XXX -Bia
Nunca imaginaria que a sensação poporcionada pelas mãos geladas de Dave Fellows tocando-lhe junto de sua boca beijando seu pescoço desesperadamente poderia ser qualquer coisa diferente de puro prazer. Mas era angustiante. Passar dezoito horas olhando para o corpo sem vida de um amigo mudava tudo. Além de triste, desanimador e traumatizante, era frustrante. Missie passou metade do tempo chacoalhando Riley e gritando para ele voltar. Dave e Ajala gritavam um com o outro, procurando soluções, com raiva e descrença em seus olhos. Bia simplesmente parou e observou. Não estava ouvindo os gritos melancólicos de Alfos, nem sentindo o abraço morno de Tyler. Ela não sabia o que pensar. Em um momento, ele estava voando nas costas de um dragão negro. No outro, estava deitado aos pés dos amigos; morto. O sussurro que clamava por almas não parecia querer nenhuma das que avançava contra eles, e Bia fez seu melhor para ignorar-lo. Quando percebeu que não estava sussurrando para ela, Krepto já estava trazendo o corpo de Riley para o solo e as almas negras já tinham desaparecido. Os olhos dele estavam completamente pretos, nada do castanho animado usual. Sua pele estava gelada e as veias todas saltadas com uma coloração escura. Ajala foi a primeira a falar em voz alta que ele estava morto, e as palavras quebraram todos ao seu redor. Dave ajoelhou-se no chão, perguntando como aquilo era possível.
-Eu não vi nada lá em cima! –ele gritava.
-Ela queria a alma dele –Bia falou, ainda com o olhar fixo no rosto descolorado de Riley.
-E conseguiu –Tyler falou, apertando ainda mais seus músculos ao redor de Bia, que tremia mais a cada segundo. –Era um dos demônios de Tabata, não poderíamos ter feito nada. Ela não precisa de um forma física para andar pelo domínio de sua senhora.
Bia sentia que todos queriam dizer alguma coisa, mas não tinham palavras suficientes. Ela estava em choque. Não sabia dizer se a morte chegava tão facilmente a qualquer um ou estava aproveitando-se da estupidez deles. É natural pensar que é fácil driblar as dificuldades e safar-se da morte quando se tem um grande objetivo. Mas a vida não pausa para que você faça as coisas. O curso dela continua, independente de você concordar com ele ou não. Para você, o mundo é tudo. Para o mundo, você é insignificante. Ele não se importa de ter você concluindo seus objetivos ou morrendo no meio deles. É indiferente. Mas para Bia, Riley era uma boa companhia, alguém que sugeria e gostava de brincadeiras idiotas, alegre e sempre disposto. É verdade que eles não eram melhores amigos e nem se falavam a todo o momento, mas ve-lo simplesmente morrer era horrível. A determinação e liderança do menino eram surpreendentes. Ele queria a irmã tanto quanto Anastrich queria almas. Por que era justo que ela ganhasse o que queria e Riley não? Foi então que percebeu que chorava, sem derramar lágrimas, e todos aglomeraram-se num abraço que ela preferia ter evitado. Queria espaço para pensar e absorver tudo o que a viagem pelas terras do mal a haviam proporcionado até então.
Ficar duas horas presa numa cela subterrânena não fora nada divertido. Ela e Dave estiveram em puro desespero por alguns minutos, depois forçaram-se a sentar para pensar em alguma coisa. Mas Bia não conseguia. Uma de suas melhores amigas estava deitada no chão com a testa sangrando e alucinando em seus pesadelos. Por poucos segundos ela pensou na possibilidade dela partir. Se Missie a deixasse ela não saberia como reagir. Provavelmente morreria de desgosto. Ela sentia-se apreensiva mesmo depois dela levantar, esperando que ela caísse em agonia a qualquer segundo. Ser beijada por ela não consertava essa situação, fazia com que ficasse ainda pior. Queria apenas dizer que tudo ficaria bem, que ela ouvisse palavras boas e esperou que ela se contentasse com isso, mas subestimou-a. Não ficara brava; nunca ficaria. Era apenas frustrante não ser capaz de oferecer o conforto desejado por sua amiga. Ela achou que aquilo já eram emoções de mais para uma viagem só, então Tyler Duvin estendeu a mão na sua direção. Apesar de Elói Bermonth, Missie Skyes, Marcy Klein e até Dave Fellows, aquele foi o raio de sol mais significante de toda a sua vida. O abraço dele fez parecer que Dandara e Bianca estavam coexistindo mais uma vez, em paz, felizes como se nada tivesse acontecido. Ela devia ter aprendido a não subestimar a vida, pois sempre que algo lhe fazia feliz, outra coisa dava terrivelmente errado. O corpo frio de Riley Weis era sua punição por pensar que tudo estava acabado e o que restava era encontrar Alícia. Tal pensamento era uma ofença para aquelas terras. Nada acabava bem por ali; não enquanto Tabata estivesse sentada no trono de pedra com uma coroa em sua cabeça. Mas então, o carioca se levantou. Seus olhos voltaram ao castanho natural, o sangue correu mais uma vez por suas veias e ele respirou com tanta necessidade que engasgou. Ajala correu para ajuda-lo e Missie abraçou-o apesar dele tossir loucamente por ar.
-Anastrich –ele falou, ainda respirando pesadamente. –Fez com que eu a matasse.
-Você esteve morto, Riley –Bia disse, andando vagarosamente em sua direção. Não que fosse de todo ruim, ela pensou mas as pessoas podiam parar de ressussitar na terra da morte. –Por dezoito horas, seus olhos...
-Eu sei –ele sentou-se e abraçou as próprias pernas. –Ela me obrigou a mata-la. Eu assisti à minha irmã morrendo pela minha própria espada.
-Está tudo bem Riley –Missie abraçou-o com mais calma. –Alícia está viva, você não foi a lugar nenhum.
-Sei que não era real, Missie –ele disse, encolhendo-se ainda mais. –Mas ainda assim foi horrível.
Todos concordaram que queriam sair dali o mais rápido possível. Fizeram os cavalos correrem quase tão rapido quanto o voo dos dragões. Agora, Bia já tinha passado da fase onde queria lágrimas. Passado também do ponto onde encontrava determinação nas motivações mais clichés possíveis. Ela estava seguindo em frente. Cegamente obedecendo ordens e puramente caminhando. Qualquer um poderia ser o próximo, mas nem todos voltariam. A única esperança que tinha era que aquele lugar não conseguisse sugar sua última esperança. Não estava triste, nem preocupada, ela apenas existia para acompanhar os outros. O único problema é que parecia que todos tinham exatamente a mesma ideia. Tyler seguia o mapa e a bússula como se aqueles fossem seus mestres e os outros seguiam ele. No acampamento, Ajala obrigou Riley a dormir na mesma barraca de uma mulher que era uma enfermeira formada. Ele estava mal. Vomitava e tremia e não queria falar sobre o que tinha acontecido enquanto esteve morto. Bia começava a acreditar que precisavam de Alícia mais do que ela precisava deles. Os três amigos restantes expremeram-se naquela noite para caber na mesma barraca. Bia deitava-se entre os outros dois e ambos abraçavam-na como se fosse uma boneca que tinham que dividir. O rosto de Dave repousando à sua esquerda e o nariz gelado de Missie à sua direita. A respiração dos dois era quente em seu pescoço e lhe causava arrepios. Os braços deles passavam por cima de sua barriga e dificultavam sua respiração. Era uma sensação muito estranha, mas ela conseguiu dormir pelo menos um pouco.
Na manhã seguinte, ninguém olhou no rosto de ninguém. Arrumaram as coisas, montaram os animais e partiram do pântano. O dia inteiro foi apenas mais silêncio e melancolia. Estavam todos mortos, cavalgando e voando com seus corpos, enquanto as almas ficavam caladas para não serem encontradas e as mentes viajavam para lugares seguros. O próximo acampamento foi montado às margens do Rio Leite. As águas deste eram brancas e densas, e nenhum ser vivo habitava aquelas redondezas. Ela não se deu ao trabalho de fazer perguntas. Simplesmente não se importava. Naquela noite Missie decidiu deitar-se sozinha na outra barraca. Dave estava ao seu lado, no mesmo saco de dormir, limitando o movimento de ambos. Apertava as unhas na barriga dela e mastigava seu pescoço mais do que beijava-o. Nenhum dos dois estava bem, e foi pior ainda passar horas encarando o teto e pensando. Quando a mãe de Bia dizia que ela devia apreciar as pessoas e dizer sempre o quão importantes elas eram, a menina não imaginava que chegaria a seguir esse conselho tão cedo. Tinha que se lembrar de abraçar Missie e Tyler. Sentar-se com Elói para fazer alguma coisa chata que ele gostava. E passar todo o resto de seu tempo abraçada com Dave Fellows. Bia fechou os olhos e desejou que as terras de Tabata não a ouvissem.
-Eu te amo –ela falou.
Dave agora estava de olhos fechados, respirando calmamente, dormindo. Aninhou-se mais confortavelmente no abraço e adormeceu também. Eles levantaram-se cedo na manhã seguinte. Às sete e quinze, já estavam prontos para continuar. Ela deu um abraço demorado em Missie, que não fez perguntas, e outro em Tyler, que sorriu desconfiado para ela.
-Por que tanto afeto? –perguntou. Desde pequena Bia era uma pessoa que presava seu espaço pessoal. Abraçava quando tinha que abraçar e não gostava que os outros tocassem nela sem bons motivos.
-Prefere que eu vá embora? –sorriu.
-Não –ele puxou-a de volta para o abraço. –Prefiro que fique. Sempre. O que vai fazer depois... Disso tudo?
-Ficar o mais longe daqui que eu conseguir. Convenientemente, esse lugar é o meu quarto. Por que a pergunta?
-Porque eu acabei de te encontrar –ele soltou o abraço para olha-la nos olhos. –Não vai sumir de novo, vai?
-E você não vai morrer de novo, promete? –ela disse, sorrindo.
-Claro, prometo –soriu de volta. –Depois que eu concluir as missões dos sem-medo por aqui eu te procuro. A sobrinha do meu padrasto tem um cavalo, ela participa de corridas. Vai gostar dela.
-Eu não gosto de pessoas, Tyler, sabe disso. Mas parece ótimo.
Tyler sorriu ainda mais e abraçou-a mais uma vez. Ele cheirava a tudo de bom que acontecera em sua infância. As viagens de trem, os truques de magica, o sorriso da platéia... Esquecera-se de como sentia saudades de tudo aquilo. Tyler a fazia pensar que talvez Dandara não fosse assim tão ruim. Seu pior dia era ruim, mas todo o resto fazia parte dela, querendo ou não. E era maravilhoso. Todas as terças-feiras era o dia da mãe dela fazer o jantar. E Bia ajudava com muita alegria. Às quartas, Tyler e ela cavalgavam pela cidade, onde quer que estivessem. Já estiveram em toda Érestha, faziam colaborações com outros shows e tinham amigos pelo reino todo. Bia devia encontrar coragem para ver todos mais uma vez. Sua vida não era miserável, era perfeita. O menino falou para ela preparar-se e Bia montou o cavalo com um sorriso. O silêncio seguiu com eles, mas Bia parecia respirar com maior facilidade.
-Eu não conseigo mais ver –Riley falou, levando o cavalo para o lado de Bia. Ela franziu a testa para ele. Riley levava um cobertor ao redor do corpo e estava pálido, quase verde. –A luz da fênix. Desapareceu.
Bia olhou para seu braço. A marca estava tão viva quanto no dia em que a fizera. Ela sentia Dave tanto quanto Elói. Parecia tudo normal.
-O que isso quer dizer? –Dave falou. Ele aproximou-se pelo outro lado, deixando Bia entre os dois tendo que virar a cabeça sem parar.
-Eu não sei, mas é estranho –Riley tossiu antes de continuar. –Talvez seja normal, quem sabe. Mas... Achei que deviam saber, só isso.
-Você está melhor? –Dave perguntou. Riley apenas deu de ombros e guiou o cavalo para mais perto da enfermeira. –Tyler disse que estamos perto.
-Ótimo –Bia falou. –Eu quero ir para casa.
-Ótimo? Sabe o que isso significa, não? Que em algumas horas estaremos frente a frente com o homem que assassinou meu pai.
Ele abaixou uma das mãos para o bolso onde guardava Mata-Touro. Estava acariciando a metade da pedra vermelha que dividia com Maria. Bia não sentiu-se mal pelo comentário. Estava cansada de sentir. Inclinou-se no cavalo e beijou a bochecha de Dave.
-Estou aqui –ela sorriu. Dave sorriu de volta e o mundo pareceu sorrir junto dele. –E tenho flechas e fogo.
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