XV Bia
Alícia Weis tinha razão. Algo de ruim estava para acontecer, e Bia Vallarrica enlouqueceria antes de saber do que a afirmação se tratava. No começo, ela achou que fosse apenas sua mente pregando peças crueís com ela. Via os olhos amarelos em todos os lugares: enquanto ensaboava o corpo debaixo do chuveiro, na extensa mesa de jantar do Castelo de Plasma, no espelho de sua penteadeira. Eles apenas apareciam e piscavam para ela. Sempre que os via, Bia sentia-se sendo envolvida por sombras, abraçada pelo medo, saudada pelo desespero, e então eles desapareciam. Ela ficava paralizada, temendo que o mundo a sua volta desacelerasse e aquele maldito sussurro invadisse seus ouvidos e corrompesse os tímpanos, mas nunca acontecia. Uma semana e meia depois da festa de Halloween maldita ela decidiu que não estava vendo coisas. Os olhos eram reais. Sentia-se observada em todos os lugares para onde ia. No décimo primeiro dia ela viu um homem. Tudo o que saberia descrever dele era o sobretudo preto que vestia. Nunca tinha tempo de reparar em mais do que isso. O homem estava lá, ela piscava, e já não estava mais. Algo de muito ruim acompanhava aquela figura. Medo, morte, sangue ou talvez tudo de uma vez. E ninguém mais o via além dela mesma. Marcy recomendara chá quente e descanso ou algumas boas doses de tequila. Bia tentou os dois, mas ainda vislumbrava o sobretudo preto pelo canto dos olhos e demorava a dormir por causa dos olhos em sua janela. Na véspera do dia quinze de novembro, aniversário do seu príncipe, Bia acordou no meio da noite. O sussurro havia finalmente chegado.
-Por favor, vá embora.
Ela encolheu-se em suas cobertas e choramingou súplicas desesperadas. O relógio despertador marcava duas horas e um minuto. De sua janela ela podia ver parte da Torre de Gelo. Neve escorria de suas paredes vinte e quatro horas por dia. Naquela madrugada os flocos caiam em câmera lenta. O sussurro tinha o mesmo tom horripilante e causava em Bia os mesmos arrepios da noite das bruxas, mas já não chamava por Ember. Clamava por ossos. Bia podia sentir a fome em suas palavras, o desejo monstruoso de esmagar ossos humanos em seus dentes e sentir sua crocância, seu sabor. O sussurro ficava cada vez mais alto.
-Ossos –era tudo o que a voz dizia, tudo o que desejava. –Ossos.
Bia fechou os olhos. Cobriu-se até a cabeça apenas por precaução. Sabia que a neve da Torre de Gelo ainda não atingira o chão e que o relógio ainda marcava duas e um, mas sentia como se aquilo estivesse acontecendo ha eras e não teria fim.
-Ossos.
Ela sentiu um peso adicionando-se a sua cama. Sua respiração falhou e o coração descontrolou-se em seu peito. Eu vou morrer, mas eu não posso morrer, pensava. Tenho que lutar, tenho que...
-Ossos.
A respiração quente em sua nuca a fez gritar. Algo áspero e molhado como uma língua de gato arranhou seu pescoço. Ela jogou as cobertas para o alto e virou-se para encarar a dona da voz amaldiçoada. Sua posição de ataque dizia que não tinha medo, mas as mãos tremendo, o suor na testa e as lágrimas descontroladas contavam uma história diferente. Ela preparou-se para atear fogo em tudo ao seu redor, mas não viu nada. A neve ainda caia vagarosamente, e a hora no relógio não mudava. Ainda está aqui, pensou, aterrorizada. Uma risada baixa, diferente da voz dos ossos, soou de algum ponto atrás de si. Ela arregalou os olhos, mas tinha que vencer o medo. Virou as costas vagarosamente.
-Medrosa.
Terminou de voltar seu corpo para o dono da voz e deu outro grito. Viu apenas seu reflexo no espelho. A neve voltou a cair e o número um sumiu do visor do despertador. Bia tapou a boca com as duas mãos e não conseguiu voltar a dormir.
O dia que se seguiu foi um pesadelo. Como representante do príncipe Elói, ela deveria supervisionar todas as preparações para seu aniversário. A decoração do castelo, o menu do jantar, os horários em que o príncipe estaria presente nos desfiles pela província, a roupa que ele usaria, a roupa que ela usaria... Era difícil concentrar-se com as marcas de proteção em seu braço. Preocupava-se principalmente com Elói. Seria a data perfeita para algo atacar, se assim desejasse. Contudo, Dave Fellows fechava os olhos todas as noites numa cama ao lado de uma floresta amaldiçoada. Mortes já haviam sido registradas ali. Sachabella, a servente venenosa de Tabata, aterrorizara aquela escola ha dois anos. A dona dos sussurros de ossos podia muito bem estar morando ali, esperando o momento certo para assassinar o representante da futura rainha.
-Bom dia, família do Castelo de Plasma. Mas que belo dia!
Elói apareceu descendo as escadas, vindo de seus aposentos. Vestia seus pijamas de seda e um roupão de algodão. Os cabelos, normalmente arrepiados para cima com muito gel, escorriam por seu rosto claro; vermelho e branco misturando-se em mechas desgranhadas. Todos desejaram um feliz aniversário e um bom dia com um sorriso no rosto. Geralmente ela adorava a sala do trono de seu príncipe e focava-se de mais nela. A cadeira era uma escultura de gelo, mas veias de lava corriam por dentro dela e pequenas erupções aconteciam a todo o momento. As paredes eram escuras e o lustre de gelo não fazia muita diferença. A luz vinha das janelas enormes à direita e atrás de Bia, na mesma parede da porta principal. A escada por onde o príncipe descia estava ao fundo, e dividia-se para a esquerda e ara a direta, com estátuas aleatórias em seus degraus. Mas Bia não conseguia tirar os olhos das janelas, esperando ver a neve parar de cair e o sobretudo preto chama-la de medrosa mais uma vez. A prancheta em sua mão tremia e nenhum item havia sido checado até então.
-Senhorita? -Uma mão tocou seu ombro e Bia pulou para trás. Era uma das cozinheiras, esperando por seu veredito sobre o sabor do sorvete. –Está tudo bem?
-Sim, claro –ela chacolhou a cabeça e assinalou uma opção qualquer na prancheta. -Nozes. Que seja sorvete de nozes esse ano.
-Como queira, senhorita. Obrigada –a moça curvou-se e voltou para a cozinha.
Os irmãos adotivos de Bia pulavam para abraçar o príncipe pai. Lívia e Bonnie beijavam-lhe as bochechas exageiradamente. O menino, Adam, bagunçava-lhe os cabelos. Ele era o mais velho dos adotados e mantinha uma relação muito boa com Elói. Eles gostavam de jogar jogos de tabuleiros juntos. Para Bia, Adam era filho de sangue do príncipe. Estava no Castelo muito antes de Bia chegar e dividia os memos olhos cor de mel com Elói. Tinham a mesma energia, o mesmo sorriso e as mesmas paixões. Além de tudo, ele não tinha sobrenome. Era Adam e nada mais. A menina nunca mencionara essa teoria para Elói. Ele não era casado e se Adam fosse mesmo seu herdeiro, teria o mesmo destino de Terlúria, filha das águas. Seria exilado, se não morto, de acordo com as leis da rainha Thaís. E Adam era um bom garoto. Bia não o detestava. Apesar da proximidade, Bia ainda era a favorita. A prova estava em seu título de representante. Ela abraçou-o também e desejou um feliz anivesário, disfarçando o tremor da voz da melhor maneira que conseguiu.
Disfarçou o medo enquanto ajustava a gravata de seu senhor. Disfarçou a insegurança enquanto acenava para o público ao lado dele nas paradas pela província. Disfarçou os arrepios constantes quando as empregadas ajudavam-na a lavar-se e vestir-se. Forçou um sorriso quando a princesa Thaila e Dave Fellows passaram pela porta de entrada à noite. A futura rainha era sempre a primeira a chegar para o jantar. Elói abraçava-a por longos segundos, depois girava-a no ar e sorria. Ela acalmou-se com a presença de Dave. Assim sabia que não estava em perigo. Ao invés de correr para abraça-lo, ela firmou os pés no chão e encarou as próprias unhas. Estavam compridas, mas não feminias. Largas, roídas, sujas. Ela queria poder usa-las para arranhar os sussurros e os olhos amarelados. Ainda podia sentir a língua áspera em seu pescoço.
Lívia chegou primeiro em Dave Fellows. Ele não a conhecia. A menina apresentou-se eles se abraçaram. Depois Bonnie, Adam e por último Elói. Só então ele aproximou-se de Bia, mas a menina estava perdida, olhando pela janela.
-Medrosa –a voz repetiu em sua mente.
-Ossos –o sussurro preencheu seus ouvidos. –Ossos.
-Ei!
Dedos mornos tocaram-lhe o pescoço, próximo de onde a língua a lambra e o hálito quente lhe assombrara. Ela bateu na mão para afasta-la e deu um passo nervoso para trás.
-O que foi? –era Dave. Bia respirou aliviada. Passou as mãos pela testa que suava frio e desculpou-se. Com maior cautela, ele esticou os dedos para toca-la novamente enquanto a outra mão permanecia no bolso. Bia fechou os olhos e deixou que ele a beijasse, mesmo na presença dos irmãos adotivos, a futura rainha e o príncipe pai. –O que tem nas janelas? -Bia virou o rosto para a esquerda. Nada, pensou. Não ha ninguém nas janelas quando todos estão olhando. Ela não consguiu responder. Dave aproximou-se dela de novo, mas para falar em seu ouvido –Alícia também tem probemas com janelas.
Ele voltou para o lado de sua princesa.
-Tudo em ordem, dominadora do fogo?
Voltou seu olhar para as pessoas que a observavam, preocupadas. Era rei Éres quem falava com ela. Seu manto vermelho e dourado parecia pesado em seus ombros. A barba branca crescera livremente, crespa, e alcançava o primeiro botão de sua camisa branca. O cabelo também não fora aparado ha tempos. A coroa de ouro e almofadas vermelhas descansava preguiçosamente sob sua cabeça, pendendo um pouco na direção de Thaila, como se soubesse que logo alojaria-se nos cabelos roxos da princesa. Ele não parecia doente, mas todos sabiam que estava. Sua mente o torturava, assim como a de Alícia Weis e a de Bianca Vallarrica. Ele falava sobre morte abertamente. Comentava com os filhos como as coisas deveriam ser assim que ele partisse. Seria enterrado ao lado de sua esposa, nos jardins de seu castelo. Thaila estaria encarregada de decidir como o reino seguiria dali. Quais leis manteria, quais excluiria. Apenas algumas ele fazia questão de manter, e a filha promeia, sempre com lágrimas nos olhos. Será que ficarei como o rei? Pensou. Onde está Bianca Vallarrica? Parece que a pequena e assustada Dândara está voltando. Não posso deixaer que isso aconteça.
-Sim, estou bem.
-Ótimo. Então leve-nos até a mesa de jantar. Quero carne.
-Temos que esperar por minhas irmãs e irmãos, papai –Elói advertiu-o. –Mas podemos nos sentar.
-Irmãs? No plural? -Elói trocou um olhar significativo com Bia. O pai continuou –e que irmãos?
-Sim, papai. Suas crias. As gêmeas da terra e dos céus vêm também.
O velho franziu o cenho para Bia. Ela apenas concordou com Elói. Fazia parte do plano. Tamires teria seu lugar na guerra para satisfazer seu coração escuro. Tâmara não gostaria nada de tê-la ali, mas seria divertido. Bia adorava as brigas das primeiras irmãs. Ela achava que Missie Skyes estava estendendo de mais o plano, mas queria ter certeza de que não aconteceria mais nenhuma discução grande entre as gêmeas. Ela inspirou o ar morno do Castelo. Consertou a postura e tentou pensar em coisas que Bianca Vallarrica normalmente pensaria. Tinha que deixar os olhos e o sobretudo de lado. Era dia de festa. Falaria com Alícia e arrancaria explicações dela antes de pirar de vez.
Seguiu a frente dos outros, guiando-os pelos corredores de gelo e lava seca. A sala de jantar estava decorada com papoulas brancas e vermelhas. A mesa dispunha de vinhos, cervejas, água e sucos. Não tiveram que esperar muito por Tamires. Ela cumprimentou a todos, mas abraçou o pai por um tempo bem maior. Missie agradeceu Elói com um sussurro. Bia notou as olheiras debaixo de seu olho morto. Mas será que a mente de todos é assombrada? Teresa e Edgar chegaram juntos, acompanhados de seus representantes. Elói sentava-se à cabiceira e divertia-se com uma caneca cheia de cerveja. Elogiou os cabelos recém cortados de Teresa e os desenhos de dragão na barba de Edgar. Conversou amigavelmente com Elias, o príncipe dos ventos, e pediu que servissem frutas. Tâmara sempre se atrasava.
-Acho engraçado como as feições de todos se assemelham, mas os olhos são particularidades de cada príncipe e princesa –Dave observou. Sentava-se ao seu lado na mesa, de frente para sua senhora. Segurava sua mão por debaixo da mesa e parecia relaxado. Bia pensou que devia estar tocando as botas coloridas de Thaila com pontas dos sapatos também.
Os olhos de Edgar eram negros e profundos com bordas quase douradas. O sol e a noite em suas íris. Teresa tinha as íris azuis claras como áua cristalina, e Tamires, azul escuras como o céu numa noite limpa. Bia já vira muitas fotos e pinturas da rainha Thaís. Sabia que os olhos de Elói eram os olhos dela; doces e dourados como mel. Os olhos de Tâmara eram verdes como seu reino de terra, e os de Elias, castanhos como o do rei. Bia acreditava que Tabata teria olhos negros e só negros. Tão escuros quanto a morte. E os de Thaila eram indescritíveis. Ora eram azul claro, ora eram violetas.
-Sim –ela concordou –é engraçado.
-Por que nunca me disse que tinha irmãos aqui no Castelo de Plasma?
Ela sorriu. Adorava perguntas que iniciavam-se por "por que nunca me contou". Pediu que servissem-na de vinho antes de continuar.
-Tem muito sobre mim que...
-Que ninguém sabe –Dave revirou os olhos. –Conheço essa frase. Pretende dividir sua vida secreta com alguém, algum dia?
-Não antes de algumas taças de vinho.
Ele tomou a bebida das mãos dela e afastou-a.
-Você não precisa disso, Bianca.
Ela adorava a ousadia tão natural na voz de Dave quando ele a tratava por Bianca. Quando as irmãs ou Missie faziam, era por provocação. Quando o rei fazia, era por respeito. Mas quando o nome saía dos lábios de Dave Fllows, era diferente. Não tinha motivo nenhum, mas era relevante ao extremo.
-Acredite –ela pegou a taça de volta e tomou um longo gole –preciso muito disso.
-Bianca é um ser humano perturbado –Missie falou, pulando na conversa dos dois do outro lado da mesa. Ela comeu uma uva roxa para então concluir –Acostume-se, Fellows.
-Que seja –o menino suspirou e apertou a mão que segurava. Levantou sua taça na direção de uma empregada –Vinho.
Quando foi servido, brindou com Bia. A menina riu.
-Cuidado –Missie advertiu antes que Dave levasse o copo à sua boca –ou vai acabar como eu ou Marcy Klein: preso a ela. Como um vício.
-Tarde demais –ele tomou o vinho. Fez uma careta e as meninas riram.
-Vossa Alteza, a princesa Tâmara da terra –alguém anunciou.
Ela passou pela porta e seus olhos foram levados diretamente para a gêmea. Manteve a postura e foi primeiro ao irmão. Depois, o pai e por fim, Thaila. Cumprimentou os outros apenas chamando-lhes o nome e sorrindo. Tinha um tom amargo ao pronunciar o nome de Tamires. O jantar finalmente iniciou-se, e Bia sentiu-se Bianca novamente. Bebeu e comeu e conversou e riu a noite toda. As primeiras gêmeas não trocaram palavras e ninguém importou-se. O melhor da noite foi não ter medo pela primeira vez em quase duas semanas. Ela lembrou-se de quem era, de porque era e com quem deveria se preocupar todas as noites. E não era ela mesma.
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