais deixaria que ele fizesse qualquer uma dessas coisas para ela. Preferia jogar video-games, cartas e dançar. Não eram as atividades preferidas de Dave, mas por Bia, ele faria isso tudo o dia inteiro apenas para ve-la sorrir. Adorava como ela ria de quase tudo, seus cabelos rebeldes que ela não se importava em domar, o seu cheiro, sua boca, seus olhos, e, principalmente, amava quando ela agarrava seu braço de dizia que ele pertencia a ela.
-Sou seu –ele sussurrou em seu ouvido. E deixou outras lágrimas escorrerem por suas bochechas.
-Dave, você... –Alícia irrompeu pela porta, apressada, apoiando-se em uma perna e parou, chocada, ao ver a condição de Bia. Ela arregalou os olhos e tapou a boca. –Era uma armadilha, uma distração.
-Alícia, não precisamos que você começe a se culpar agora, deixe-nos...
-Não, Dave, você não entendeu –ela interrompeu-o. Ajoelhou-se no chão e segurou o rsoto dele. –Escute, você não deveia ter ido, tinha que ficar, você fez exatamente o que ela queria! Pedro disse que se eu não me entregasse, ele iria atrás de Riley e de meu pai...
-Alícia, Bia está morta, eu não preciso...
-Escute-me! –ela gritou e apertou suas unhas no rosto dele. –Ele me contou seu plano, sabia que vocês viriam atrás de mim, mas eu não podia falar nada. Estão todos ocupados de mais, todos distraídos, eu era uma distração!
-Do que você está falando? –Missie perguntou.
-Pedro não queria a mim, o que eu poderia oferecer? Ele queria você, Dave –ele encarou os olhos de Alícia. Ela estava com medo. –Isso é tudo apenas uma distração. O objetivo não sou eu, nem você, nem Bia. É Thaila, Dave. Tabata tem agora um caminho livre até ela e o rei. Você tem que ir atrás deles, agora!
Um sussurro invadiu a audição de Dave. Era a voz de Thaila, serena, proferindo a palavra de proteção de seu pacto. Ujeb. Era uma palavra que Dave desconhecia. O significado era um mistério, a pronúncia diferente e a língua extinta. Mas naquele contexto, nada daquilo importava. A cobra gravada em seu braço direito brilhou. Seu sangue ferveu, o mundo voltou a tremer, e uma determinação impossível tomou conta de si. Ele não tinha medo de nada, não poderia ser parado por ninguém, tudo o que sentia era determinação. Ele saiu do quarto correndo, e continuou acelerando o passo. As passagens certas brilhavam a sua frente, eram tudo o que ele via. Talvez houvesse alguém seguindo-o. Elói, talvez Alícia, mas ele não queria saber. Thaila estava em perigo. Lawrence tinha razão. Quando recebera as marcas da árvore e da coroa, vira coisas completamente diferentes, mas eram ambas cenas do mesmo dia. Dave recusava-se a acreditar, eram muito distintas. Naquele exato momento, Thaila devia estar com um punhal negro em seu pescoço, coberta de sangue, com sua irmã gêmea ameaçando sua vida. Seu pior dia ainda não tinha acabado.
Brief life update: comprei guaraná, paçoca e requeijão. A vida é bela.
Vlw, Flw.
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