XXI -Rick
-Isso não é um jogo –Lorena grunhiu, apertano o microfone com raiva.
Para Rick, aquilo soava como um jogo. Um pega-bandeira, uma simulação de batalha... Nada mais do que um jogo que valia pontos para a nota final. Os alunos do primeiro ano estavam todos muito entusiasmados em participar de sua primeira prova de Luta e Auto-Defesa. Os do quinto ano não paravam de desenvolver ideias baseadas nas vitórias anteriores. Rick achava tudo muito complicado e não parava de perguntar para o irmão e os Weis sobre detalhes da prova. Os integrantes da casinha azul haviam sido separados para três equipes diferentes. Dave estava com Chris no time verde, Nicolle com Lilian no amarelo e Rick com alguns de seus novos amigos da equipe violeta. O menino conhecia quase todo mundo desse time, e eles estavam empolgados em tê-lo participando da prova com ele. Seu legado vivia impressionando os alunos.
Desde o dia em que a tulipa roxa de Dave crescera no apartamento de tia Madalena, Rick vinha sonhando com Érestha. Ele pensava como seria poder controlar fluxos d'água, raios, plantas, vida e morte. Fora decepcionante saber que ele não entraria em Érestha como o irmão ou pai, mas tendo Dave lá ele sentia-se parte do reino. Era também bastante irritante quando o irmão não compartilhava histórias sobre a escola. Pelo menos tinha Lorena, que adorava histórias e falava sem parar. O aniversário da rainha era o evento pelo qual ele esperava o ano todo. Caminhar pela praça de Tâmara, pegar o trem até a província do rei e assitir à festa a noite inteira, comendo, conversando e sentindo-se em casa. Érestha parecia um sonho impossível de se realizar, uma vontade da qual ele aprenderia a desfrutar como fosse possível. Quando finalmente pode estar no reino, como um legado, Rick soube o significado de realizar um sonho. O único problema era que ele não era bom como um legado de Argia. Era mais difícil do que ele podia imaginar.
O professor que a rainha conseguiu para ele e Nicolle era um homem que preferia ficar sentado com os óculos atrás de um livro a realmente ajudar os alunos. Ele lia sobre os legados da vida e tentava explicar como, por que e quando fazer alguma coisa com seus legados. De acordo com a professora baixinha Bennu Wills de história, metade das pessoas que possuia o legado da vida antes da guerra haviam sido capturadas, torturadas ou mortas por Tabata. A outra metade tinha simplesmente desaparecido na província esquecida. Provavelmente não tinham conexão constante com o resto do reino e não sabiam sobre Argia ou mesmo a morte do Rei. Rick impressionava-se mais com a história atual de Érestha do que os meios pelos quais haviam chegado a tal ponto. Todos pareciam preocupar-se tanto com Tabata que esqueciam das minorias, como cidades pequenas no inerior das províncias, ilhas mais afastadas da costa ou essas pessoas esquecidas na província bastarda. Ele tentava o seu melhor em seguir as instruções do professor, mas nem sempre conseguia. O pai dele havia vivido com o legado da vida, mas não o mesmo que Riley possuia. O homem trazia coisas de volta à vida e mantinha a vida saudável. Rick era bem diferente. Ele tinha o legado de controle corporal.
Por mais que ele tivesse perguntado à pelo menos vinte e duas pessoas diferentes, ninguém conseguia responder a ele por que esse era um dos legados da vida. Era uma realidade um tanto assustadora para o menino. O mundo deixava de existir por um instante. Rick deixava seu corpo para trás e instalava-se dentro de outra pessoa. Na maioria das vezes, ele treinava com o irmão. De acordo com o professor, a tarefa seria mais fácil dessa maneira, já que os dois tinham uma conexão forte e significativa; uma conexão direta de sangue. Ele sentava-se para não deixar o corpo sem controle cair no chão. Dave permanecia em pé, sempre relutante. Rick fechava os olhos por mais que Alícia aconselhava-o a não o fazer; concentrava-se e abria os olhos do irmao. Nas primeiras vezes, era tudo o que ele tinha tempo de fazer. Ele sentia o corpo diferente, mais alto, mais forte e sempre mais cansado. Ele conseguia ver o mundo com os olhos azuis do irmão. De alguma maneira, tudo parecia mais brilhante para Dave. As pessoas eram todas envolvidas por cores, o céu azul nunca se escondia, nem sobre as nuvens de chuva ou neve, a grama sempre cheirava a nova, e o sol brilhava mais forte. Se Rick pudesse ver Érestha daquela maneira, estaria sorrindo como um bobo o tempo inteiro.
Suas tarefas eram simples: fazer o irmão levantar um braço, mexer os dedos, olhar para a esquerda... Por um mês inteiro ele falhou. Dave parecia feliz em não ter o irmão controlando seus movimentos. No segundo mês ele conseguiu cumprir as tarefas e no terceiro, fez o irmão dar alguns passos para frente. Ele sempre precisava de comida, água e alguns minutos de descanço depois de dominar o corpo do irmão.
-Você consegue... Você sabe o que eu penso? –Dave perguntou um dia, enquanto Rick comia e se preparava para a próxima tentativa.
Os dois estavam sentados na clareira de Alícia durante a aula de legados dos alunos que não faziam plantas crescerem. A polarista e Candace estavam competindo para ver quem conseguia acertar mais fecas nos alvos pintados de vermelho nas árvores. Os outros dois alunos mais novos, que também eram polaristas, assistiam às duas, impressionados, e Nicolle conversava com o professor. A menina estava muito melhor depois de ter passado alguns dias na enfermaria. Ela afirmava ter tido um pesadelo muito realístico com uma mulher vestida de branco e uma sopa horrível e cheia de pelos sendo forçada por sua garganta. Riley havia comentado algo sobre elfos e feiticeiros e se enfiado atrás de livros por alguns dias depois desse relato. Ele nunca entregara uma conclusão sobreo assunto. Argia e Nicolle estavam coexistindo muito bem, sem dores ou reclamações. A princesa estava contente em ter sua família empenhada em ajuda-la, e Nicolle coninuava tão fascinada que só queria falar sobre história e fantasia.
-Depende –Rick respondeu, respirando pesadamente. –Se eu disser que sim você vai ficar paranóico? -Dave deu um tapa em sua cabeça que fez o mundo rodopiar terrivelmente. –Certo, não! Eu não consigo ler mentes, Dave, apenas controlar seus movimentos. Seus segredos estão a salvo.
-Não tenho segredos –Rick não pode deixar de rir. –Só estava curioso.
-Nenhum segredo, você diz? –Rick o provocou. Dave deu de ombros, confirmando sua afirmação, e voltou sua atenção para Candace e Alícia, que estavam de costas, acertando todos os alvos com uma perfeição impossível. –Sobre o que você e Thaila conversam nas salas de reunião?
-Esses segredos não são meus –ele disse, e Rick continuou a rir. –E trate-a por rainha, por favor.
-Também sou um Fellows, Dave. Sobre isso, uma palavra: privilégios.
-Volte a falar isso e eu te trancarei nas masmorras do Castelo de Vidro –Dave disse, dando outro tapa no irmão.
-Sei que não faria isso com seu irmãozinho.
-Então melhor não me testar.
Alícia e Candace deixaram os dois meninos mais novos tentarem acertar os alvos com as belas facas de arremesso da guerreira. Eles erraram todas as tentativas. Dave levantou-se para voltar para sua aula com o professor velho indicado por algum conhecido da rainha. Rick ficava um pouco assustado sempre que o irmão falava sobre seus poderes como representante ou as coisas que já fizera por Thaila. Era estranho demais até para o irmão, que sempre fora tão sério.
Naquela tarde, Rick estava especialmente nervoso. Era a primeira semana de provas que ele teria que enfrentar na Escola Preparatória da Província de Tâmara e ele não sentia-se tão seguro. Nunca fora o melhor aluno de sua turma, mas queria provar que Érestha era seu lugar, que ele pertencia ao reino. Foi rasoável em todas as matérias, ou assim ele pensava. Precisava dar o seu melhor na aula da prima. Lorena parecia verdadeiramente impressionada pela rapidez do aprendizado de Rick. Lutar com uma espada era bem mais difícil do que o menino pensava, mas ele tinha um ótimo ajudante. Dave era o melhor aluno de LAD do quarto ano, ou pelo menos o mais dedicado à aula. Ele treinava com Rick e Nicolle quando não estava muito ocupado. A matéria estava longe de ser um dos interesses da menina, mas Rick aodrava. Às vezes, Dave deixava que ele usasse Mata-Touro contra as espadas de madeira para treinamento. Os irmãos já haviam desruído quatro delas, mas continuavam a treinar dessa maneira, divertindo-se como nunca faziam no Brasil. Brandir a espada do pai era uma sensação incrível, melhor até do que estar morando e estudando no lugar de seus sonhos. Apesar de sentir-se bem em relação à essas novas habilidades, ele sabia que era esperado que usasse seu legado durante a prova de Lorena.
-Venha por aqui, Rick –uma garota de tranças loiras o chamou.
Ele esteve distraído demais e perdeu todas as explicações de Lorena sobre a prova. As crianças da equipe violeta estavam todas se retirando do teatro para o início da última prova antes do recesso de inverno. A menina de tranças estava esperando que ele levantasse para acompanhar a equipe. Ela sempre seguia Rick pela escola. Às vezes era irritante estar sempre junto de pessoas mais novas do que ele, mas Georgia mostrava-se sempre à frente de sua idade. Era uma garota do primeiro ano muito inteligente que o ajudava bastante com todas as lições. Ele bufou, frustrado, e levantou-se para seguir a menina. Porém, uma mão fechou-se ao redor de seu pulso, impedindo-o de caminhar. Os olhos verde-folha da princesa da vida dominavam o rosto de Nicolle de Vie. Ela sorriu, e até isso era diferente, mesmo que as feições fossem as mesmas.
-Boa sorte –ela falou.
-Para vocês também –ele disse.
Por mais fascinante que fosse o fenômeno da menina dividindo o corpo com Nicolle, Rick sentia-se incomodado. Era com Nicolle que ele queria conversar e passar seu tempo. Até mesmo as duas admitiam serem praticamente a mesma pessoa, com os mesmos pensamentos e memórias, mas Rick discordava. Argia era uma princesa e ele queria ajuda-la. Nicolle era sua melhor amiga e ele queria conversar livremente com ela. Dave nunca fora muito bom em conversas, mas os irmãos tentavam se falar de noite, antes de dormirem sob o teto azul da casinha. Os Fellows compartilhavam o mesmo sentimento sobre isso. Dave conversava muito com Thaila, mas conversava mais ainda com Alícia. Eram coisas completamente diferentes, e ter que medir palavras e assuntos com a menina que esteve sempre ali para eles era triste. Ela sentia que os dois estavam diferentes, mas não havia muito o que fazer. Rick não sorriu de volta e seguiu Georgia em silêncio até uma clareira na floresta. Não era o lugar favorito de Alícia Weis, era bem menor, porém mais organizada e cheia de aparatus usados por Lorena em suas aulas.
Os alunos do último ano já estavam dando ordens para todos os mais novos, apresentando ideias e estratégias. Os mais novos ficavam em silêncio e concordavam em tudo, enquanto o terceiro ano brigava por posições mais importantes no plano deles. Rick permanecia em silêncio como seus colegas, ouvindo e tentando espantar o frio. Eles queriam que Rick ficasse para ajudar na defesa, e ele não contestou. Quando o alarme que indicava o início da prova soou, todos agitaram-se, incluindo a pequena criatura violeta presa na bola de vidro. Rick tinha uma espada de madeira em sua bainha, e ficou tirando lascas dela até a meia-noite, quando a ação chegou à equipe violeta. A primeira reação de Rick foi dar risada. Eram Dave, Chris e mais três alunos do quarto ano da equipe vede apareceram do meio dos arbustos para conquistar a bola de vidro roxa. Os alunos do priemiro ano levantaram e correram contra os mais velhos sem pensar duas vezes. Dave cruzou o olhar com o irmão e relaxou os ombros, como se desistindo antes mesmo de tentar. Rick acomodou as costas na árvore, sorriu para ele e fechou seus olhos. O mundo deixou de existir por alguns instantes, então, abriu os olhos de outra pessoa. Mas aquele não era Dave.
Ele conseguia sentir que as plantas eram o domínio dessa pessoa. A espada era pesada, e a roupa especial para a prova ficava um pouco apertado nas coxas. Ele sentia o ato de respirar mais pesado e todos os músculos mais leves. Cabelos louros caíam em seus olhos e faziam cócegas em sua nuca, mesmo presos no topo de sua cabeça. Rick tinha acidentalmente tomado o corpo de Chris. A vantagem foi que Dave ficou extremamente confuso ao ver o irmão desacordado e ainda ter controle sobre seus próprios moviementos. Rick já começava a sentir-se fraco quando balançou o braço de Chris com força para a esquerda. A espada de madeira atingiu a barriga de seu irmão e o fez cambalear para trás. Ele ainda teve tempo de atingir a pessoa à sua direita ants de acordar, cansado, em seu próprio corpo. Chris estava tão confusa que foi fácil para os mais novos desarmarem e ferirem-na. Rick tornou-se o alvo principal muito rapidamente, mas não queria sair dali tão fácil. Então ele fechou os olhos mais uma vez.
Seu novo corpo estava suado e cansado por dentro da roupa especial. Sua arma de escolha era um machado de madeira pesado demais para Rick atirar contra alguém com aqueles níveis de energia. Tudo o que ele conseguiu fazer foi atingir as duas pernas daquele menino com sua própria arma e eliminar ele da prova por ferimentos graves. Rick não tinha mais forças para fazer coisas tão complicadas, mas sua ideia de voltar para seu corpo seria inútil. O último integrante da equipe verde estava tirando sua espada da barriga dele, deixando uma luz vermelha piscando, avisando que a prova estava acabada para o menino Fellows. Ao mesmo tempo, um outro grupo juntou-se à confusão. Um menino de topete com as pontas pintadas de amarelo que carregava uma maça e os olhos castanhos de Nicolle eram os detalhes mais interessantes que os olhos roubados de Rick capturaram. O mundo estava escurecendo rapido demais, ficando mais frio e mais confuso, e ele não tinha certeza do que aconteceria se ele desmaiasse no corpo de outra pessoa. Ele só esperava que voltasse a seu corpo. Nicolle inclinou a cabeça para o lado, examinando a pessoa que o Fellows dominava. A regra estabelecida por Lorena era que a prova era para Nicolle e suas habilidads de espada, portanto, Argia deveria permanecer fora de tudo. Ainda assim, os olhos verdes apareceram no rosto da menina e sorriram para Rick. Ela esticou a mão, chamando-o, e ele obedeceu.
Dominar Nicolle era relaxante. A noite estava mais clara sob as árvores altas da clareira e o frio não sentia-se tão intenso quanto antes. O corpo de Nicolle era bem mais leve e esguio do que o de Chris, e seus cachos cor de caramelo pesavam em sua cabeça. A principal diferença era que ele não sentia como se pudesse fazer o que quiser. Argia também estava ali, e ela era muito mais poderosa. Argia comandava Nicolle, e agra comandava Rick. O menino sentia-se poderoso, como se nada o pudesse parar. Ele podia entrar nos corpos de todas aquelas crianças e voltar par o seu sem que ninguém percebesse. Isso, ou ele não estava apenas dentro de Nicolle, mas também na cabeça de sua princesa.
"Você não deveria forçar seu legado dessa maneira." Rick ouviu a voz vindo de trás dele. Muito próxiima, mas ainda assim, inalcançável. Era o mesmo tom de voz de Nicolle, mas com uma maciez diferente. "Relaxe, Rick. Você também é bom em espadas."
"Obrigado" ele respondeu, sem saber ao certo se a princesa o escutaria. "Não era Nicolle quem deveria estar jogando, senhora?"
"Não sou uma senhora, sou apenas uma bastarda sem rosto. E acredito que isso não seja um jogo" Argia respondeu. "Você obedece a quem bem entende, Rick, eu não obedeço à ninguém. Obedecia à minha mãe, e obedeço a meus irmãos. Assim basta."
"E eu obedeço à você" o menino falou, confuso. Até onde ele entendia, era assim que deveria funcionar. Ele era legado de Argia, ele servia à ela. Com Dave e Thaila as coisas eram assim.
"Não tem que me obedecer, se não quiser. Não sou senhora, sou apenas uma bastarda sem castelo, sem reino e sem súditos. Eu diria para você voltar para seu corpo e ir para o teatro. Mas se esivesse na guerra, lutando contra os de minha irmã da morte, o que faria?"
Rick levantou o braço de Nicolle que segurava a espada. Ela conseguia resistir ao legado do menino, e Rick teve que fazer um esforço enorme para gira-la e voltar a ponta de madeira contra ela mesma. Sua roupa piscou uma luz vermelha e Nicolle forçou-o a largar a espada no chão.
"Eu venceria" concluiu o pensamento.
"Bom" Argia falou, e Rick sentiu que ela teria sorrido, se tivesse um rosto. "Muito bom."
Ele voltou para seu corpo e, quando conseguiu por-se de pé, andou até o teatro.
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