XXVII -Bia
Ela estava nervosa. Não com medo, mas nervosa. A rainha havia explicado muito bem toda a situação para Bia, e ela tinha um papel indispensável naquele momento da história. "Seria praticamente impossível sem eles" a rainha lhe havia dito. A voz dela era suave, mas seu tom era autoritário. "Côndefas só podem ser mortas por outras côndefas" Riley explicara. "São criaturas mortas-vivas, criações bizarras que nem mesmo Tabata pode deter. Se quisermos nos defender de um exército delas, os Mercenários Mortos são nossa melhor opção, no momento." Aquelas palavras rodando em seu cérebro convenientemente abafavam os sons do bar onde se encontrava com os três mercenários restantes. Quase havia sentido-se ofendida por "criaturas bizarras", mas Riley tinha razão. Ela não podia falhar, e até o momento de ser entregue a eles, ela acreditava que isso seria impossível. Sua habilidade com o fogo de Elói sempre fora impressionante, e agora era invencível como côndefa de Thaila. Mas havia um detalhe que ela não havia considerado: as côndefas de Tabata a aterrorizavam.
Bia sentia-se um predador com um único inimigo natural, caminhando diretamente para o território deste. Talvez fosse mais sensato deixa-lo em paz e salvar sua pele. Talvez Dave Fellows tivesse razão. Mas era tarde demais. Ela já estava sentada à uma mesa com três pares de olhos a encarando. Suas mãos tremiam e começaram a suar quando a velha de órbitas brancas dirigiu a palavra a ela.
-Nós temos uma missão de vingança –falou. –Vamos deixar que sua rainha nos lidere e você obedecerá a nós. Queremos ver do que é capaz, menina.
-De qualquer coisa –ela respondeu, ainda tremendo.
Bia sabia muito bem aonde estava, e isso era a única coisa confortável daquele momento. Ela já havia visitado o Vale do Inverno uma vez, com o circo. As crianças dali haviam ficado muito contentes com o show deles, e a trupe havia jantado naquele bar onde ela se encontrava. Se, na época, soubesse que era propriedade de quatro mercenários temidos, talvez não tivesse estado ali. Ao menos ela sentia-se em casa, na província do príncipe pai. Elói não gostava do Vale do Inverno porque era uma falha. Ele havia tentado criar o vulcão congelado quando era menor, com a ajuda de sua irmã da terra. Mas eles eram muito pequenos e lava nenhuma saiu de dentro da criação. Frustrado, Elói criou uma nuvem de neve que vinha enchendo o vulcão e congelando seus arredores desde aquele dia. Talvez ele nem soubesse que existia uma cidade ali, mas não queria saber.
-Vê aquele homem? –o de barba roxa perguntou para Bia, apontando um senhor que sentava-se no canto, afastado dos outros clientes aterrorizados. –É um bom cliente. Ele vai nos pagar em ouro.
-É muito simples –continuou o negro de pele oleosa. –Ele só não quer sujar as próprias mãos. Seu vizinho tem capangas mais fortes e tomou seu pedaço de terra na floresta, incluindo sua casa. O pobrezinho só quer madeira para vender. Explique para o vizinho como as coisas funcionam com nossos amigos.
-Uma moeda de ouro para cada um de nós –explicou a cega. –Vai fazer o serviço esta noite, menina.
-É simples demais –ela franziu o cenho.
-Então não falhe.
Os três explicaram como chegar no quarto que seria dela e empurtraram-na para fora do bar, na neve. Bia detestava o frio; enfraquecia seu legado. Ela não precisou caminhar muito até o quarto. O lugar era como uma casa minúscula, com uma única porta, uma janela e neve no telhado. Dentro, havia dois montes de palha e folhas desenhadas com carvão coladas na parede. Ela não esperava ser tratada como uma princesa, mas ntambém não havia previsto algo tão triste como aquele lugar. Sentou-se logo abaixo da janela para observar a neve caindo e criou uma chama com suas mãos para brincar com formas e passar o tempo. Fez um cavalo e um cavaleiro, e forçou os dois a galoparem pela palma de sua mão até estar muito cansada. Teria caído no sono se o homem de barba roxa não tivesse chutado sua porta para chama-la.
-Está na hora, menina –ele sorriu. –E lembre-se: o homem é um bom cliente. Deixe o vizinho longe de suas árvores.
Bia pegou suas flechas e seu arco, ajustou seu casaco e saiu, seguindo as indicações de como chegar até o tal pedaço de terra. Na floresta, havia uma casa soterrada de neve, e aquele era um de seus pontos de referência. Ela teria ficado preocupada com o morador se ainda não estivesse tão nervosa. Não haviam pegadas e nem trilhas por ali. Quem quer que vivesse ali dentro podia estar sem comida ha dias.
Seu caminho continuava floresta a dentro, seguindo sempre as árvores mais saudáveis que ainda não tinham sido cortadas. Ela começou a ouvir um barulho quando chegou a uma clareira próxima ao destino final. Nada ali era agradável, e os sons deixavam tudo ainda pior. A neve estava marcada de sangue seco e cheirava a carne podre. O barulho que ouvia era uma mistura de gritos agudos, gravetos quebrando-se e mastigação. Bia preparou uma flecha e tentou fazer menos barulho na sua caminhada. Ela mal sabia o nome do homem por quem estava fazendo aquilo. Não sabia muito bem o que dizer quando finalmente viu a casa. Mas ela nem poderia dizer nada. Aparentemente, os "vizinhos" do bom cliente eram uma familha de haunts faminta.
A casa do sujeito não estava terminada. Não tinha vidro nas janelas, nem uma porta e estaria vazia se não fosse pelos restos de algo que Bia temia ser um urso negro. Um pouco mais a frente havia uma pedreira que delimitava o limite da floresta e o começo do vulcão de gelo. Uma pequena caverna havia sido cavada a adaptada para os haunts, que provavelmente estavam ali há muito tempo.
-O idiota foi construir uma casa bem ao lado de uma toca cheia de haunts? –ela resmungou, analisando sua situação.
Sua voz chamou a atenção de um filhote, que logo agitou-se e começou a rosnar para ela. Os outros não demoraram para percebe-la ali, e o primeiro a avançar contra ela tinha o tamanho de um lobo adulto. Na pressa, sua flecha passou longe da cabeça do animal, e Bia tropeçou e caiu para trás. Ela quase havia esquecido de que tinha que tira-los dali. Queria ir embora e deixa-los em paz. Afinal, haviam com certeza chegado ali muito antes do bom cliente. Não sabia se teria coragem de fazer alguma coisa contra os animais, por mais que eles a estivessem atacando. Se não os matasse, ela seria morta. Talvez pudesse destruir a casa deles, mas então morreriam mais lentamente. Quando sua cabeça atingiu a neve e afundou, Bia entendeu o que estava fazendo ali.
E se aqueles fossem humanos? E se aquela tarefa valesse muito mais do que quatro moedas de ouro? O homem de pele negra, a velha cega e o barbudo não pestanejariam. Mercenários fazem o serviço para quem paga mais. Se os haunts lhe oferecessem cinco moedas, talvez ela os deixasse em paz. Bia odiou a si mesma quando tentou levantar-se e sentiu pena dos carnívoros famintos.
Aquele que avançava contra ela tinha veneno pingando de sua boca, e sua mordida foi extremamente dolorosa. Os pequenos, que tinham quase o mesmo tamamnho dos que Thaila mantinha como estimação, uivavam e latiam e rosnavam, observando seus pais lutando por eles. Bia criou duas chamas em suas mãos para espantar o macho que tentava triturar sua perna. O animal guinchou numa nota tão alta que Bia quase queimou seus cabelos para tapar suas orelhas. Os furos em sua perna estavam começando a curar-se sozinhos quando ela finalmente levantou-se.
Ela sabia pouco sobre as criaturas. Lembrava-se que alimentavam-se de tudo o que um animal podia oferecer, desde a carne até os ossos e o sangue. Suas garras afiadas eram poderosas, e arrancaram uma boa quantidade de pele de Bia quando ela tentou colocar outra flecha no arco. Os dois adultos estavam irritados por ela os estar ignorando e resistindo tão bem a suas mordidas e arranhões. Ela os chutava para o lado enquanto tentava concentrar-se.
A primeira flecha, com fogo, acertou em cheio a caverna deles. Ela esperava que ali estivesse cheio de palha ou outros animais, e estava certa. Alguma coisa lá dentro começou a pegar fogo. Os filhotes juntaram-se a briga com seus guinchados quando os mais velhos lamentaram-se pelo fogo. Sua segunda flecha não deveria ter matado um dos pequenos. Ela queria apenas acertar uma de suas patas, mas ele se mecheu demais. A mãe deles não estava nada contente e impediu a terceira flecha de voar até outro de seus filhotes quebrando o arco de Bia. Atordoada, ela caiu no chão mais uma vez. O macho pôs-se sobre ela, com o pelo chamuscado e raiva em seus olhos. Uivou antes de tentar morder o pescoço da menina, mas foi novamente impedido pelo fogo de Elói. Apesar do frio que sentia, Bia foi capaz de produzir duas chamas grandes em suas mãos, e segurou a cabeça do bicho até ele não aguentar e correr para longe.
Ela foi rápida em levantar-se e correr para a casa em construção. As únicas coisas que ela tinha disponíveis ali dentro eram cordas, sacos de lixo e um machado. Ela pegou o objeto cortante e ficou parada, esperando ouvir passos. As patas de um haunt correndo no chão de madeira faziam um som irritante. Ela virou-se, balançanco o machado para acertar quem quer que a tivesse seguido até ali, e arrancou metade do fucinho do macho queimado. O animal cambaleou e caiu, gemendo. Os outros três restantes estavam parados na neve. A mãe tinha os pelos eriçados, mas parecia temer o fogo e o rosto de Bia. Os dois outros filhotes escondiam-se atrás da mãe, com o rabo entre as patas.
-Vá! –ela gritou, apontando a montanha com o machado. –Vão embora!
Pisou forte na neve para reinforçar sua ordem. Os três animais amedrontados correram para longe, e Bia só conseguiu se mexer quando os perdeu de vista. O fogo na toca deles estava derrerento a neve, e ela andou até ali para aquecer-se e domar as chamas. Ela ajoelhou-se e tentou segurar suas lágrimas. Não tinha certeza se aquilo era melhor do que o Limbo e se conseguiria fazer tudo o que os outros três pedissem.
-Eu sou a alma de fogo, e eu escolhi esperar –ela disse para si mesma. –Aceitei estar aqui, agora vou até o fim.
_*_*_*_
Toda aquela luta e o caminho feito até lá não durara muito mais do que uma hora. A volta fora bem mais simples do que a ida. A neve à frente da casa antes soterrada havia sido retirada, e um caminho cavado ali em frente. Dentro da residência, vozes e panelas faziam ouvir-se. Ela conseguiu caminhar tranquilamente por ali, carregando as provas de que havia feito o que lhe pediram. Chutou a porta do bar para entrar, e todos que antes se divertiam ali pararam para prestar atenção nela. Os três donos do bar e de sua liberdade estavam num canto, jogando cartas com o dono da casa. Bia jogou o filhote aos pés deles e deixou cair a cabeça que havia decepado do haunt mais velho. Os quatro levantaram-se, e todos os cliente encolheram-se.
-Eles quebraram meu arco –ela reclamou, jogando também os restos do objeto no chão.
-Bom trabalho, menina –sorriu o negro.
-Tudo o que importa é que agora você tem uma moeda de ouro –disse o de barba roxa.
-Mercenários não podem sentir –disse a cega, aproximando-se mais de Bia. –Nós estamos em uma missão de vingança e traição. Partiremos em breve.
-Eu só quero um novo arco –ela resmungou, tomando a moeda da mão do bom cliente. O homem estremeceu. Bia não queria sentir-se temida. Abaixou o olhar e esperou que lhe dissessem o que mais queriam dela.
-Vá dormir, menina –continuou a cega. –Vamos arranjar um novo arco para você. Partiremos em breve.
-Espero que não tenha receios das terras da senhora da morte.
Bia riu, ainda olhando para baixo. Levantou o olhar vagarosamente, encarando o careca de pele oleosa nos olhos.
-Eu morri ali enfrentando Satomak e DiPrata –ela disse. Virou-se de costas, reajustando a aljava em seu ombro. –Também tenho minha própria missão de vingança por lá.
-Você obedece a nós, menina –grunhiu a cega.
-Não –Bia virou-se, como fogo em seus olhos. –Eu sou uma Mercenária. Eu sigo minhas próprias regras. Não é assim que funciona?
Um dos homens fez um comentário incluindo a palavra "satisfeito", mas Bia não ficou para ouvir. Ela correu para seu pequeno quarto e deitou-se na palha, colocando mais por cima de seu corpo para protege-la ainda melhor do frio. Ficou acordada até sentir todos os arranhões curados, depois, teve uma ótima noite de sono onde sonhou com espadas brancas, guerreiros da morte e Dave Fellows.
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