T4:C3 - Olhe para mim
Dentre todos os olhares em volta da mesa, Derick era quem estava mais focado a tacada decisiva na bola oito, roçando o taco entre seu polegar e indicador. Chegou a erguer o olhar para a ruiva de pontas loiras - amarrado num rabo de cavalo - na lateral da mesa, esperando com a mão no quadril e a canhota batucando a ponta do taco. Atrás dela, a multidão no convés roendo as unhas.
A tacada foi executada. A bola preta rodou em alta velocidade no canto da caçapa e quicou para o meio da mesa.
– UHHHHHH. - urram.
Sabrina se inclina, cerra os olhos num cálculo e então dá a tacada. A bola oito foi direto na caçapa diagonal esquerda, sumindo ao cair no buraco. Aplausos e euforia vieram do público atrás dela, enquanto que a plateia do loiro urrou em decepção. Um homem atarracado estapeou o ombro de Derick.
– Perdi um galão por sua causa. - passa por ele.
– Ei, Derick. - ela se inclina. – Não fique triste. Eu te deixo perder na próxima.
Os demais riem e o loiro também, forçado.
Todos se espalham levando cadeiras e bebidas. Cobranças daqueles que apostaram se afastavam junto aos passos.
– Parabéns. - aplaude Gormax do cais, levando os olhares da dupla para cima. – Foi um puta jogo, menino D. Sassa, o que acha de jogarmos com outras bolas agora?
A ruiva sorri, põe o taco sobre a mesa e concorda com a cabeça. Derick a vê seguir até as escadas.
– D, não esquece de checar os contêineres. - se afasta do parapeito.
A risada da moça é escutada lá de cima. O loiro baixa o olhar, deixa o taco sobre a mesa e se afasta, acendendo um cigarro.
No trajeto em que acende o maço, percorre pelos corredores com forte cheiro de cândida, desvia de um dos limpadores no caminho e sai pelos fundos. A cena de trabalhadores indo e voltando revela-se na claridade da tarde. Ele esbafora a fumaça e pousa o olhar na escotilha do escovém aberta, tendo a escuridão interior clareada em um lampejo de faíscas alaranjadas.
Derick atravessa o escovém em poucos minutos e para em frente as escadas que levam a escuridão. Conforme desce, o som da serra aumenta. Por um momento tem a impressão de ouvir o moer de carne e o som das solas no piso pegajoso. Ele conclui sua tese quando vira a esquerda e vê o senhor de baixa estatura, óculos na ponta do nariz e jaleco sujo de sangue fresco e enegrecido cortando metade da perna de um cadáver.
– Stefan, que porra é essa? - balança o cigarro ao mexer a boca.
O mesmo foca seus olhos pequenos e castanhos no fumante parado na entrada.
– Derick, o cigarro.
– Desculpa. - tira da boca, apaga o maço com a ponta do tênis e se aproxima. – O que tá fazendo?
– Os corpos na entrada estão apodrecendo e agora os mortos estão passando. Visto que eu só preciso do cérebro, me optei por desmembrar alguns mortos dos contêineres. Trevor disse que vai me render uma boa caixa de picles.
– Saquei. - põe as mãos na cintura. – Aqui fede. Não te incomoda? - franze o nariz.
– É meu local de trabalho. E como foi o jogo?
– Ruim. Eu perdi. - dirige-se para a mesa a direita, onde mais um corpo espera ser dilacerado.
– Oh. Que pena. - joga um pedaço do braço no balde debaixo da mesa de rodinhas. – Já que está aqui, permita-me mostrar. - vai para trás do balcão no fundo do porão, deposita dois potes sobre e chama pelo loiro.
Derick passa do corpo mutilado e para na frente do balcão, já tendo a curiosidade atiçada quando vê os cérebros preservados nos potes.
O órgão da direita tem um tom amarelo claro dominado por linhas roxas, o lóbulo frontal tomado pelo cinza e a água flutuando um pus semelhante a da gordura de uma linguiça fervente. Já o cérebro do pote da esquerda era rosada, mais vivo em sangue, tendo o lóbulo frontal amassado e a água quase enegrecida.
– Tá. O que tem isso? - alterna o olhar para cada pote. – Vai criar um Frankstein ou algo assim? - sorri.
– Não percebe? Olhe. - lhe entrega o pote com o cérebro rosado. – É nítido que o vírus não dominou totalmente este aí. - comenta enquanto o loiro examina o órgão. – Sabe que o nível de decomposição acelera quando o vírus age. As raízes mudam de cores, se predominando mas não te destruindo totalmente.
– O que quer dizer?
– Veja este. - pega o cérebro amarelo. – Retirei de um dos andarilhos do contêiner. Talvez esteja morto há um ano, não sei. Mas a diferença visual espelha o comportamento de cada um deles. Este que estou segurando é um infectado que espera a próxima vítima numa dentada. Já o seu - aponta para o pote nas mãos dele. – contém uma parte que você ainda foi.
– Como se ainda estivesse vivo. - murmura.
– Exato. Isso responde o por que do comportamento deles mudarem com o passar do tempo. No início eles eram mais ágeis, fortes, velozes, porque ainda tinham um pouco de si. É como se você fosse hospedeiro de seu próprio corpo, e isso vai se perdendo conforme o vírus te domina até que reste apenas um andarilho esfomeado. - diz eufórico, como uma criança explicando o que aprendera aos pais.
– Stefan, isso é... Uau. Muito esperto.
– É o básico que devemos saber sobre esses bichos.
– É. - concorda, acanhado. – Mas onde conseguiu esse cérebro fresco? Matou um recém-transformado com uma pedra? Tem um puta rombo aqui.
– Quase. Na verdade, era do Scarlen.
Derick desmancha o sorriso, encarando o órgão flutuante na água. A cena de Gormax desfigurando Scarlen na beira do oceano volta a sua mente como um soco que o faz piscar três vezes e devolver o pote a mesa.
– Tenho que ir. - se afasta.
– Derick, qualé.
– Preciso cuidar dos bichos nos contêineres. - diz sem olhar para trás, se retirando em passos largos.
* * *
Cigarros, uma boa dose de uísque, uma poltrona confortável e uma tevê funcionando para reassistir The Mary Tyler Moore Show o espera em seu intervalo vespertino.
Abafa o maço com a mão, caminha até a última porta do corredor chique do navio e adentra seu quarto. Derick para na porta entreaberta quando foca na nuca cheia de grisalhos e orelhas grandes atrás de sua poltrona.
O visitante inesperado olha para trás, mostrando seus dentes da frente separados num sorriso largo, os olhos pequenos e enrugados e uma estatura considerável alta ao se levantar - as botas desgastadas lhe davam mais alguns centímetros.
Nylon Peer é um cinquentão divorciado de poucos cabelos - que dá mais espaço a testa - e um ex-fazendeiro que não larga de seu macacão azul desbotado, cobrindo a blusa xadrez vinho de mangas arregaçadas.
– O que faz aqui? - questiona o loiro, fechando a porta devagar.
– Eu sabia que era seu intervalo. Queria ter tido essa conversa há dias, mas... você sabe. Posso tirar um minuto do seu tempo?
– Claro. Sente-se.
Nylon volta a poltrona. Derick puxa uma cadeira no canto do quarto estilo século XX, senta-se a frente dele com as mãos nas costas do assento.
– Nos conhecemos desde o começo dessa merda. - começa Nylon. O loiro assente. – E mesmo que os outros não tenham coragem de dizer, eu digo. Derick, não dá mais.
O loiro franze o cenho, tira o cigarro da boca e esbafora a fumaça no ombro esquerdo.
– O que quer dizer?
– Viver da base do escambo? Ser espancado se não cumprir ordens e se for azarado, ser levado para os contêineres? Não. - desencosta da poltrona. – Isso não é vida, Derick. Tudo era muito melhor quando...
– Tá. - adverte. – Onde quer chegar?
– Vamos fugir.
– Fugir? - tosse, tira o cigarro da boca.
– Isso. O que você tem a perder? Tudo que antes tínhamos se foi, junto com o respeito por você!
Derick ergue o olhar, taciturno. A afirmação do velho veio como um tiro em seu peito. Isso era um fato. Derick já sabia disso, mas quando há alguém para dizer na sua cara o baque é maior. Muito maior.
Após um silêncio constrangedor, pergunta:
– E pra onde iríamos?
– Longe. Recomeçar em outro lugar. Outro estado. Texas, talvez.
– Texas? Nylon, ele tem vigias a quilômetros daqui. Assim que sairmos, seremos alvos fáceis.
– Por que você contesta?! Você sabe o que ele fez com o Scarlen e mesmo assim continua aqui. Eu não sou burro, cara. Sei que eles não tinham uma boa relação e quando Gormax achou um motivo, agiu logo. - se inclina, apoia o braço no joelho. – Agora temos o nosso.
Derick aproxima o rosto, sopra a fumaça e comprime os lábios.
– Se sairmos acabaremos como Scarlen. - argumenta na esperança de mudar a ideia dele.
Nylon pisca umas duas vezes antes de baixar a cabeça e encarar piso. Comprime os lábios e sussurra algo inaudível para Derock. Ele levanta e sai do quarto sem uma despedida, deixando a porta entreaberta.
Dominado pelo silencioso, com turbilhões de pensamentos à tona, Derick encara a porta se fechar sozinha num ranger estridente.
* * *
– Babá eletrônica, no alcance? - Derick questiona no bocal do rádio.
– Nada ainda.
– Me mantenham informado. - finaliza.
Já se faziam quatro horas em que seguiam na busca pela mata. O posto Sulivan 308 notificou um ataque e em questão de minutos os principais deram as caras na área.
Junto ao loiro, uma morena alta e magra esmaga as folhas secas com sua bota de couro e cano alto. As barras dobradas do jeans rasgado mostram os tornozelos e a jaqueta preta por cima da camisa cinza esconde a faca de caça.
Quando Derick avista respingos de sangue, a caminhada cessa.
– Os desgraçados fizeram uma verdadeira bagunça. - resmunga Hope.
– É. - segue a trilha com os olhos.
A trilha sumia entre as folhagens no chão. Os troncos cinzentos e tortos eram de montes e criavam um caminho em ziguezague por entre os galhos soltos.
Hope passa pelo loiro de blusa xadrez escura e desce o barranco. Derick a segue com as mãos no quadril e a cabeça baixa.
– Você tá bem? - pergunta ela sobre o ombro.
– Por que não estaria? - desvia de um tronco no chão.
– Cê tá estranho. - para e fitá-o.
Ele também parou e deu uma olhadela na moça persistente em saber o que lhe incomoda. Suspira pesado.
– Posso confiar em você?
– Sabe que pode.
– Nylon veio até mim e disse que tá planejando uma fuga.
Hope pisca forte e desvia o olhar, soltando o ar.
– Eu rejeitei, óbvio. Mas ele vai agir, só não sei quando.
– "Óbvio"? - se mostra surpresa.
Derick arqueia a sobrancelha, dá um passo para trás em numa surpresa e curiosidade maior que a dela.
– Achei que ia dizer que estava ajudando ele. - diz ela.
– Por quê?
– Por que não? - joga a pergunta, incrédula. – Derick, depois de tudo que passamos. Depois do que Gormax fez...
– Aí!
Eles olham em sincronia para calvo empoderado a dez metros, sobre o barranco. É Trevor Jones, um dos principais de Gormax, agora coçando o bigode.
– Achamos os corpos.
– Mas tem uma trilha aqui. - Derick aponta.
– Depois analisamos. Venham.
Trevor, sujeito de poucos cabelos com social cinza de mangas curtas, leva a dupla ao pequeno terreno onde os corpos dos dois guardas se encontram. Um está ensopado de sangue seco no pescoço degolado, enquanto a outra tem a cabeça estourada encostada no barranco.
A frente dos cadáveres, usando sua jaqueta preta de couro e a lâmina do machado no chão, Gormax vira para os recém chegados.
– Steven e Anne. - rosna o líder.
Derick ousa se aproximar fixado os corpos.
Todos ficam por um longo tempo sem dizer nada. É o suspiro dado por Gormax que erguem as cabeças e voltam a atenção nele.
– Façam duplas. - vira-se para eles. – Procurem rastros, trilha de zumbis. A porra toda. Eu quero que mantenham os olhos abertos. Suspeitem até do próprio barulho dos órgãos de vocês. Derick, comigo. - inicia a caminhada.
Derick dá uma olhada em Hope antes de ir, e o aceno de cabeça dela o encoraja.
O restante segue por direções aleatórias com suas respectivas duplas.
(...)
A busca se segue em silêncio. Os pássaros que agitam as plantas são um dos únicos sons naturais que emanam naquele momento. As árvores passam a farfalhar com a ventania que fecha o céu numa paisagem escura de nuvens cinzentas.
Cada passo dado pelo furioso líder - que manifesta sua raiva em silêncio - esmaga os galhos secos e gravetos caídos no chão. Eles serpenteiam as árvores e arbustos a frente.
– Opa. - Gormax alerta. Derick para. – Ali. - aponta para o corpo a cinco metros.
Gormax tira um galho da frente e dá um passo largo que o deixa um metro e meio do caminhante de pelanca e fios ressecados. Por cima de seu ouvido esquerdo se vê um buraco de bala dominado por larvas que se contorcem sobre umas as outras.
– Os cretinos passaram por aqui. - se agacha, analisando o cadáver.
– É recente? - Derick estica o pescoço, mantém a mão na Glock em seu coldre.
– Não parece. - puxa um fio quase sólido de sangue e derruba depois. – Só tem uma pessoa que possa ter feito isso. E eu sei bem que é.
Durante a dedução, o polegar do loiro puxa a trava da Glock devagar, soltando concordâncias para manter a discrição. Vagarosamente puxa a pistola. O processo se marca pelo silêncio dos pássaros como se tivessem assistindo com temor a tentativa de Derick.
– Phillip. - Gormax olha por cima do ombro.
Derick vira o corpo escondendo a Glock fora do coldre, estica pescoço com a sobrancelha arqueada em dúvida.
– Pode ter sido qualquer um.
– Que desconhecido atacaria postos com homens fortemente armados, D? - levanta.
– Bem, tiramos as armas deles. - lembra.
– Nada impede do filha da mãe do Phillip ter contatos. Vamos. - passa por cima do corpo.
Um chiado vem subitamente do walkie-talkie.
– Gormax, na escuta?
Ele puxa o comunicador e aproxima o bocal.
– Afirmativo.
– Encontramos algo que vai querer ver.
Gormax e Derick trocam olhares.
(...)
Luis, um sujeito franzino e de boné para trás, finaliza seu companheiro de grupo quando o mesmo já zumbificado tenta atacá-lo.
O corpo do motorista está do lado do caminhão. Um furo no reboque entrega o que atingiu o falecido de pescoço furado. As armas de ambos haviam sido recolhidas.
Sabrina amarra a cortina de PVC e libera entrada para Gormax no reboque, que sobe num solto. Ele analisa cada centímetro, vê miolos e restos de cerebelo no teto e as caixas com respingos de sangue.
– Isso explica muita coisa. - comenta Trevor no lado de fora, escorado na entrada.
Gormax fecha os olhos, suspira fundo e murmura algo que ninguém ouve. Rapidamente, se vira - faz a equipe recuar assim - e desce o reboque com cara de poucos amigos. Ele olha para cada indivíduo presente antes de começar.
– Vamos voltar. Seja lá arrombado que fez essa filha da putagem, não vai ficar barato. Alguém leve os corpos e os deixem no porta-malas. Faremos um enterro digno aos nossos comparsas. - começa a andar, saindo do círculo a sua volta. – Vou levar o caminhão. Não perderemos suprimentos também.
* * *
Concentrado no teto branco de seu quarto chique, a fumaça soprada entra no campo de Derick e a queimação domina seus pulmões. De camiseta cinza, jeans claro e descalço, ele pensa nas últimas semanas. Ou melhor, meses. A conversa de Nylon voltando como uma notificação em sua cabeça, depois o ataque dos postos e de novo a proposta de Nylon.
Você não querer isso, pensa.
O barulho das rodinhas atrai o olhar dele até a porta. Sob ela uma sombra passa ligeiramente.
Derick apaga o cigarro, levanta e em três passos escancara a porta. É revelado o sujeito alto de vestes de fazendeiro carregando uma mala e uma mochila nas costas.
– Que porra é essa?
– Estou indo. - volta a andar.
– Nylon! - Derick passa da porta. – Pare! EU DISSE PARE! - vocifera.
Nylon cessa o andar, mas não se vira. Sua respiração começa a acelerar e uma negação de cabeça vem em seguida.
– Vai contar?
– É meu dever.
– Já estarei bem longe até lá. - diz sobre o ombro.
A porta no fim do corredor abre, fazendo Nylon parar novamente e Derick travar o pé no próximo passo que seria dado.
Sabrina vai em direção a eles e para no meio do corredor.
– Gormax quer todos na cabine.
– Por quê? - Nylon indaga, engolindo em seco.
– É uma ordem. Vista-se. - dirige-se a Derick.
(...)
As conversas incessantes param, enfim, com a chegada do líder. Os chamados estão sentados a longa mesa no centro da cabine do piloto. No lado esquerdo da mesa: Derick, Sabrina, Nylon e Luís. No lado oposto: Hope, Trevor, Charlie, Alvin e Cindy.
Gormax contempla a vista da cabine, cantarolando com as mãos na cintura, vira-se para todos a mesa e se apoia nela.
– Eu tive que interromper o descanso dos senhores, porque hoje eu tô sendo mais fodido que puta no feriado. Primeiro me vem a notícia de que nossos postos foram atacados por fantasmas e a minha gente morreu por isso. Isso é uma merda que não dá pra engolir. E pra me arrombar mais ainda, me vem um filho da puta roubar nosso ESTOQUE. - soca a mesa, escapa frações de saliva da boca, endireita a coluna e alterna o olhar para cada lado da mesa.
Disfarçamente, Derick olha de canto para Nylon na lateral. O mesmo não devolve, pois sabe que está sendo alvo do loiro.
– Agora, a doce Cindy, que tem a responsabilidade de cuidador dos mantimentos - aponta para a moça de dread com pontas loiras, seus olhos cor de mel fixam no líder empoderado. – veio me avisar sobre o ocorrido. - continua ele. – Mas eu penso que ela pode ter sido esperta o bastante para ter roubado e vindo denunciar, achando que ia se safar.
Cindy nega subitamente. Uma onda de pavor cresce na jovem que arrepia até sua espinha. Antes que fale, Gormax a adverte.
– Não tem que se preocupar, querida. Eu confio em você. - caminha em direção a ela.
Todos a vem engolir em seco e se afastar centímetros quando Gormax chega atrás dela. Alvin e Charlie, os quais ela está entre, afastam suas cadeiras centímetros dela.
Cindy se encolhe quando Gormax pousa as mãos em seus ombros e comprime os lábios carnudos.
– E é por isso que eu reuni os principais cuidadores do estoque, armazém e o caralha quatro. Eu posso estar me precipitando em acusar o sujeito que talvez nem esteja aqui. Isso é verdade. - diz aos demais, massageando os ombros dela. – Mas ver vocês cagando nas calças é o melhor de tudo.
TUMM.
A cabeça de Cindy bate contra a mesa. Todos dão um pulinho.
Gormax puxa a faca e pousa a lâmina na traquéia dela.
– NÃO! POR FAVOR!
– Shhhh. - força cabeça dela contra a mesa e acaricia seus dreads. – Só quero saber se o imprestável vai ter culhões o bastante pra se auto delatar. Caso contrário, ela morre. E se a Cindy for a culpada, eu termino o processo aqui mesmo.
– NÃO FUI EU. EU JURO. - balbucia com o rosto inchado e os olhos cheios.
– SE MANIFESTE! - berra.
Nylon mal consegue falar, assim como todos. Sua boca se move, mas nada sai. Estava catatônico, temeroso. Sabia o destino que lhe aguardava se dissesse. Ele deixaria acontecer e teria de conviver com isso.
Derick está fixo a ele, respirando rápido e cerrando os punhos, esperando que se manifeste. Ele trinca os dentes e olha para a refém aos prantos.
– Como queiram! - Gormax ergue o braço.
– NÃOOOO! - Cindy treme, deixando uma poça de saliva na mesa.
– FUI EU!
A faca trava no ar.
Os olhares vão direto ao sujeito loiro com o trêmulo braço erguido.
Sem olhá-los diretamente, Derick repete:
– Fui eu. - baixa o braço e olha para Gormax. – Só eu.
O líder o encara, deixando nítido a surpresa e ao mesmo tempo a decepção que se dá num aceno, uma piscada repentina e o comprimir dos lábios.
Derick percebe o olhar aflito de Hope a sua frente e baixa a cabeça num sinal de arrependimento.
Os pisões de Gormax seguem em direção ao loiro cabisbaixo. Derick vê o tênis empoeirado dele parados do seu lado.
– Olhe pra mim.
Derick ergue a cabeça devagar e aos poucos tem o rosto inexpressivo de Gormax diante de seus olhos.
– Eu sinto muito, Gor...
Ele é interrompido quando dá de cara na mesa pelo impulso que Gormax deposita em sua nuca. Gormax dá um puxão nos fios longos dele, que exprime a dor entredentes, e o atira no chão com a cadeira.
Derick cai cobrindo o rosto. Gormax não desiste e delibera chute em suas costas, endireitando a postura do agredido. Outro chute. Outro. Outro. E mais outro.
– Eu confiei em você, seu merda! - resmunga entredentes.
A cada chute, os espectadores se encolhem com micro expressões de agonia. Somente Trevor se mostra satisfeito, com o braço apoiado na mesa, uma perna sobre a outra e o braço esquerdo pendurado nas costas da cadeira, seu semblante cresce um sorriso lateral.
Gormax levanta Derick pela gola e lhe dá um soco de direita que faz saliva e um jato rosado escapar de sua boca. O corpo se contorce no chão como um feto em formação. Mais um chute é dado e dessa vez é certeiro no nariz do indivíduo.
– Cuzão.
O agressor enfurecido retoma o fôlego, leva as mãos a cintura e vira-se para os acomodados na mesa.
– Novo sistema, bichonas! - crava a faca na madeira da mesa. A lâmina treme ao ficar fixa. – Sem mais essa de duas latas por dia. A chave do estoque ficará comigo e o mesmo com o arsenal. Só terão as coisas quando eu achar apropriado. Entenderam?
Todos acenam como crianças assustadas após uma bronca. Isso rendeu um sorriso largo na feição do líder.
– Trevor, leva ele daqui. - levanta a cadeira caída e senta-se na extremidade da mesa. Apoia os pés sobre a mesma e entrelaça os dedos. – Os outros, quero que tirem o café da tarde, almoço ou sei lá o que do pessoal. Infelizmente, por causa de um, todos pagam. - olha para Derick. – E fechem as saídas.
– Por quê? - Hope abusa perguntar.
Gormax não responde, somente se mantém fixo ao deitado.
* * *
A escuridão vai embora no abrir da porta. O fedor de mofo e umidade entra nas narinas de Gormax. Ele vê Derick encolhido no canto da parede.
– Olhe pra mim.
O sangue seco escorrendo do nariz é visto na luz atrás de Gormax. Cortes nas maçãs do rosto e na boca e um inchaço no olho esquerdo compõe o semblante de Derick.
– Eu te fodi legal. - sorri, apoia a mão no batente. – Me diz, o que te levou a fazer isso? Foi por causa de antes?
Derick ri, mas logo para ao sentir a pontada na costela.
– Por que tá perguntando? Você sabe que não foi eu. - fecha o olho esquerdo devido a luz, mantém o sorriso.
– Como é?
– Por qual outra razão teria trancado tudo e me deixado vivo? Até então você parecia que ia degolar o culpado.
Gormax mostra os dentes ao abrir um sorriso, concordando.
– Esperto, eu admito. O que você sabe que eu não sei, D?
– Nylon.
O líder entra na cela, agacha-se com os cotovelos apoiados nas coxas e fica cara a cara com o agredido.
– O quê?
– Ouvi ele planejando uma fuga.
– Quando e com quem?
Derick ergue a cabeça, destacando-se na luz de fora.
– Scarlen. Depois que ele morreu, Nylon se aquetou. Eu sabia que era só questão de tempo até algo acontecer. - inventa.
– Se sabia, por que se entregou?
– Gormax, você me conhece. Eu acreditei que ele tivesse mudado. Mas depois do que você fez, depois de eu vê-lo hesitar, tudo fez sentido.
– E vocês se arriscou mesmo com a possibilidade de eu te matar na frente de todos?
– Bem, funcionou, não?
– Aham. - umedece os lábios. – Scarlen, é? Agora tudo faz sentido. - levanta e vai até a porta. – Toma um banho. Cê tá fedendo pra caralho. Me encontra nos contêineres depois.
* * *
– Tem certeza do que viu? - questiona Nylon, seguindo Trevor para fora do navio. Junto a eles está Sabrina, caminhando mais atrás.
– Uma das crianças viu o desgraçado fugindo. - Trevor comenta.
Eles chegam ao contêiner C de cor tijolo. Assim como todos os outros, que estão espalhados no terreno de areia como dominós, os grunhidos e aranhões no metal são escutados.
Trevor cessa o andar e assobia. Nylon para, franzindo o cenho e olhando em volta.
O sibilar continua, mas dessa vez vem de outro tom de voz. Logo o assobio se altera para uma canção, fazendo Nylon olhar de volta na direção de Trevor.
De trás do contêiner, Gormax surge assobiando com o machado no ombro.
– Tam. Tam. Tam. Tam. - sorri.
Nylon nota o círculo que vai se formando a sua volta. Ele dá meia volta para iniciar a corrida, mas é a aparição de Derick que o impede. O loiro encara o mesmo com desprezo e nenhum pingo de arrependimento.
– Por quê? - murmura Nylon, incrédulo.
– Por que não?
Nylon trinca os dentes.
– Pois é, Nylon. - Gormax pousa a mão em seu ombro. – A vida é cruel. Cruel o bastante pra te foder mesmo já estando arrombado.
– Eu... Eu po-posso explicar.
– É claro que pode. Mas pra mim já está tudo muito bem explicado, Nylon.
– Não, po-por favor. - gagueja. – Eu só...
– Ei. Tá feito. É a entropia, meu amigo. Não se pode voltar atrás. - encosta sua testa na dele. – Não se pode.
Nylon se encolhe com a facada subita que adentra suas entranhas, prende o ar e olha para o Gormax. A faca é retirada.
Segurando o ombro do atingido, Gormax tem firmeza para manter o sujeito de pé e lhe apunhalar mais uma vez. Melhor, três vezes seguidas. A cada retirada da lâmina, Nylon se contorcia e recuava. O barulho era de uma almofada sendo esmurrada com a adição de um som molhado e pegajoso.
Nesse meio tempo, Trevor e Beneke abrem o contêiner. O zumbi tem a saída barrada quando Nylon é jogado na espaço entre aberto.
O baque da porta metálica ressoa entre eles. Em seguida, gritos e mastigação abafadas começam.
Gormax limpa a faca no calça cinzenta, agora suja com o aspecto volátil da vítima, e a guarda no cinto. Sua mão ensaguentada acaba manchando a camiseta branca.
– Que dia de merda, não é? - sorri. – Não sei vocês, mas isso me deixou com uma fome do caralho. Venham. - recolhe o machado e o deposita sobre o ombro, passando entre Derick e Sabrina. – Vamos encher o cu de bolinho Ana Maria.
* * *
Estando próximos da água, o frio era mais intenso durante as noite. Hoje não era diferente. O correr das ondas predomina no silêncio do loiro, que tem seu foco especial na sombra pequena de um moribundo saindo do mar como um banhista bêbado.
A lua deixa a água cristalizada e a areia cintilante, destaque para o moribundo perdido no grande terreno composto pelos dois navios encalhados.
– Uma vista do cacete, não é não?
Gormax aparece na visão periférica, apoiando as mãos no para-peito da proa.
– Admirável. - concorda Derick, toma um gole da cerveja que segura.
– É, sim. Fiz a escolha certa. - vira-se e apoia o pé direito no corrimão. – Você teve muito coragem hoje.
– Valeu. - admira a paisagem.
– Tô dizendo porque o que fez foi pra poucos. Dentre todos, eu tava duvidando em quem ia levantar a merda da mão. - passa a palma na boca. – E você aguentou o tranco.
– Resolvemos as coisas. - olha para o contêiner C, distante. – É o que importa. - bebe.
– Vou até o Phillip amanhã resolver a merda que tá rolando.
– Acha mesmo que foi ele?
– Por que não? Ele ficou puto quando eu rasguei o bucho do amigo dele. Pra mim, há todas múltiplas razões pra ele revidar. O que é burrice da parte dele, convenhamos. - suspira. – Mas vou dizer, o desgraçado é persistente. E agora eles têm o Axel e a trupe inteira.
– Por isso vai precisar de ajuda. - endireita a coluna, ficando empoderado.
– Não. Você fica.
– Eu vou com você. É o mínimo...
– O mínimo que você tem de fazer é ficar aqui e descansar. Descola uma garota, transa um pouco. Fez por merecer. Descansa, moleque.
Derick desvia olhar, pensativo. Por uns segundos fita a lua até voltar o foco no líder e assentir.
– Como queira.
– Isso aí. Moleque bom. - desencosta do parapeito. – Tenho que ir. Tem uma tacadora do caralho me esperando. - bate em seu ombro. – Se cuida.
– Você também. - diz sobre o ombro.
Ele volta a apoiar os braços e inclinar-se para frente. Dessa vez, o andarilho lá debaixo está caído, arrastando-se na areia pesada. Derick arremessa a garrafa. O recipiente rodopeia no ar até de encontro no chão, se espatifando dois metros a frente do rastejante anônimo. Derick solta uma risada curta.
Os fios loiros sopram no vento gélido e os ouvidos registram o sibilar da noite, junto aos distantes e incessantes rosnados de mortos-vivos.
— 4.03 —
"Olhe para mim"
Capituleixon núcleo para vocês!
Acompanhamos a perspectiva de Derick sobre o grupo e seu líder e um cadinho do seu background. Esse Titanic tem história, meu povo.
E a cereja do bolo foi vê-lo dedurar o fujão. O coitado acabou virando jantar para um caralhada de zumbis que só deixaram um fio de Nylon. É dose.
Caso queiram um melhor entendimento sobre o tão citado Scarlen, leiam O Outro Mundo, de Dom_Peletier.
Até amanhã.
Abraços por trás.
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