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XXI -Alícia

                  

Não contou para os meninos, mas o dentista e o tal encontro não eram as únicas razões pela qual ela decidiu não ir à comemoração do aniversário do rei. Os pesadelos haviam voltado. Sua cabeça latejava e a incomodava bastante. Isso começara após Riley contar uma história maluca sobre côndefas e um assassino de Tabata. Ele estava muito obcecado, Alícia estivera preocupada. Ficava acordado até tarde sentado nos puffs vermehos com o rosto perdido num livro. Afirmava que o homem do dia da explosão na praça era Pedro Satomak e que ele era uma côndefa. Apresentara fatos, coisas que considerava ser provas de que estava certo e fazia Alícia ler aquele maldito livro da autoria de Hynne Stewart. O mais perturbador foi o que ele lhe contou sobre se sentir bem. O que foi mais perturbador ainda foi que ela também sentia-se bem. Não sabia porque o nome causava nela uma sensação tão boa, e nem queria saber.

O sonho não parecia ser outra obra de Isabelle. Era só um pesadelo, mas ainda assim a atormentava. Via um orfanato. Prédio grande, paredes coloridas e os dizeres "Orfanato para crianças da Senhora Liz". Duas crianças tinham os rostos grudados na janela de um dos quartos; dois meninos. Um era moreno e tinha cabelos bagunçados. Parecia muito com uma versão mais nova de Riley, mas Alícia sabia que não era o irmão. Achou que fosse apenas para provocá-la. O outro menino tinha os olhos levemente puxados e um sorriso estranho nos lábios. O segundo disse alguma coisa para o primeiro e ouviu-se um barulho muito alto. O chão na frente do orfanato abriu-se e engoliu árvores, crianças e Alícia. Ela foi sendo arrastada para aquela escuridão sem poder fazer nada. Durou uma eternidade, não conseguia impedir. A última coisa que viu foi dois pares de olhos. Um deles, preocupado e arrependido. O outro, sorrindo, maquiavélico. Depois, viu o trono de pedra. Não era Isabelle que sentava-se nele. Era um homem, ela assumiu. Viu apenas seus sapatos sociais pretos, e depois acordou, suada.

Resolveu ir sozinha ao dentista. Disse à mãe que sabia o que fazer e Ruby ficou contente de poder terminar de arrumar a casa para o Natal. Alícia tinha ligado para Candace e ia encontrá-la no dentista, onde seu irmão Cody sempre aparecia. Talvez conseguisse parar de pensar nas dores e focar em algo que gostasse. Estava muito impressionada com si mesma. Não sabia como havia desviado aquelas flechas de Dave e queria mais treinamento, queria saber mais. Ao atravessar a rua, perguntou-se se conseguiria parar um carro em movimento. Um avião em pleno voo. Um trêm bala. Sorriu com todos esses pensamentos e correu para a casa que guardava um dentista no último andar.

Cody e Candace estavam sentados no fundo. Alícia avisou que havia chegado e marcou sua póxima consulta para alguns dias mais cedo, dia primeiro de Janeiro. A data não significava nada para Érestha, então era o último dia de férias das crianças. Depois disso já estariam partindo para seu acampamento da PIC.

-Ei Alícia –Candace chamou.

Quando a menina se virou, um lápis vinha voando em sua direção. A menina ficou assustada e apenas desviou o corpo, deixando-o bater no balcão e caír no chão. Candce balançou a cabeça.

-Quero ver o que você me contou –ela disse. –Desvie o lápis como desviu a flecha. Você cresce rapidamente com esse legado, mocinha. Tente mais uma vez. Devolva-me o lápis.

Alícia queria impressioná-la. E impressinar Cody também. Talvez impressionar a balconista.

-Não -Candace falou. –Está fazendo errado. Não pense muito, só faça. Só quero o lápis, isso é tudo. E mantenha as mão abaixadas.

Ela concordou. Candace estava certa. Ela funcionava melhor quando pensava no propósito do que no resultado. Alguém queria o lapis e era isso o que ela faria: levaria o lápis até ele.

-Perfeito –Candace elogiou.

Alícia sorriu. Cody levantou o dedo polegar para ela, impressionado. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Candace atirou o lápis nela de novo. Desta vez, Alícia conseguiu desviar seu curso. Pensou em como não queria o lápis em sua mão e desviou seu curso para a direita.

-Faça sem esticar o braço –Candace a repreendeu.

-Irmã –Cody a chamou. –a menina é extraordinária! Não exija tanto dela.

-É exatamente por isso que exijo dela, pois sei que consegue. Quero que cresça e supere-me. Ficaria muito orgulhosa.

Alícia sorriu de orelha a orelha. Não achava que seu legado estava avançando tão depressa e ficou honrada em ouvir tais palavras de sua professora. Tentou mais uma vez, sem mexer a mão, e conseguiu. A atendente também ficou impressionada. Aceitou ajudá-la a treinar. Todos atiravam objetos em sua direção e ela conseguia desviar quase todos. Ficou com marcas de caneta nos braços, mas não conseguia parar de sorrir. No fim, recolheu tudo do chão com seu legado e guardou no lugar antes de Cody saísse de sua consulta. Antes dela entrar na sala do dentista, Candace sorriu para ela. Alícia sentiu-se nas nuvens e sua cabeça relaxou.

Ainda carregando sua mala, Alícia voltou para a província de Tâmara para poder usar um caminho que conhecia. Ao entrar na trilha na floresta, sorridente, ela se surpreendeu. A princesa Tâmara, um velho tigre branco e sua representante, mãe de Lilian, esperavam por ela. Alícia se sobressaltou.

-Só queria te dizer que estou muito impressionada, menina –a princesa falou. Tinha um casaco de peles branco e pesado sob seus ombros. A touca que de lã que usava escondia todos os seus cabelos verdes. Ela trazia o maldito sorriso sínico em seus lábios. –Não costumo usar esse legado em meus novos recrutas, mas você me faz lembrar o quão especial ele é. Estou perdendo a festa de meu pai pois preciso te dar uma coisa.

Alícia não se mexeu. Deixou que a princesa se virasse e pegasse um pacote com Vitória e deixou que o tigre se aproximasse dela sem emitir nenhum som. O animal se coçou em sua perna e lambeu sua mão. Sua língua era áspera e quente. Ele rosnou um pouco para ela e voltou para o lado de sua dona. A princesa agora a encarava com um sorriso nunca antes visto pela menina no rosto dela. Era um sorriso de compaixão, de amizade. Nenhum sarcasmo, nenhum tipo de piada. Ela aproximou-se da menina, colocou o pacote no chão e tirou a touca que usava. Seus cabelos verdes caíram por seu rosto e ombros e mesclaram-se com o verde de seus olhos. Ela agarrou a cabeça da menina e encostou a testa dela na sua.

-Há uma guerra se aproximando –ela falou para a menina. –Você é forte. Deixarei-te ainda mais forte. Preciso de um guerreiro.

Ela virou um pouco o rosto encostou seus lábios nos da menina. Um toque leve; breve; inocente. Alícia não conseguia respirar direito. O hálito quente da princesa entrou angustiantemente na boca de Alícia, envolveu seus pulmões, apertou seu coração e paralizou seus movimentos. Ela sentiu coisas ao seu redor. Sentiu tudo o que estava dentro de sua mala, os objetos nos bolsos de Vitória, a coleira do tigre brango. E desmaiou.

Ela já estava cansada de desmaiar. Desta vez não acordou na enfermaria, mas no mesmo lugar. As pessoas e o tigre já haviam desaparecido. O dia ainda estava claro. Não havia perdido muito tempo. Sentou-se, tirando a neve de suas costas. O pacote de Tâmara estava selado ao seu lado com uma etiqueta gravada com seu nome. Ficou curiosa para saber o que tinha dentro. Tentou ignorar o beijo da princesa rasgando o pacote como se fosse um presente de Natal.

-Um cinto? –ela pensou alto.

Havia também seis facas ali dentro. Ela colocou o cinco em volta da cintura e encaixou as facas nele. Três de cada lado. Eram facas de arremesso. Sem corte e com um design aerodinâmico. O cabo tinha o desenho de uma árvore, igual à tatuada nas costas dos legados de Tâmara. Alícia apertou o cabo e atirou-a contra uma árvore. A faca bateu e caiu no chão, enterrando-se num monte de neve. Ela esticou a mão na direção da faca e torceu para não se cortar. O objeto voou em sua direçao mais rápido e mais facilmente do que o normal, pousando perfeitamente na palma de sua mão. Estava gelado e molhado.

Alícia se perguntou por que a princesa Tâmara lhe presentearia com aquilo, por que diria algo sobre um guerreiro. "Deixarei-te ainda mais forte". Ela franziu as sobrancelhas, juntou suas coisas e foi para casa.

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