I -Dave
Paranóia não pode ser curada com uma revista adolescente. Muito menos quando esta é segurada de cabeça para baixo por uma hora inteira. Maria Marim Fellows queria que o filho mais velho saísse de casa para tomar um ar, e ele não estava nada feliz em fazer isso. Agosto, no Brasil, era frio. Além disso, choveria a qualquer momento. O céu estava escuro e trovões já eram ouvidos ao longe, mas a água não caía. Dave estava encostado na parede da padaria Pão do Parque da Vila São Francisco. Tinha ido até lá para um café, as não encontrara apetite para tal. Trouxera uma edição da popular revista adolescente Pest Pixie que Alícia Weis esquecera em sua casa. A revista não tinha conteúdo nenhum que agradasse a Dave, mas nem ele mesmo sabia disso. Estivera apenas virando as páginas, apoiado casualmente como se tudo estivesse bem. As aulas de sua amiga Nicolle acabariam em algus minutos, e eles iriam juntos para o cinema depois. A escola era bem perto da casa de Dave, ele não precisava ter saído três horas antes, mas sua mãe insistira. As pessoas que estacionavam o carro, caminhavam ou compravam pão francês não faziam ideia de que, a qualquer momento, uma princesa do mal poderia aparecer por ali para levar Dave até Chelmno. A mãe era inocente de mais em pensar que ele poderia relaxar.
Sua rainha Thaila não tinha mais tantas tarefas para ele, mas Dave queria ficar no Castelo de Vidro do mesmo jeito. Depois da coroação, ele teve que perder mais duas semanas de aula. A morte do rei obrigara o reino a declarar luto, mas o motivo principal para o menino faltar às aulas era seu trabalho como representante e ajudante da nova rainha de Érestha. Thaila tinha muita coisa para fazer, e Dave parecia ter o dobro. O menino Gabriel, pequeno ajudante de Dave, foi tão bom que ele decidiu te-lo ao seu lado por mais tempo. Ele transmtia recados pelo reino enquanto Dave ajudava a rainha. Ele frequentou tantas reuniões em tantos lugares diferentes que, se visse mais uma sala com mesa comprida, pastas e folhas, perderia a cabeça. Quando finalmente voltou para a casinha azul na Escola Preparatória da Província de Tâmara ele dormiu. Perdeu metade de um dia de aula pelo sono. Todos os professores foram muito compreensivos e seus amigos ajudaram a reenseri-lo nas matérias. Dave não entendia como aquilo tudo era importante. Por que se importar em aprender sobre rochas, estrelas e meteorologia quando uma segunda guerra se aproximava? Alícia era a única que parecia concordar. Ela passava mais tempo na clareira treinando seu legado do que estudando como os outros. Duas noites depois, ele começou a frequentar as aulas de dia e passar as noites no castelo da rainha. Ele fazia suas tarefas ali, tanto as da escola quanto do emprego. No terceiro mês do mandato de Thaila, ele já não estava carregado de trabalho, e Thaila insistiu que ele voltasse para a escola integral. O primeiro dia feliz que teve foi em Março, no primeiro aniversário de Mariana, a filha de Lorena e Rômulo.
As famílias alugaram um espaço em uma pequena cidade de Tâmara onde Madalena e Reginald haviam sido criados. Enfeitaram tudo com bexigas e fitas amarelas e convidaram pessoas próximas. Rick e Maria também compareceram, com a autorização pessoal da rainha para estarem ali. Nicolle não fora por razões de saúde. Ela estava bastante doente há um ano. Vomitava muito, tinha dores de cabeça e cansaços repentinos. Estava no hospital naquele dia, tomando soro na veia. A falta dela era notável, mas ter as famílias reunidas era muito bom. Fellows e Weis misturavam-se entre salgados, brigadeiros roubados e crianças pequenas que frequentavam a mesma creche de Mariana. Riley começou o melhor jogo de festas de aniversário de criança de todos os tempos:
-Dez pontos por cada brigadeiro que for pego sem sermos vistos. Vinte pontos cada vez que conseguirmos trocar uma esfiha de carne por uma coxinha das outras mesas. E cinquenta pontos se Tia Rosa ver e ficar estarrecida.
Alícia, Rick e Dave riram tanto que as outras pessoas estranharam. Riley ganhou cento e vinte pontos no primeiro minuto, acabando com dois brigaderos e duas broncas em tempo record. Lorena ficou sabendo da brincadeira e, ao invés de para-los, juntou-se a eles. Metade dos doces e das coxinhas desapareceram em duas horas de festa. O bebê era a pessoa mais animada dali. Mari pulava no colo de todos e ria de qualquer coisa. Rômulo e Lorena segurando-a juntos e sorrindo era uma cena maravilhosa. Mariana era um milagre, uma luz na escuridão do coração de Dave. Ela tentou seu melhor para assoprar sua vela de aniversário. Os pais a ajudaram, e foi Dave quem fez um desejo. Fique bem. E a fumaça levou seu desejo para os ventos.
No dia seguinte ele foi para o Castelo de Vidro apens para visitar a rainha. Ela estava tentando decidir o que fazer em relação às pessoas que acusavam Dave de abandono e traição ao rei. Ele mesmo não se importava com aqueles que colocavam a morte do rei e a acensão sob sua responsabilidade. Apesar de muitos acreditarem nisso, não eram burros o suficiente para tentar tira-lo de Thaila. Eles queriam explicações do por que ele não falava em público e deixava Gabriel em seu lugar. Quando viu Thaila realmente preocupada com isso, resolveu abrir os portões do castelo mais uma vez. Ele vestiu seu terno feito pelo Mago Roxo e apareceu, sozinho, na varanda de vidro. Sua mãe estava atrás das cortinas, esperando o filho para um abraço após seu discurço. Ele contou tudo. Falou sobre a raptura de Alícia Weis, guerreira de Tâmara, falou sobre a morte da representante de Elói e sobre como atendeu ao pedido de socorro de Thaila imediatamente.
-Eu não era protetor do rei –falou –e não tinha como eu saber que ele estava para ser assassinado. Surpreende-me que alguns alegam que eu o abandonei e traí, quando nunca jurei protege-lo. Se tivesse a oportunidade, eu o teria salvado, qualquer um de nós teria. Eu não estou aqui para criar desculpas nem para ganhar de volta o suporte dos que agora me acusam. Só estou aqui por que quero que ouçam da minha boca como as coisas aconteceram. Tabata matou o rei, matou Lawrence e mais vinte e três funcionários do castelo, além de ferir sua rainha. Eu não desejei nada disso e fiz o que pude. E se quiserem saber por que pedi que Gabriel falasse por mim a resposta é simples: Não quero ter que ficar revivendo meu pior dia a todo momento. Para os que ainda acreditam em mim, obrigada. Para os que são contra mim, não acreditam em minha versão dos fatos ou simplesmente não tem o que fazer a não ser odiar e obrigar-me a sentir ainda mais miserável, eu sinto muito.
A maioria aplaudiu, alguns vaiaram. Ele se virou e atravessou as cortinas. Maria o abraçou e Thaila andou para ver seu povo. Dave não queria que ela falasse nada a respeito, mas foi de grande ajuda ouvi-la defendendo-o. Falou pouco, cinco minutos no máximo, mas terminou de uma maneira que fez Dave querer abraça-la ainda mais forte do que jamais tivera feito.
-Já ouvi muitos de vocês comparando-o com seu pai e dizendo que ele me deixará como Reginald deixou seu batalhão há quinze anos. Palavras de ignorantes. Eu acredito cegamente nele. Se confiam em mim, podem confiar em Dave. Se não, sugiro que vocês busquem cuidar de suas vidas e deixem-no como problema meu. Obrigada e tenham todos um ótimo dia.
Logo depois daquilo os dois foram para os jardins dela. Dave finalmente sugeriu que ela criasse um manifesto, como os outros irmãos tinham. Edgar presava os talentos, Teresa defendia a seriedade, Tâmara falava sobre sentir-se bem com sua aparência e Elias falava sobre respeito e humildade.
-Isso é difícil –Thaila falou, rabiscando uma flor num pedaço de papel.
-Não deveria ser, vamos! Como posso ser um de seus seguidores se nem sei no que me espelhar? -ela riu. A cicatriz em seu pescoço já estava muito melhor, mas ainda era assustadora. Dave nunca contara sobre as coisas que Tabata lhe dissera. Não tinha certeza se ela estava acordada quando a irmã falou sobre esquarteja-la e manter Dave vivo para Isabelle, mas Thaila não falava sobre aquela noite. Seu sorriso, porém, era o mesmo. Belo como sempre. –No que você acredita?
-Acreditar? Eu acredito em você Dave. Em minha mãe, em meus irmãos, até em Francis. Acredito em acreditar.
-Perfeito –Dave sorriu. –Então escreva isso.
"Acreditar: é isso o que estimamos. Se acreditarmos e nos espelharmos naquilo que achamos certo estaremos certos. Não há padrão a seguir, acredite em si mesmo." Esse foi o resultado final do pequeno manifesto da rainha. Ela pediu que as frases fossem pintadas na parede de seu quarto e Dave fez o mesmo na casinha azul sem que o diretor soubesse. As coisas estavam menos ruins naquele ponto, mas Dave ainda sentia-se miserável. Suas notas para passar daquele ano foram razoáveis e as férias foram bem sem graça. Alícia e Riley visitavam-no, e ele passava basante tempo com Nicolle, mas nada disso era bom o suficiente. Ele queria Bia, e Bia apenas. Quando ele estava desfazendo as malas da escola, ele encontrou um casaco que já era pequeno de mais para ele. Os bolsos tinham coisas muito valiosas, por isso estava sempre com ele. Em um deles, a carta de seu pai. No outro, um pequeno frasco em forma de diamante com um brilho azul. O líquido era lágrimas de seria, a substância que podia trazer pessoas de volta a vida. Ele lembrava-se de ter ficado bravo com Bia quando ela dissera para esconder aquilo dela, mas Dave entendia. Ele esteve muito próximo de tirar sua própria vida para trazer Bia de volta com aquilo diversas vezes. Então ele deu o frasco para Thaila logo no início das férias.
-Onde você conseguiu isso, Dave? –ela perguntou, fascinada.
-Com S –ele falou. –Uma sereia do rio.
Thaila entregou-o imediatamente para uma senhora que a seguia para todo o lado e pediu que guardasse aquilo muito bem. Agradeceu Dave e ordenou que ele fosse para casa se divertir. Assim, ele chegou ao ponto de segurar uma revista adolescente para enganar a si mesmo. Ele não conseguia entender o porquê de Tabata não ter matado a irmã e ter agradecido a ele por ter furado seu coração. Ele sabia sobre a passagem de sua província para a árvore próxima a estação Sõa Bento, no centro de São Paulo. Ele avisara Thaila, sua tia e até Nicolle. Esperava que algo de muito ruim acontecesse, mas, em seis meses, não havia nem sinal de Tabata ou Pedro ou Isabelle. Os sonhos de Alícia estavam limpos, por que a cabeça de Dave não podia ser igual? Ele bufou, e o barulho de um raio o assustou. A chuva ainda não caía.
-Com liceça –uma pessoa pediu.
-Me desculpe –ele levantou o olhar para dar passagem. A pessoa era uma menina que vestia uma capa de chuva amarela. Até ai, tudo bem. Mas seus cabelos eram roxos como suas botas de chuva enfeitadas com corujinhas coloridas. –Thaila?
Ela riu e começou a correr. Dave arregalou os olhos, deixou a revista cair e correu atrás dela, gritando para ela esperar. Passou pelo açogue e aquele restaurante que mudava o nome todo o mês e atravessou a rua. Dave teve que parar por causa de um carro, mas seguiu logo depois. Perto da farmácia, ela olhou para trás com um sorriso divertido e acelerou. Virou a esquina e, quando Dave fez o mesmo, ela não estava mais lá. Ele olhou em volta, chamando seu nome, mas não houve resposta. Uma folha de papel estava caída próxima ao poste de energia que atrapalhava a passagem na calçada. "Vá se divertir" estava escrito com tinta roxa. Dave amassou o papel, frustrado e olhou para frente. Algumas crianças já saíam da escola pelo portão principal, e a rua estava congestionada de ônibus escolares e carros dos pais. Andando rua a cima, com uma mochila colorida, fichário de baixo do braço e enormes óculos de armação branca no rosto vinha Nicolle de Vie. Ela sorriu quando viu Dave e acenou. Dave sorriu de volta.
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