XIV -O Guarda do Vale
-Seus olhos estavam marcados de terror, e ela contorcia-se na cadeira. Contudo, nenhum som era emitido. Mas eu vi seu sofrimento. Um brilho saiu de sua boca...
-Sua alma, Ethan. Era sua alma.
-Sim, que seja. Sua alma foi sugada por aquela outra côndefa. Ela alimentou-se de alguém de sua própria espécie. Então, foi a vez das outras comerem. Uma gostava de carne e outra de sangue. A última alimentou-se dos ossos, então não restou nada. Nem um corpo e nem uma essência. Foi assim, Dafne. Foi assim que a côndefa mercenária morreu. Não está cansada dessa história?
Ethan jogou a palha suja para mais perto da porta e jogou a nova em seu lugar. Ele ajustou o cinto de sua calça e chutou a palha velha para fora do quarto. Imediatamente, algumas crianças bisbilhoteiras surgiram à sua porta para roubar-lhe a palha velha. Ethan não tentou impedi-las. Afinal, aquilo valia poucos gramas de pão ou uma garrafa d'água e ele conseguiria sobreviver mais um dia sem aquilo. As crianças talvez não.
-Não, não estou cansada da história –respondeu a velha rechonchuda, que sentava-se no canto oposto, logo abaixo da janela. -Mas e depois? O que houve depois disso?
-Pedro Satomak –Ethan respondeu, revirando os olhos. Mesmo sabendo que Dafne era cega, o homem evitava desrespeita-la na sua frente. Ela via de alguma outra maneira, ele achava. A velha podia sentir tudo ao seu redor, até o mais sutil dos movimentos de olhos. -Você impediu que eu levantasse de acertasse uma cadeira na cabeça dele, então os outros três voltaram, nos acorrentaram e nos trouxeram pra cá. O resto você já sabe. Fizeram-nos de escravos.
-"Nos" não, Ethan –ela riu, esfrengando uma mão na outra para afastar o frio. -Eu posso sair quando bem entender, mas quero te fazer companhia, se não se importa. Sou muito curiosa. Mas se quiser escapar, é só me seguir.
-Faça o que quiser –ele resmungou. Sua respiração condensava-se a sua frente, e ele considerou fazer uma fogueira dentro do quarto. Mas tinha dado toda sua madeira para as crianças também. –Mas eu vou ficar aqui. Por Thaila. Sei que ela precisa de mim aqui, e ela vai me tirar dessa situação.
-Eles precisavam do fogo –Dafne sorriu, referindo-se as crianças. Por trás de seus óculos escuros suas órbitas vazias encaravam a alma de Ethan Nova. O homem ficava sem reação toda vez que ela fazia isso, o que quer que isso realmente fosse. –Prepare-se, guarda do vale, eles vão voltar essa noite.
-Eu estou preparado –ele respondeu.
O Vale do Inverno era frio o ano inteiro, mas Ethan tinha sorte de não estar em dezembro. O clima de outono era mais tolerável para alguém do Vale do Verão, como ele. Só precisava de duas camadas de roupas, fogo e comida todas as noites. A cidade localizava-se na província de Elói, bem ao lado de um vulcão congelado. Neve descia dos céus sem parar, dia e noite, e a maior parte do trabalho do guarda do vale era lidar com isso. Ele cavava caminhos, desenterrava carroças e tirava a neve dos telhados. Por sorte, não era uma cidade tão grande, e era rodeada de árvores peladas e pinheiros. Grande parte da neve ele jogava na floresta. Se não, derretia-a e vendia a água para o bar local. Conseguia lenha, pão, queijo, vinho e, de quebra, não era assassinado pelos três donos de tal bar. Quando não estavam em missão, os Mercenários Mortos tinham o seu próprio negócio na cidade esquecida da província de gelo e fogo. Dafne passava o dia inteiro sentada em uma das mesas, desenhando com carvão em folhas de árvore secas. Seus rabiscos envolviam muitas formas geométricas, números e medidas técnicas. Ethan já havia perguntado o que eram, mas ela apenas dava risada e sorria.
-Um dia você vai ver, Ethan –ela dizia. –E vai gostar, pode acreditar que sim!
Os mercenários não pareciam se importar com a velha, e assim Ethan podia ter certeza de que ela ficaria bem. Por mais que ela não fosse responsabilidade sua, ele se preocupava. Era a única maneira que tinha de agradecer. Ela sempre avisava quando os Mercenários vinham deixar ordens e sempre indicava o melhor jeito de cumpri-las. Tomava conta dele com um sorriso e uma bengala.
O quarto que Ethan tinha disponível para si era muito pequeno, e tudo o que podia colocar ali era a palha para ele e Dafne domirem. A velha pedia para ele colar seus desenhos nas paredes, dando indicações de como deviam estar dispostos. Ele teve que trabalhar três dias sem longas pausas para comprar uma cola no mercadinho da cidade. Mesmo não achando que ficaria ali por muito tempo e sabendo que ela não via nada de uma forma ou de outra, ele havia preenchido quase todos os espaços de duas das paredes para a velha, economizando a cola o máximo que conseguia.
-O que você vê, guarda? –ela perguntava sempre que adicionavam alguma folha nova.
-Nada –ele respondia. –Só rabiscos.
Ela ficava contente com a resposta do homem. Na primeira noite do segundo mês, as tarefas de Ethan foram limpar a chaminé do bar, tirar a neve do telhado e da entrada e ir buscar lenha na floresta. Nada disso era fora do normal para o homem. Ele sempre tinha tempo de pensar em Thaila e sua irmã Elinore quando trabalhava, sozinho.
-E se quiser recusar, sinta-se a vontade –sorria o homem de pele negra e oliosa sempre que terminava de se explicar.
-Pode deitar e dormir até congelar de frio ou correr e esperar que ela te pegue –completou o homem de barba roxa, apontando para a côndefa cega de cabelos brancos. –Se comportar-se, não te acorrentamos essa noite.
-Eu vou fazer –ele grunhia. –Mas Thaila vai estar pronta logo e não vai gostar de saber sobre as correntes.
-Sua rainha teme a nós, seu tolo –dizia a mulher, sem mudar a expressão de seu rosto. –Vamos colocar quantas correntes quisermos em você, até ela cumprir com sua parte no acordo.
Ethan aprendera a não ficar e discutir. Na terceira noite que estivera ali ele tentara lutar contra os três e falhara espetacularmente. Usou uma pá de neve para acertar os homens, mas a mulher a fez aprodecer com o simples pensar. Ele tentou usar uma garrafa, mas o homem de barba roxa era rápido e tirou o objeto da mão dele. Enquanto os dois tentavam acertar-se com socos, o negro atingiu a cabeça do guarda com o cotovelo, e antes de poder virar-se para encara-lo, ele já estava com as mãos acorrentadas em suas costas. Ele pasou a noite do lado de fora de seu quarto com o torso nu. A neve doía ao cair nele, tão leve e tão fria. Tudo o que ele conseguia pensar era que seria inútil tentar aquilo de novo. Seu nariz congelou e seus pulmões encheram-se de ar frio. Por sorte ele tinha Dafne, que cobriu-o com um manto.
-Eu te aviso se eles estiverem voltando –sussurrou.
Ele tinha vontade de defender Thaila e tinha vontade de fugir. Mas sabia que era ainda mais importante aguentar tudo aquilo e voltar, são e salvo, para sua rainha quando esta estivesse pronta.
Ele terminou as tarefas da primeira noite do segundo mês bem mais cedo do que o previsto, e ficou contente em saber que não precisaria das algemas naquela noite. Teve tempo de ajudar Dafne a colar mais folhas na parede e não estava exausto quando deitou-se na palha. A parte mais cansativa era cortar a lenha, mas não deixava de ser uma tarefa interessante. Havia uma única casa na floresta, escondida debaixo de neve e no meio das árvores. No começo, o guarda do vale achava que ninguém morava ali; afinal, seria impossível. Ele só conseguia ver metade da casa, já que o resto estava enterrado. Contudo, de vez em quando ele via a chaminé exalando fumaça e ouvia o barulho de potes e panelas sendo usados. Chegou a perguntar para Dafne se alguiém ali precisava de ajuda, mas a velha disse para ele não se preocupar. Ele concordava, já que tinha muito no que pensar. Além de Thaila e sua irmã, Ethan preocupava-se com sua cidade. O Vale do Verão sempre dependera muito dele. Haviam coiotes e lobos e, agora, recrutas de Tabata nos arredores. Ele confiava em seus homens, mas não podia deixar de temer por todos. Ainda não haviam recuperado-se do ataque de Pedro do ano passado, e ele queria saber como estavam todos. Ele contentava-se ajudando os cidadãos Invernenses como conseguia. Dava seus restos para as crianças, espantava haunts e ursos e emprestava sua pá de neve para os outros limparem seus telhados.
-Bem, muito bem –Dafne falou, virando o rosto para as paredes como se pudesse ver suas obras. Ele nunca soube se estava respondendo suas dúvidas cruéis ou elogiando a si mesma. –Terminei, o que acha?
Ethan virou o rosto, ainda deitado. Ainda não sabia o que eram os desenhos, e nem sabia se deveria formar uma figura única ou se eram coisas individuais.
-Eu não vejo nada –ele disse.
-E nem eu –ela riu, apontando para sua cegueira. -Vou precisar que memorize para mim. O desenho, ao menos. Os números eu posso adaptar. Será que consegue, Ethan Nova?
-Claro, Dafne –ele revirou os olhos. –Agora vá dormir.
-Trinta e um dias –Dafne falou, antes de se deitar.
Ela dizia um número todas as noites antes de apagar sua vela. Sua contagem era regressiva e muito precisa. Ela checava seu relógio, fazia alguns cálculos com carvão e só então brandia um número. Às vezes contava em dias, outras em horas e outras ainda em segundos. Ethan tinha esperanças de que aqueles eram os dias restantes no Vale do Inverno, mas tinha medo de perguntar e decepcionar-se.
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