3 - Perda de sentidos
Eu senti falta do meu casaco vermelho. Aquela cor dera-me a vida inteira a sensação de protecção. Podia parecer idiota, mas eu queria puder pelo menos tocar no seu couro ou nos pelos macios de seu gorro.
Provavelmente este era o sentimento mais imbecil face a um homem que me queria matar e a um lobo, um tanto ou quanto diferente do comum. Lobo esse que se ergueu nas duas patas traseiras como um humano e rosnou. Não para mim e sim para o meu futuro assassino.
Em seus olhos eu pensei ver uma centelha de familiaridade, até mesmo de amor. Então o lobo lançou-se em cima do homem que me sequestrara, ao que este para se proteger tentou usar a faca. Cortou o lobo algures, mas o animal não se deteve e mordeu o homem. Mordeu bem o rosto dele. O corpo do homem virou rapidamente algo sem vida.
O lobo saiu de cima do homem e virou-se para mim. Eu havia ficado petrificada vendo aquela cena. Não parecia sequer real.
Outra pessoa fugiria, mas no fundo do meu coração, eu sentia que aquela criatura não me faria mal nenhum. E então, eis que na minha frente o lobo se começou a transformar num ser humano. E eu conhecia aquele ser humano.
— Pai?
— Minha filha, tu devias estar com o teu casaco vermelho ou capuz...
— Pai! — Repeti — Eras tu... Eras tu naquela noite na casa da avó Florinda. Tu és um lob...
— Lobisomem. Eu sou um lobisomem — ele declarou.
O corpo do morto ainda estava quente, quando eu e o meu pai, desaparecido há tanto tempo, nos sentamos num tronco deitado da floresta e ele me contou tudo o que se perdera dentro da minha memória.
Assim como ele, eu também era um lobisomem, mas não porque me estava no sangue como eu pensei, e sim porque por acidente ele me mordeu.
Foi naquela noite, naquela noite onde a minha memória foi erradicada, provavelmente pelo choque do que eu própria fizera.
Era noite de lua-cheia e o meu pai saíra para a floresta para poder se transformar à vontade, porém eu aparecera e meu capuz vermelho chamou a sua atenção. Ele veio na minha direcção e mordeu-me, descontrolado por uma vontade e irreconhecimento incontrolável. Fora uma mordida pequena demais, mas eu perdera os sentidos por alguns segundos, não por causa de seus dentes na minha carne, mas sim pelo medo aterrador.
Acordei deitada no chão e fugi a correr. Corri o mais depressa que consegui até a casa da minha avó, pois nesse momento estava mais próxima da casa dela do que da casa dos meus pais. Porém os meus pés começaram a correr novamente quando ao entrar pela porta vi na minha frente o lobo que me atacara na floresta. Então corri novamente porque acreditava que a minha vida dependia disso. Contudo, quando cheguei a casa, dei de caras com a minha mãe traíndo o meu pai. Senti tanta raiva que me transformei em um lobisomem igual ao meu pai. Sem nenhuma preparação ou conhecimento sobre mim mesma e minha própria força, lancei-me no corpo da minha mãe e arranquei o seu pescoço com a própria boca, depois consegui morder o amante dela no torso, mas não o matei. O amante da minha mãe conseguira me afastar dele com uma faca que conseguira arranhar na minha cara. Antes de eu conseguir acabar o serviço apareceu o meu pai em forma de lobo para me salvar de mim mesma e do que eu poderia fazer. Só que eu já tinha causado danos irreversíveis. Voltei a perder os sentidos e quando os recuperei, as minhas memórias não faziam mais parte de mim.
O meu pai ficara longe sentindo-se culpado pelo que me fizera. Apesar de tudo, para me travar, ele me magoara. Atacara a própria filha, mesmo sabendo que o que acontecera comigo era justificável e compreensivo, pois ele passara exatamente pela mesma situação.
Terminando a história, que colou algumas lacunas, eu só tinha uma pergunta a lhe fazer.
— Porque afinal a gente deve usar vermelho? Eu atraí-te porque estava com o meu capuz vermelho. Foi por isso que me mordeste.
— Atraírias da mesma maneira se estivesses vestida da amarelo, de rosa choque ou violeta. Mas o facto de ter sido um capuz vermelho feito pela tua avó, proporcionou à peça de roupa uma magia de sangue.
— Uma magia de sangue?
— Sim, e não falo por ser a cor do sangue, falo por ter sido fabricada por um parente. Essa magia protege-te não só de te transformares em lobo nas noites em que sentes coisas muito negativas e agressivas, como te protege em parte de quem te ataca. A mordida que te infligi foi mínima e depois eu consegui ter noção do que tava a fazer. O teu capuz fez isso, ele devolveu-me os sentidos e a empatia do humano que eu sou.
Eu o olhava curiosa e interessada.
— Daciana, quando estamos na nossa forma de lobisomem, a nossa forma humana deixa de existir, mas uma peça de roupa feita por um parente que nos ama devolve a humanidade, devolve-nos um pouco de controle. Não interessa se é vermelha ou amarela.
— Pai, tu transformaste-me num lobisomem naquela noite? Porque a avó me fez aquele capuz então?
— Minha filha, esse será um mistério que a gente nunca irá desvendar. A tua avó fez o capuz porque tu és minha filha, filha de um lobisomem. A gente não tinha como prever se virias a ser um lobisomem como eu, mas como é melhor prevenir que remediar a tua avó fez aquele capuz, assim como fez todos os capuzes de todos os casacos que tu tiveste na vida. E eu mordi-te. Então não posso dizer que já nasceste lobisomem ou que foi a minha mordida. Eu não sei.
— E ele? — olhei para o caçador morto.
— Ele vai ficar aí até alguém o encontrar ou até tu ires à polícia denunciar‐me.
— Nunca. Nunca te irei denunciar. Ele merece ficar aí mesmo.
Ele estava enganado quando falou que o destino dele era matar-me. Ele estava enganado quando pensou que seria pário para mim. Eu, Daciana Araújo era muito mais que uma lojista, era muito mais que um lobisomem, eu era aquilo que eu dita-se que seria.
— Vens viver comigo, pai?
— Eu vou, mas cuidado com quem namorares, é que os lobisomens da nossa família... tu sabes... a gente não tolera pessoas infiéis traindo quem a gente ama.
— É — respondi — Eu sei, de fato a gente não tolera.
🐺🐺🐺
~Fim~
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