XXVIII -Tâmara
Assim que Gary DiPrata voltasse do território da morte, a princesa planejava estrangula-lo com as próprias mãos. Tinha que admitir, porém, que admirava a coragem do homem. Partir em missão com o favorito mimado da rainha por terras amaldiçoadas em direção à vila de Ethan Nova não era para todos. Acima de tudo, ele estava desobedecendo uma ordem dela, e Gary, melhor do que ninguém, sabia o quanto ela odiava ser contrariada. Ficar sem Alícia e sem DiPrtata era desesperador. Ela acordava no meio da noite, assustada por sueus pesadelos com as celas e as correntes, e nenhum deles estava disponível para acalma-la. A princesa esticava o braço para a esquerda e suspirava quando não encontrava o pelo velho de Castrp para acariciar.
Tamires estava calada ha dias, assim como Argia e os três que liam o livro da rainha. Thaila, Riley e Gabriel falavam entre si, apenas, e excluiam Tâmara de todas as decisões e conversas. Suas criadas estavam sempre presentes, mas Tâmara não gostava de falar com elas sobre o que se passava em sua cabeça. A raiha proibiu a ela e sua gêmea de voltarem para suas províncias até estarem melhores. No meio tempo, suas representantes tomavam conta de tudo. Aquelas férias indesejadas estavam sendo cansativas. Para compensar, Tâmara investia em suas atividades favoritas, que incluiam desenhar modelos de vestidos, cuidar de seus jardins e provocar todo e qualquer ser humano do sexo masculino.
Ela caminhava pelo Castelo de Vidro com seu melhor rebolado e procurava vestir as roupas mais curtas que o inverno permitia. Gastava pelo menos duas horas toda a manhã para se arrumar. Desde os cabelos verdes ondulados até as unhas cumpridas, ela refazia tudo todos os dias. Decidira usar a cicatriz em seu pescoço como um colar e um lembrete pessoal de que, talvez, não fosse uma boa idea ter uma briga física com a irmã dos céus. Os momentos mais divertidos de seus dias eram os encontros com Riley Weis. A maneira como ele ficava desconfortável com sua presença era tão divertida que ela desejava poder fazer isso o dia inteiro. Era ainda melhor quando Tamires resolvia juntar-se à ela e usar uma peça mais provocante. Riley não sabia lidar com todo aquele tipo de informação. As gêmeas trocavam olhares e sorriam toda vez que ele pigarreava ou olhava para algum objeto desinteressante. Não sentir vontade de insultar ou bater em Tamires era uma sensação ótima. Em uma semana, ela tinha oito novos projetos de vestidos para ela e as irmãs, o jardim organizado por cores e tinha feito Riley desviar o olhar de seu busto algumas dezenas de vezes. No quinto dia daquela semana, o menino encontrou-a em seus jardins no meio de uma conversa muito séria sobre migalhas em praças públicas com algumas pombas brancas. Naquela ocasião, ela usava uma saia comprida e uma blusa de mangas longas. Ainda estava tão fabulosa quanto com os vestidos de baile.
-Bom dia, Riley Weis –ela cumprimentou. –O que foi?
-Alfos tentou mastigar uma pedra alguns dias atrás, antes de partir em missão com os outros –ele disse. Tâmara franziu o cenho, confusa. O menino estendeu uma pequena caixa para ela. –Fiz o tal anel para a senhora.
O anel em si era de prata retorcida, e o dente perdido de Alfos tinha sangue seco grudado nele. Ela mal se lembrava que havia pedido aquele presente, mas o adorara. Tâmara encaixou-o no anelar da mão direita. Riley agaixou-se e passou a mão pela grama perfeita de seu jardim. Trouxe a mão para cima e uma flor seguiu-a. Um talo cheio de espinhos, grandes folhas verdes e um broto que desabroxou em uma bela rosa branca. Ele puxou-a do chão e estendeu na diração da princesa. Tâmara sorriu e tomou-a em suas mãos. Com apenas o pensar, ela comandou que a flor abrisse-se ainda mais e que fosse colorida. As pétalas adquiriram tons de rosa, azul e amarelo aquarelado conforme a flor crescia e ficava mais bela. Riley levantou as sobrancelhas, impressionado. Ela agradeceu-o com um beijo terno em sua bochecha, deixando uma marca de batom em seu rosto.
-Alguma notícia de minha irmã? –ele perguntou.
Ela chacoalhou a cabeça, negando. Thaila havia proibido os viajantes de manter contato com ela em situações que não fossem de emergência. Ainda assim, uma nota chegou ao Castelo de Vidro no sexto dia. "Fizemos progresso" era tudo o que estava escrito, e já era suficiente. O coração de Tâmara estava mais tranquilo por sua guerreira e seu general. Na manhã do sétimo dia, quando buscou pelo conforto de Castrp, encontrou o braço de sua irmã. Tâmara sobressaltou-se, balançando o colchão e acordando a outra.
-O que foi? Decepcionada? –perguntou a irmã. –Esperava encontrar DiPrtata?
-É bom o suficiente -Tâmara virou-se na cama para abraça-la. Encaixou a cabeça no pescoço dela e passou o braço por sua barriga. Acabou esbarrando no braço machucado e ela gemeu em protesto. –O que está fazendo aqui?
Não houve resposta. As cortinas verde escuro do quarto da princesa da terra impediam todos os raios de sol de entarem no cômodo. Ela não fazia ideia de que horas eram, mas esperava que ainda pudesse ficar debaixo das cobertas pesadas desfrutando do abraço raro por horas. Por mais que ela prezasse seu orgulho, sentia-se obrigada a admitir que sentira falta do calor do abraço de Tamires. Apesar dos pesadelos que a perseguiam e do passado tortuoso das duas, Tâmara sentia falta da gêmea. Às vezes, nem mesmo ela entendia o porquê de não querer admitir isso tudo e te-la de volta. A princesa da terra sabia que a gêmea sentia-se da mesma maneira. Ela apertou seu abraço e beijou o pescoço dela ternamente. Suas unhas cravaram-se na barriga dela involuntáriamente e logo os beijos tornaram-se mordidas. Diferente de Castrp, a boca de Tâmara não tentava machuca-la, mas deleita-la. Tamires moveu o pescoço, murmurando em aprovação, e Tâmara encaixou-se melhor na irmã.
-Tenho pesadelos todas as noites. –Tamires comentou após alguns minutos de silêncio. -Nunca quis te machucar.
-E nem eu –respondeu.
Após selarem o pacto protetor-protegido pela primeira vez, as duas enlouqueceram. Tamires era responsável por cuidar de Tâmara, mas não conseguiu cumprir com os chamados constantes dela. A princesa da terra tinha medo até da própria sombra. Para tentar ver-se livre das dores e da preocupação constante, Tamires trancou e acorrentou a irmã numa cela suspensa. Tâmara ficou lá por três dias inteiros, enquanto Tamires tentava não pensar na gêmea. Fora Elói quem acabara com aquela loucura, acalmando as duas e libertando a irmã da terra. Tamires tinha arranhado seu próprio braço até um pedaço do osso estar visível, mas nem mesmo isso havia livrado-a das preocupações. O príncipe do fogo e do gelo quem sugerira que elas separassem-se por alguns dias. Contudo, os dias transformaram-se em meses, depois anos, e o único sentimento cultivado entre as duas era ódio. Poder olhar para ela e ver apenas os dias bons de seu paddaso era um alívio.
A princesa azul ajustou-se na cama para encarar a gêmea. Encostou sua testa na dela e olhou dentro de seus olhos. O reflexo em suas órbitas não retratava Tâmara tão bem quanto o rosto dela em si. Era como olhar-se num espelho. As feições das duas eram idênticas, e o jeito como sorriam, mexiam as sobrancelhas e franziam o cenho era o mesmo. Tâmara acariciou a bochecha dela calmamente. Elas não precisavam de palavras para se entender. Bastava um olhar e um pensamento era compartilhado. "Basta." elas pensaram. Um tigre morto e algumas cicatrizes eram o limite das duas. Tâmara beijou a testa da gêmea, depois a ponta do nariz, seus lábios e seu queixo. Aquilo doía. A marca antiga em seu braço começou a brilhar tanto quanto no dia em que fora criada. Flashes de seus pesadelos piscavam para a princesa conforme o contato entre elas se intensificava, substituindo a imagem da bela irmã. Os olhos azuis dela viraram algemas frias; seus lábios finos eram a escuridão; sua pele macia era o chão da cela suspensa; seus murmúrios de prazer eram gritos de agonia. Apesar desses flashes, ela não queria soltar da gêmea. A marca em seu braço escureceu e desapareceu em breu, libertando-a desse pedaço torturante de seu passado. Se ela soubesse que seria assim tão simples e tão libertador, teria beijado a irmã muitos anos atrás. Tamires sentia-se da mesma maneira. Batidas na porta foram ignoradas pelas duas, mas alguém entrou no quarto do mesmo jeito. Sentiu um peso adicionando-se à cama e alguém deitou-se ao seu lado. Ela não precisava estar de olhos abertos para ver o sorriso de Thaila.
-Uma palavra sua e eu arranjo algum insulto imperdoável –disse Tamires.
-Vá embora –Tâmara resmungou. –Não vê que estamos ocupadas?
-O que vejo são irmãs se beijando após anos repletos de orgulho, impaciência e brigas. Isso quer dizer que podemos finalmente ter uma noite de jogos e jantar? –Thaila falou, apoiando o queixo no braço de Tâmara para olhar as duas.
A princesa da terra puxou sua rainha por cima dela e deitou-a entre as gêmeas. Prosseguiu em fazer cócegas em sua barriga. Thaila detestava isso, e Tâmara divertia-se demais. A rainha ria enquanto gritava ordens e ameaças sem sentido para as irmãs.
-Quantos anos você tem, Thaila? –Tâmara disse, ainda fazendo ela rir. –Quatro ou quarenta? Noites de jogos e jantar eram uma desculpa de mamãe para nós pararmos de encher o saco por qualquer coisa.
-Sinto falta disso tudo –disse a rainha após alguns segundos para respirar. –Podemos ser uma família? Por favor?
-Vamos precisar de alguma formalização sobre nossa situação, Vossa Majestade? –perguntou Tamires, apoiando seu braço no colchão e a cabeça na mão.
-Contanto que não voltem a ser insuportáveis como quando eram crianças, não.
As três sorriram uma para a outra e Tâmara expulsou Thaila de seu quarto para continuar a desfrutar da companhia da gêmea. Elas não fizeram promessas. Elas não contaram sobre como se sentiam. Elas não disseram nada. Não seria fácil perdoa-la de uma hora para a outra, mas estava claro para as duas que as coisas estavam mudadas. Aos poucos, elas voltariam a se amar.
À tarde, elas sentaram-se com Thaila e Riley na biblioteca enquanto duas enfermeiras checavam seus ferimentos. O tal Livro da Rainha estava fechado enquanto os dois analisavam anotações em alguma folhas de papel muito rabiscadas e coloridas. A mordida no ombro de Tamires estava melhorando e ela já não sentia tantas dores. O pescoço de Tâmara estava melhor, mas ela tinha dores súbitas, pontadas inesperadas e doloridas a todo o momento. Ela não arrependia-se de ter rido de Castrp atacando a irmã assim como esta não se arrependia de ter feito sangue escorrer dos lábios perfeitos da senhora da terra. As cicatrizes eram ótimos lembretes para as duas. A marca do fim e do recomeço.
-Pare de me encarar –Tamires pediu, sorridente.
-É impossível –Tâmara sorriu de volta.
-As duas, silêncio! –Thaila ordenou, rabiscando uma frase de sua folha com fúria. Olhou para Riley suplicando por sigilo. –Não gosto de metade das coisas escritas aqui.
-O importante é que estamos no caminho certo –Riley comentou, apontando palavras destacadas com marcador cor-de-rosa e limpando o suor da testa. Percebendo o olhar curioso das primogênitas, ele explicou: -São menções à Argia, o Castelo de Cristal ou o enfraquecimento de Tabata.
-Por que ela não podia ter deixado uma nota com instruções claras? –Lamentou-se a rainha.
-Seria fácil demais. Sem graça! –uma voz adicionou-se à conversa.
Tâmara suspirou antes mesmo de virar-se para encarar o tio. Ela não sabia o que mais a incomodava: a careca brilhante, o bigode branco encardido ou os mantos roxos com bolas de cristais azul-claras costuradas. Ninguém nunca ousava questionar a conveniência das visitas de Francis, temendo que o velho não parasse de falar. Ele caminhou até a rainha e curvou-se para beijar suas mãos. Reverenciou rapidamente as gêmeas, sorriu para Riley e acomodou-se em uma pltrona um ouco afastada.
-Meus parabéns, Riley Weis –elogiou. –Eu mesmo nunca teria pensado nisso. Teria procurado dicionários e referências à essa língua pelo reino todo!
-E morreria tentando –o menino comentou, apontando para as letras invisíveis na capa do Livro da Rainha. –Isso não é uma língua morta e nem língua nenhuma. São palavras do português que tiveram as letras substituídas por suas sucessoras ou antecessoras na ordem alfabética. Tudo aleatóriamente.
Os Bermonth encararam-se, impressionados com a convicção do menino e confusos com as afirmações. Tâmara girou o anel de dragão no dedo e relaxou os ombros, curiosa.
-Minha mãe não falava sua língua, menino –Tamires observou.
-Sei disso, senhora. Mas não foi ela quem transcreveu as palavras para estas páginas –ele apontou para o relógio em seu pulso. Tâmara levantou as sobrancelhas. Ela percebeu os arrepios engolindo sua rainha ao processar aquelas informações. –Sim; Reginald. Reginald Fellows quem transcreveu-as.
Era difícil ler a expressão no rosto de adolescente de Thaila. Algum tipo de nostalgia, realização e raiva; como se ela tivesse acabado de se dar conta de que o homem mantinha segredos.
-Interessante –comentou o Mago Roxo. –Realmente interessante. Está se saindo muito bem, Riley Weis, o Leitor!
O menino sorriu. A princesa da terra limitou-se a revirar os olhos. Sua avó, a rainha Ágata, tinha proibido a atribuição de títulos como aquele para os nomes da nobreza de Érestha. Ela não gostava de ser chamada de Ágata, a louca e nem Ágata, a vaidosa. Tâmara, por outro lado, não se importaria de ter algumas de suas qualidades listadas ao lado de seu nome. "Princesa Tâmara Tara Bermonth, a sedutora" fazia-a sorrir. A biblioteca caiu em silêncio, cada um pensando no que precisava pensar. Tâmara ainda não tinha lido nenhuma palavra daquele livro, e não tinha certeza se queria saber o que a mãe havia visto. Confiava na interpretação final de seu legado e sua rainha. Contudo, a curiosidade por saber como encaixava-se na história era maior do que o medo de descobrir algo ruim. Levantou-se, ignorando a enfermeira que aplicava uma pomada nela, e sentou-se ao lado de Riley, tomando algumas das anotações em suas mãos. Procurou por qualquer coisa grifada, sublinhada ou circulada que tivesse algo relacionado à ela. A primeira coisa que encontrou com a palavra "terra" fora escrita com a letra de Riley. Thaila não lia as anotações dele, e ele não lia as dela. Cada um cuidava de um parágrafo. A frase era: "uma visita da rainha regente ao reino da terra livre resultará em uma gravidez indesejada." Tâmara fechou o rosto para aquelas palavras, sentindo o sangue ferver. O segmento 'reino da terra livre' estava sublinhado, e uma interrogação havia sido desenhada em baixo dela. A calma nos traços dele irritaram a princesa. Ela amassou o papel e atirou-o em cima da mesa, batendo os pés no chão ao levantar-se.
-O que foi, querida? –perguntou Francis, arrumando sua postura na poltrona.
-Átila Markova está morto –disse, saindo da biblioteca com sangue nos olhos.
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