XLIV -Nicolle
-Qual a diferença entre Argia e Bia?
A cozinheira de pele escura em vestes brancas suspirou, apertando as unhas em seu punho pela nona vez. Nicolle queria muito pedir que Rick parasse com tantas perguntas, mas cada vez ele a surpreendia e perguntava sobre algo que ela queria saber também. Por mais que a menina tivesse medo que Imani tentasse enforcar seu amigo, como havia ameaçado algumas dezenas de vezes, Nicolle ficou quieta, sentada em seu banquinho, esperando pela resposta.
-A menina do fogo havia morrido –ela começou. –ponto final. Sua alma estava esperando no Limbo e seu corpo fora muito bem conservado. É para isso que servem as lágrimas de sereia: trazer alguém do Limbo para seu velho corpo. A essência da princesa da vida nunca chegou a passar do físico para o que vem depois. Está presa aqui, esvaindo-se, adaptando-se a outros corpos para poder existir por mais tempo. E uma hora ela será tão pequena que não terá mais forças e extinguir-se-á. Ela precisa de carne, ou seja, um corpo fixo e compatível para fixar-se. Ela precisa de sangue para fazer a vida correr por seu corpo. Ela precisa de uma lágrima de sereia para guia-la, para conectar a essência e o corpo como foi com Vallarrica. E ela precisa dos elfos porquê é um processo natural e não mágico como fazemos com nossa magia alva. Os elfos precisam de mim pelos ingredientes e rituais de proteção, é só.
-Certo, mas... –Nicolle não podia acreditar que Rick já tinha absorvido toda aquela informação e estava pronto para mais. –E sua filha? Dave disse que viu...
-Seu irmão é um baita bisbilhoteiro –ela resmungou. –Minha filha não estava morta na visão que ele invadiu. Estava morrendo, certamente sangraria até a vida esvair-se de seu corpo se eu não tivesse feito nada. Selei suas cicatrizes, transferi sangue de uma cabra para ela e acordei-a com canções brancas. Não preciso e elfos para isso, mas vou precisar se quiser transformar essas coisas –ela colocou uma caixa pesada e empoeirada na mesa –em uma poção.
-E não podemos coloca-la em algum outro corpo usando tudo isso? Permanentemente? –Rick ajeitou-se em seu banquinho para bisbilhotar a caixa. Imani e Nicolle bateram em sua mão ao mesmo tempo para afasta-lo. –Dave não parece tão confiane no enigma da rainha.
-Seria uma grande perda de tempo –a mulher respondeu, abrindo a caixa e tirando de lá um pequeno frasco com um brilho dourado. –O corpo dela foi feito para sua essência e vice versa. Qualquer outra carne, até mesmo a da senhorita aqui, que abrigou-a por tanto tempo, não aguentaria Argia para sempre. Morreria cedo. Talvez nem seu próprio corpo chegue a ter uma vida normal, isso é tudo muito arriscado... Mas se insistem...
-Mas e se repetíssemos o processo...
-Cale a boca de uma vez, menino, ou vou enforcar-te com um de meus aventais de cozinha –ela bateu o punho em sua mesinha, fazendo todas as prateleiras cheias atrás de si tremerem. Aquele quartinho de estoque em sua casa subterrânea era muito pequeno para três pessoas e tanta raiva. –Seja mais como sua amiga e fique quieto.
Ela estendeu o frasco dourado para Nicolle, e a menina segurou-o, colocando a mão fechada no bolso. Imani fechou a caixa empoeirada e colocou-a debaixo do braço para carrega-la mais confortavelmente.
-Vamos logo com isso –ela falou, andando em direção a porta. –Eu odeio cada segundo desse dia.
Nicolle tentou ser boa com a mulher enquanto caminhavam pela passagem que ela mesma havia criado até o reino élfico. Estava muito agradecida por ela ter aceito ajudar, e também por tudo que já tinha feito por ela e Argia quando eram uma só. Imani não sentia-se confortável caminhando pelas ruas cehias de flores e vida e elfos. Eles olhavam paa ela pejorativamente, chacoalhando a cabeça e perguntando-se até como Nicolle e Rick poderiam estar com alguém como ela. A maioria dos cidadãos de Ellie sabiam sobre trazer Argia de volta, diferente dos outros cidadãos de Érestha que provavelmente não faziam ideia de toda essa comoção. Muitos deles haviam voluntadriado-se para ajudar. Tantos que Nicolle pensou que teria que escolher alguns para ficarem e descartar outros, mas Ellie garantiu que todos seriam necessários.
-São muitos processos de recitas muito antigas, e tenho planos para outras coisas que ajudarão em outras áreas também –ela explicara. –Tenhamos todos, eu me organizo.
Assim como os exércitos por toda Érestha, os elfos de Ellie tinham vários grupos, vários comandantes e um general: a elfa colorida. Alguns cultivavam flores, outros dissolviam ingredientes em soluções, outros os peneiravam e curavam... Tudo com muita paciência e precisão. Tudo era armazenado em potes de vidro, e Nicolle havia tido que comprar centenas de potes de tamanhos diferentes para eles. Os potes, quando cheios, ou tinham que ser chacoalhados vinte e quatro horas por dia ou deixados em temperaturas baixas ou altíssimas... Ela tivera que fornecer materiais para tudo aquilo também. Além desses custos absurdos, havia dado novas armas e treinamento para os elfos guerreios. A província de Argia estava em dívida com a Coroa e nem era completamente governada pela princesa regente. Eles teriam grandes problemas quando tivessem que cobrar taxas de seus moradores, e Nciolle detestava pensar nisso. Havia cogitado pagar do seu próprio bolso, trabalhando em algum outro lugar por um tempo até quitar a dívida, mas talvez tivesse que trabalhar a vida inteira por aquelas cifras. O caderno que ela tinha, lotado com pedidos e súplicas do povo das pequenas cidades ainda vivas da província de Argia faziam seu coração doer. Investir tudo numa guerra, na fé que tinham no enígma da rainha e em Dave Fellows, enquanto pessoas esquecidas pelo reino morriam de fome e sede e frio não era certo. Mas ela fazia como mandava Argia, e Argia obedecia à rainha. "Um dia vou fazer tudo acertar-se, como deve ser" ela pensou. "Vão ser todos felizes e cheios de vida".
-Sejam bem-vindos –sorriu-lhes um elfo, barrando-os na entrada do Casteno na Árvore. –Qual a senha?
-Lama glama –Rick respondeu, retribuindo o sorriso para o elfo
Ele afastou sua arma da entrada e deixou-os subirem.
-Que ideia idiota é essa de senha? –Imani resmungou.
-Para evitar as côndefas de Tabata –Nicolle explicou, guiando-a pelas escadas e corredores, caminhando em diração à varanda.
-Claro –ela revirou os olhos.
Ellie e seu conselho esperavam por eles ao redor de uma mesa redonda, com caras bravas e expressões desintereçadas. Não gostaram nada de receber Imani em suas vestes brancas, assim como a mulher detestou apertar a mão de todos eles.
Nicolle sentia-se poderosa ali em cima. Mesmo com Rick ao seu lado, no mesmo nível de poder que ela, era a menina quem mandava. Sua voz era quase tão alta como a de Argia. As ideias eram aprovadas por ela. Mesmo que diante de cinco elfos, Nicolle tinha a última palavra. A menina era acostumada a estar sempre atrás de alguém, concordando com o que ahasse certo, mas nunca tomando muitas iniciativas. Em seu trabalhos em grupo na escola do Brasil, a menina de chachos cor de caramelo com perfume de morango nunca podia nada; não davam-lhe chances. Passavam por cima dela e decidiam tudo. Era uma realidade estranha para ela ter que impor-se daquela maneira. Mas fazia-a sentir-se importante.
Desde que Argia havia encontrado uma maneira de estar em outros corpos e eles haviam estabelecido uma rotina com voluntários, Nicolle sentia-se dispensável. Se a rainha decidisse que não a queria mais no Castelo de Cristal ou na Escola Preparatória da Província de Tâmara ela teria que voltar para o pequeno apartamento no centro de São Paulo. Tinha medo de ter que lidar com seus pais e seus irmãos. Tudo havia sido arranjado muito rapidamente e eles provavelmente não faziam ideia de como a menina estava. Talvez Madalena, sua vizinha e tia dos Fellows, desse notícias, por mais vagas que fossem. Mas ainda assim ela não ia gostar de ter que voltar para lá e perder o novo mundo que lhe fora dado. Érestha significava oportunidade, responsabilidade e poder. Ter a província dos elfos, ao menos, lhe dava algum grau de verdadeira importância. Se não tivesse uma guerra por acontecer, ela atrasaria todo o processo apenas para aproveita-lo e sentir-se mais segura.
-Eu trouxe os ingredientes que tinha em casa –Imani falou, apoiando a caixa empoeirada na mesa. –uma lágrima deve bastar, não?
-Deve sim, vamos guarda-la bem –Ellie forçou um sorriso. –E quem é que vai fazer todo o ritual branco?
-Eu e minha filha –a mulher deu de ombros. –Ninguém mais na cidade subterrânea o faria, e não vou contar meus planos para ninguém. No mais, não precisamos de um exército inteiro para uma criança.
-Argia não é só uma criança –um dos elfos mais velhos colocou os punhos na mesa. –É uma princesa de Érestha.
-E eu sou praticante de magia branca desde que nasci –Iamni revirou os olhos. –Sei que dois de nós farão o serviço.
-Ótimo, confiamos em você, Imani –Nicolle interveio antes dos elfos sequer tomarem ar para discutir. -Ellie, a preparação das outras coisas está indo bem?
-Sim senhora –ela sorriu. Nicolle ajustou sua postura ao lembrar-se de sua reputação. –Finalmente temos todos os ingredientes para cada parte da poção em processamento, e muitos já estão prontos, em estoque. Temos alcaçuz para a voz e gelatinas para colágeno, cereais ricos em fibras e vegetais escuros para o ferro.
Nicolle sorriu. Tudo o que Ellie cultivava para as poções parecia uma lista feita por um nuricionista, e a menina só sabia que tinha a ver com o crescimento e adaptação de Argia em seu próprio corpo. O processo fora descrito por ela depois de Rick perguntar o que aconteceria, e a menina evitava pensar muito naquilo. O bebê, assumindo bem concervado pela rainha Thaís, cresceria até ter a forma de uma jovem-adulta, como Argia deveria ser, em poucos segundos. Todo o processo feito naturalmente em dezessete anos aconteceria em menos de um minuto devido à poção e ao ritual. Os elfos tinham o trabalho de cuidar do corpo e ter certeza de que Argia ficaria bem e saudável ali dentro. Imani e sua filha fariam a ligação entre a essência e o corpo, trabalhando cuidadosamente para que Argia pudesse fazer o corpo crescer e estabelecesse uma boa estrutura para si. Com o tempo, ela se adaptaria e viveria uma vida completamente normal. Mas no início seria difícil. Nicolle havia ficado aterrorizada com a ideia de vê-la crescendo em seu próprio corpo, e queria ter certeza de que os elfos faiam tudo certo para não ter problemas.
-Deveria usar carne vermelha e peixes também –Imani resmungou, ajitando o vestido em seus ombros. –A princesa não é um elfo. Uma poção como essa deve ser poderosa, são dezessete anos de crescimento. Os alimentos são necessários, sendo eles animais...
-Não nos diga como fazer as coisas, cozinheira –disse Animu, o elfo do conselho com o qual Nicolle mais gostava de conversar. Ele detestava a ideia dos Litos Alvos e havia prometido dar uma grande bronca em Dave Fellows na próxima vez que se encontrassem. Nicolle duvidava que o amigo levaria alguma palavra a sério, mas não havia dito nada.
-Certo, certo –Imani pôs as mãos para cima, em rendição. –Façam o que acharem melhor. Mas lembrem-se que isso é uma guerra com Tabata, e estamos falando da princesa da vida.
-Ainda temos um problema –lembrou Rick, tirando um papel de seu bolso e depositando-o sobre a mesa. –O que é o "lustro do ludíbrio necrópole"?
"Carne, sangue, uma lágrima e o lustro do ludíbrio necrópole". Nicolle releu a frase escrita no Castelo de Mármore de Tamires. Dave havia perguntado para as três senhoras sobre o que seria aquilo, e nem Hynne, nem Bebel e nem Dafne sabiam o que Thaís queria dizer com aquilo.
-Lustro é brilho, ludíbrio é uma enganação e necrópole faz juz à morte –Hynne, a escritora, havia explicado. –Eu não sei o que é isso, deveria fazer sentido para você, Dave.
-Parece uma charada –sorrira Dafne. –O que é, o que é: uma enganação brilhante num cemitério?
-E o sangue –Imani acordou Nicolle de seus flashbacks. –Preciso de sangue. De vida.
-A rainha Thaila o oferece –Nicolle falou, lembrando-se da expressão de desaprvação de Dave quando havia escutado aquilo. –E Argia é vida, não vai ter problema. A rainha é próxima o suficiente da princesa para que seu sangue flua e de-lhe vida.
Imani e os elfos chacoalharam as cabeças, desanimados com a ideia.
-Detesto essa ideia –Imani resmungou.
-A rainha está disposta e insiste –Rick sorriu.
-Que seja –a cozinheira deu de ombros. –Só vou precisar no dia em que formos realizar essa loucura. E se precisarem de outras coisas brancas... Peçam a Nicolle. Posso ir embora?
-Sim, vamos –Nicolle apontou a saída com a cabeça. –Continuem com o bom trabalho e me digam se precisarem de mais alguma coisa. Vou atualizando vocês conforme Dave fortrazendo novas informações.
-Sim, senhora –Ellie falou, remexendo na caixa empoeirada de Imani. –Mas, onde está a lágrima?
-Eu tenho ela –Nicolle anunciou, apertando-a em seu bolso. –Vou mante-la comigo até que precisem usa-la. Mas agora vou levar Imani de volta, se nos dão licença.
-Vou voltar sozinha, menina –A senhora disse. –Fiquem longe da Cidade dos Cavaleiros Mortos, vocês dois.
Ela tomou a liberdade de sair desacompanhada pelos corredores do castelo na árvore. Nicolle e Rick sairam logo em seguida e não encontraram a mulher em seu caminho. Ficaram algum tempo em silêncio, andando juntos pelas ruas até enontrarem uma passagem que os deixaria na província de Tâmara.
-Preciso de uma ajuda sua, Nicolle –Rick falou, antes de passar pela passagem.
Ela hesitou um segundo, e então seguiu-o, acabando numa rua movimentada que os levaria até a praça central principal da província da princesa.
-O que houve? –ela perguntou, alcançando-o.
-Minha mãe... Eu e Dave a quermos fora de Érestha o mais rápido possível. Talvez você possa ajudar a...
-Não –ela cortou-o, mantendo sua expressão facial e sua velocidade, enquanto ele franzia o cenho e parava para encara-la. –Argia precisa de sua mãe até Dave encontrar seu corpo. Se é que ele vai encontra-la, e se é que isso tudo vai dar certo.
-Mas temos Nina e tantas outras voluntárias perfeitamente dispostas bem compatíveis –Rick disse, apressando o passo, ainda com a testa franzida. –Minha mãe não pertence à Érestha, devia estar no Brasil. Nao tem nada a ver com essa guerra.
-Mas Argia precisa dela –Nicolle cerrou os dentes. –Que parte disso você não entende? Ela está desaparecendo, Rick, e sente-se sempre bem com sua mãe. Pare de fazer sugestões que nos atrasem e criar mais problemas.
-Bom... –ele deu de ombros. Tinha um quê de raiva em seu tom e em seus olhos castanhos, mas ele parecia querer disfarçar. –É tarde demais. Dave está no Castelo de Cristal agora.
-Mas eu disse não –ela parou na frente dele, fazendo-o frear de súbito para não atropelar-la. –Você não pode tomar decisões sem falar comigo ou com a princesa antes. E Argia quer Maria.
-Nicolle, eu não acredito que você ou Argia colocariam qualquer coisa acima da segurança de alguém. Especialemente de alguém que nem teria como se defender numa guerra. Ela é minha mãe, e esses são assuntos de família. Existem tantas outras opções, a princesa sabe disso. Você é minha amiga.
-Não me interessa –ela cerrou os punhos, cuidadosa pois ainda seguranva o frasco no bolso. Qualquer assunto que desafiava a segurança e bem-estar de argia deixava Nicolle nervosa. Talvez parte da princesa ainda morasse nela, e fosse muito preocupada. Agora que havia acordado e encontrado seu lugar, Argia não queria arriscar perder nada. Nicolle concordava. –Isso é sobre Argia, é tudo por ela. O enígma da rainha e o Livro da Rainha...
-Está enganada –Rick cortou-a. –Isso é tudo por Érestha e pela paz. A rainha Thaís salvou-a pela injustiça e por seu reino. Não é tudo sobre uma única pessoa. E se você tem a chance de salvar um inocente, um só que seja, já faz toda a diferença. Você está cega, Nicolle; abra os olhos. Cada um é importante a sua maneira.
O menino andou a passos largos na sua frente, sem intenção de espera-la. Nicolle não havia ouvido nada de seu discurso, e só pensava em chegar no Castelo de Cristal aos gritos para manter sua princesa satisfeita.
Gente, novembro eh uma loucura, desculpa não conseguir postar sempre...
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