XXII -Alícia
-Talvez ela queira incentivar a si mesma a usar mais seu legado. Não vemos muitos polaristas por ai.
Matheus deu outra mordida em sua torta pavlova. Alícia estava sentada num restaurante em alguma lugar da Nova Zelândia, comendo a tal torta junto de seu colega de natação. Ela ficara muito feliz ao receber o convite dele para se encontrarem naquele restaurante que ele gostava de frequentar. Nunca antes havia saído com alguém. Ficara muito chateada por estar atrazada e contou sobre o encontro que teve com a princesa da terra. Não sabia se era certo falar sobre aquilo, mas sentia que precisava parecer interessante. Precisava falar de outra coisa que não fosse sua frustração como meia-irmã de Ramona. Matheus também tinha irmãos mais velhos, mas aparentemente, nenhum deles o xingava de bastardo imundo, como Ramona fazia. Ela sentava-se com a postura perfeita e comia como se estivesse na presença da princesa Thaila. Tentava mastigar com classe e respirar apenas o óxigênio necessário. Não sabia como se comportar, nem o que dizer. Sempre que se encontrava em situações novas, pensava na sua única amiga da favela: Laura Souza. Ela estaria muito animada em saber que Alícia fora convidada para sair. Estava fazendo pelo menos 25 graus ali em Wellington. As pessoas estranharam dois pré-adolescentes andando pelas ruas e carregando agasalhos de frio, luvas e toucas. Matheus ainda vestia um casaco de moletom, e Alícia achou que era apenas para combinar com a calça jeans escura e seu cabelo com gel. Ela havia colocado algumas roupas por baixo de todas as de frio, então estava confortável.
-Meu pai nasceu em Érestha –Matheus comentou. –No mesmo dia do aniversário da princesa da terra. Sente-se todo especial por isso. Diz que está destinado a algo grande ao lado dela. Ele é louco –seu risada antes de continuar. –Mas isso é coisa de pai, não é? São todos loucos.
Alícia abaixou o olhar e deu de ombros. Queria se lembrar de alguma coisa sobre seu pai. Queria poder concordar com Matheus. Queria saber o por que de seu pai ter deixado Ruby com dois bebês recém nascidos. Ficou brava e deu um soco na mesa, assustando o menino.
-O que houve? –ele perguntou, com a boca cheia de torta e olhos arregalados.
Alícia quis chorar. Mas que droga! Mil vezes droga! Sempre estragava tudo porque não conseguia se conformar. Ouvir falar sobre qualquer relação pai e filho doía. Ela tinha ciúmes e tinha raiva. Tudo o que sabia sobre seu pai era que seu nome era Adnei. Ruby dizia que não conhecia a família dele e seus meio-irmãos se recusavam a falar muito sobre ele ou eram muito pequenos para lembrar. Alícia sabia que os meio-irmão sentiam-se mal por verem a mãe com um novo homem em menos de um ano após a morte do pai deles. Porém, não conseguia entender porque lhe privavam de seu direito de saber.
-Se algum dia eu o encontrar, vou gritar e bater e...
Ela não conseguiu conter suas lágrimas. Presentes de dias dos pais jogados no lixo, eventos pai e filhos ignorados, comerciais e programas de TV que só contavam mentiras. Para ela, nada disso existia. Não sabia o que era uma família pois nunca tivera um pai. Quando se deu conta, havia chorado todas essas palavras para Matheus. Ele a abraçou.
-Não sabia –disse. –Me desculpe por te fazer pensar nisso.
-Não –ela limpou as lágrimas. –Eu quem me desculpo. Isso é idiota, eu sei. Preciso parar com isso.
-Não tem problema. Vem, eu te ajudo com a mala.
Eles pagaram as tortas e seguiram pelas ruas até a passagem para Érestha. Vestiram-se com os casacos pesados e andaram pela trilha na floresta até a passagem que ela conhecia para a praia no Rio. Conversaram sobre outros assuntos, desviando os pensamentos dela da família. Chegaram a mencionar o acampamento da PIC, mas Matheus falou que não era nada de mais.
-Sinceramente, -ele disse –fazem muito drama. Não é tão sensacional assim. Mas fiz muitos amigos do reino todo, isso é bem legal.
-Bom, não sei se vou me dar tão bem então –ela comentou em voz baixa.
Ele parou e revirou os olhos. Alícia virou o corpo para vê-lo encarando-a. Ele deu um passo para a frente, eliminando a distância entre os dois. Levantou o queixo dela e deu-lhe um beijo. Talvez tivesse durado apenas alguns segundos, mas para Alícia, foi como se o tempo tivesse parado. Ela levou um susto, no começo. Então entendeu a situação, mas não podia acreditar. Seu coração acelerou por algo que não era medo pela primeira vez em muito tempo. Borboletas fizeram cócegas em seu estômago. Continuou paralizada após ele se afastar e soltar seu rosto. Teve medo de desmaiar mais uma vez.
-Você mesma falou que tem que para com isso de se diminuir –ele falou. Sorriu e Alícia pos-se nas pontas dos pés para alcançar os lábios dele de novo. Ambos ignoraram a neve e o vento frio por mais alguns minutos. –Vai ser legal. Foi bom passar esse tempo com você. Te vejo em breve.
E foi embroa. Alícia ainda ficou estática por alguns minutos, deixando a neve cair e congelar seu nariz. Sentiu-se uma idiota e depois ficou feliz. Laura Souza com certeza estaria muito feliz de vê-la agora. Ela puxou a mala e passou do frio para o calor do Rio.
Romena era a única que estava em casa. Sentada em frente à TV, não disse nada quando Alícia passou por ela com um sorriso bobo no rosto. Ela deitou em sua cama e encarou o teto por alguns minutos, sorrindo. Imaginou quando eles se veriam novamente, o que aconteceria entre eles e que nome dariam para seus filhos. Ficou perdida em seus próprios pensamentos até Romena gritar em comemoração a algum jogo na TV e assustá-la. Ela bateu a cabeça na borda da cama e fez um pequeno corte.
Bufando, ela andou até o quarto da mãe para procurar um band-aid. Alícia queria a cama grande da mãe para si. Sentiria-se mais confortável tendo todo esse espaço. Ela abriu a janela para deixar entrar luz. Puxou a cadeira que usava com a máquina de costura para poder alcançar uma prateleira alta da estante. Tirou de lá um kit de primeiro socorros e jogou-o sob a cama. Não foi difícil achar o band-aid, mas precisava de um espelho para colocar direito no seu machucado. Espalhou tudo da caixa sob a cama para ver se encontrava um, mas achou coisas muito diferentes.
Além de algodão, alguns comprimidos e acetona, a caixa tinha fotos velhas e um colar. Ignorando a dor e o sangue que escorria de sua testa, Alícia pegou as fotos para vê-las. Uma delas era uma foto de família antes dela e Riley nascerem. Romena ainda era um bebê e Rômulo tinha um sorriso exageirado de criança. O pai dos três meio-irmãos estava ao lado de Ruby. Era um homem alto e gordo, com barba e um sorriso simpático. Alícia nunca tinha visto fotos do primeiro marido de sua mãe. Não se demorou muito nessa foto. As outras eram retratos dos três meio irmãos na primeira série da escola do Rio. Ramona tinha rasgado a de Alícia. A última era essa família em um aniversário da princesa Thaila. Tia Rosa havia tirado a foto, Alícia pensou. Ela ficou um tanto chateada por não achar nada seu ou de Riley, mesmo sabendo que a estante de livros de Ruby estava cheia de porta retratos da família inteira. Chacoalhou esse pensamento ao lembrar-se das palavras e dos beijos de Matheus.
Pegou o colar, que tinha um pingente porta foto redondo com um A gravado na frente. Um dos lados estava vazio. No outro havia um homem. Alícia pareceu levar um choque ao olhar para aquele rosto. Foi rapidamente transportada de volta para o orfanato do pesadelo, onde um menino com olhinhos assustados a encarava da janela. Tinham os mesmo olhos e o mesmo nariz. O queixo era igual e o olhar também. Uma gota do sangue da sua testa pingou no colchão de sua mãe e ela se levantou rapidamente. Juntou todas as coisas de volta na caixa e guardou no lugar. Colocou o colar em volta do pescoço e correu de volta para seu quarto.
Ficou encarando o rosto de seu pai por um bom tempo, esquecendo a testa machucada e o beijo e o presente de Tâmara. As cenas de seu pesadelo martelavam sua mente, deixando-a confusa e cansada. Se aquele pesadelo tinha um fundo de verdade, o que seu pai estaria fazendo no mesmo orfanato que Pedro Satomak?
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