Capítulo 9
- Mandou chamar-me, Professora Lesso?
O tom frio de Natasha cortou o silêncio, espalhando-se pela sala. A mulher sentada na secretaria ergueu-se vagarosamente ao vê-la, apoiando-se na bengala que nunca largava.
- Senta-te. - ordenou Lady Lesso, sem mais delongas.
Natasha ergueu uma sobrancelha, inquisidora. Demorou-se a pousar a mão no assento da cadeira, as unhas compridas raspando na madeira, os lábios encarnados prensados numa expressão vazia.
As íris violeta da professora analisaram-na, perscrutando-lhe o rosto com atenção. Por instantes, o olhar de Lesso perdeu-se na face de Natacha, como se inundada por memórias que a Sinclair desconhecia. A professora endireitou-se, pigarreando antes de dizer:
- Já sonhaste com o teu Nemesis?
Os olhos azuis gélidos de Natacha ergueram-se, surpreendidos. Não era certamente o rumo que esperava que a conversa tomasse. Encarou a professora com descrença, questionando:
- Foi para isso que me chamou?
- Porque mais seria?
A jovem pôs-se de pé. Relâmpagos surgiram nas suas mãos, estalando com energia e veemência por entres os seus dedos. A sala escura de Lesso inundou-se de azul e prata, a energia zunindo pelas paredes.
- Por isto, talvez?
A mulher abanou a cabeça, estalando a língua com desdém.
- Porquê perder tempo com o passado quando podemos falar do futuro, Miss Sinclair?
Natasha prensou os lábios e cerrou os punhos, os relâmpagos desapareceram à sua ordem silenciosa. O coração da jovem batia descompassado contra o peito, a expressão apática mantendo-se a custo no seu rosto.
Como é que Lady Lesso soubera?
Rangeu os dentes, furiosa ao murmurar:
- Rafal.
⚡️
No dia anterior...
Ele aparecera-lhe naquela noite.
Natasha esperava-o. Escovava o cabelo com lentidão, sentindo os cabelos ruivos sedosos nos seus dedos, o ato recordando-a da sua mãe. Quando Alina não estava demasiado debilitada, gostava de pentear a filha e entrançar o seu cabelo ruivo em elaborados penteados, como se quisesse torná-la numa princesa. Em pequena, a Sinclair ansiava por aqueles momentos, embora detestasse parecer uma boneca. Adorava ver o sorriso no rosto da mãe, as bochechas rosadas de saúde e alegria, as mãos a moverem-se energeticamente no seu cabelo.
Naqueles preciosos momentos, Alina estava viva e saudável. No dia seguinte, regressava à cama, à tosse, à palidez e à doença.
A sombra pairou junto à sua janela, o fumo adentrando o vidro sem cerimónias. Materializou-se em rasgos de negro e encarnado, o sorriso distorcido iluminando-lhe a pele jovem, as íris escuras fitando a jovem com veneração. Fez uma breve vénia, cumprimentando-a em silêncio.
Natasha erguera uma sobrancelha, apontando para Heartie, que dormia profundamente. Partilhavam o quarto e não queria acordá-la.
O Diretor assentiu silenciosamente, estendendo-lhe a mão. Os lábios de Natasha retorceram-se num esgar de relutância, detestando ser tocada. Ainda assim, aceitou a sua mão, sentindo o calor dele envolvê-la.
Rafal puxou-a para si bruscamente. As mãos dela espalmaram-se no seu peito, os rostos próximos, o sorriso no rosto dele mais sincero ao ver o rubor preencher as bochechas de Natasha sem que ela pudesse controlar. Quis repreende-lo, afastá-lo, desprender-se do seu abraço.
Quando deu por si, estavam no telhado da Escola do Mal.
- Larga-me. - exigiu Natasha, em voz baixa.
- Tens a certeza? - murmurou Rafal junto ao seu ouvido, fazendo-a estremecer.
Ela não respondeu, afastando-se ao invés. O olhar dele pesou sobre si, intenso e profundo, a Lua fazendo as íris escuras reluzirem.
Contudo, ele é que parecia sem ar. Sobre o luar, a jovem era deslumbrante. Face branca em roupa escura, lábios grossos sem batom pela primeira vez desde que a vira, cabelos ruivos caídos em ondas pelas costas. As íris azuis faiscavam, as pestanas compridas emoldurando-lhe o olhar, o queixo erguido numa atitude confiante.
No peito de Rafal, algo contorceu-se pela primeira vez em muitos séculos.
- O que queres? - questionou a pequena vilã, cruzando os braços - Está tarde e eu estou cansada.
O imortal pigarreou antes de responder:
- O teu plano resultou.
- Imaginei que sim.
- Sophie não tardará a cair em desgraça e aceitar os meus avanços.
- Vou certificar-me que isso acontece.
Algo corroía o coração de Natasha. Segurava uma mecha de cabelo entre os dedos, torcendo-o nervosamente. Sentou-se no telhado virando o rosto para cima. Estrelas brilhavam no escuro da noite. Ela nunca vira tantas estrelas no céu nem aquelas constelações em específico. Rafal sentou-se ao seu lado, dividido em encarar a Nunca e a noite estrelada.
- Qual é a beleza de encarar as estrelas? - questionou o imortal, com indiferença- Estão sempre no mesmo sítio.
- Qual é a beleza de ser imortal? Chega a uma altura em que já fizeste tudo o que havia para fazer.
- Impossível. As possibilidades...
- São finitas. Tal como as estrelas. Qual é, então, a beleza de viver para sempre?
Rafal esboçou um sorriso ladino, admirando o desafio no olhar da Sinclair.
- Touché.
Esperou ver a vitória no seu olhar mas a frieza de Natasha era quase palpável. Estava distante, as defesas à sua volta erguidas, protegendo-se a si... e ao que guardava.
- Não confias em mim. - afirmou o imortal,
- O que queres, Rafal? - questionou Natasha, impaciente - Estou a fazer o que me propus. Somos aliados, não amigos. Então diz-me: porque é que vieste visitar-me a meio da noite?
- Queria ver-te.
Ele aproximou-se do seu rosto, sedutor e intenso. A aura malévola em seu redor atraía-a, o poder borbulhando sobre a sua pele e o manto vermelho que o cobria. Natasha estremeceu.
- Eu tive um sonho esta noite. - disse ela, fitando-o com apatia - Sei o que significa.
Fez uma pausa, mordendo o lábio inferior. Não sabia ao certo como se sentia. Desde que chegara à Escola do Mal que tinha a certeza não se enquadrar naquele mundo... até à noite anterior.
- Viste-o? - ouviu Rafal questionar, chamando a sua atenção.
Abanou a cabeça, fitando o céu. Flashes do pesadelo que a atormentara na noite anterior surgiram na sua mente, atormentando-o.
Havia raiva. Sentira o sangue ferver nas suas veias, ateado por uma fúria primitiva que não sabia de onde viera. Lembrava-se da sensação de medo que a corroía enquanto lutava com alguém, um borrão encarnado surgindo nas suas pálpebras fechadas. O zumbido dos seus relâmpagos ecoavam durante o sonho quando tentava defender-se do seu atacante.
O sonho acabara com uma lâmina a atravessar-lhe o peito e o ar a fugir-lhe dos pulmões à medida que o seu oponente a assassinava.
- Tu és extraordinária.
Natasha encarou o Diretor, esforçando-se para esconder a surpresa. A forma como Rafal a olhava era nova. Havia um brilho de orgulho misturado com ambição e malícia.
- Eu sabia que eras poderosa quando te vi mas nunca pensei que te fosses tornar tão... Má. - fez uma pausa, pousando a mão na sua e acariciando lentamente a sua pele cor de marfim - Só os Nuncas mais poderosos sonham com os seus Nemesis, minha Rosa. Não podes negar que pertences aqui, não mais.
- O que fazes aqui, Rafal? - questionou novamente a Sinclair, sentindo o estômago retorcer-se - Porque eu?
- Porque tu és o meu Amor Verdadeiro. - respondeu o imortal com simplicidade, as íris escurecendo de raiva ao dizer - Quando matei o meu irmão, fui amaldiçoado pelo Historiador e pelas regras mágicas que governam o nosso mundo. O Mal perde há duzentos anos por minha causa... mas isso não é castigo suficiente. Não para uma traição como a que cometi.
Ele fez uma pausa, o rosto aproximando-se perigosamente do dela, a respiração quente contra a sua pele fria. Se se inclinasse, Natasha poderia beija-lo...
Mas ela não queria.
- Sonho contigo desde que me conheço por gente. - murmurou Rafal, acariciando-lhe a bochecha com suavidade - O teu rosto atormenta-me dia e noite porque és o meu Felizes Para Sempre... tudo o que eu poderia querer mas que nunca terei. - pegou na mão dela, levando-a ao seu peito, onde o coração do imortal deveria bater - Quando matei o meu irmão, acabei com a chance que tinha de amar. Fui castigado porque... o meu coração não bate. Sou vazio, incapaz de amar. E o pior... é que tu não és capaz de me amar. O meu par perfeito, tão frio e vazio como eu. Tudo o que eu sempre quis... e que nunca poderei ter.
Afagou-lhe a pele num gesto de adoração. Desta vez, Natasha permaneceu imóvel.
⚡️
- Ele não tinha nada que...
- O que exatamente ele te prometeu, Natasha? - questionou Lesso, pondo-se de pé - Amor? Vida eterna? Poder?
Natasha não respondeu, fitando a mulher à sua frente com frieza. A mais velha abanou a cabeça exasperada ao exclamar:
- Diz-me!
- Eu não tenho que lhe dizer nada.
Lady Lesso rangeu os dentes, irritada. Os seus olhos violeta brilhavam de ciúme e agonia, a raiva borbulhando dentro de si. Sentia-se dividida, num conflito interno entre o seu passado e o presente, o rosto da jovem à sua frente trazendo-lhe dúvidas. Ela não queria duvidar das inteções de Rafal ou dos seus planos para as duas raparigas que manipulava.
Ao encarar Natasha, a Diretora do Mal questionou-se quem estaria a manipular quem.
- Vamos falar sobre os meus poderes, professora? - questionou Natasha, espalmando as mãos na secretária de Lesso - Da minha mãe? Do que a professora sabe que não me quer dizer?
Lesso não respondeu. As bochechas rosadas de raiva e ciúme eram tudo o que lhe podia dar.
Muitos anos antes, fizera uma promessa.
Iria cumpri-la, custasse o que custasse.
Natasha estalou a língua, fitando a professora com desprezo.
- Volte a chamar-me ao seu escritório quando tiver respostas para me dar.
⚡️
Ela estava a caminho da aula de Malícia quando sentiu o seu pulso ser puxado bruscamente. Tentou desenvencilhar-se daquele aperto até vislumbrar os caracóis escuros do cabelo de Agatha, que a arrastava até à biblioteca com pressa. Quando alcançaram os corredores mais escondidos, a princesa puxou a bruxa para um abraço apertado, soltando-a ao dizer:
- Nat, estou há dias à tua procura!
Estava perturbada, conseguia perceber isso pela forma como gesticulava, as palavras atropelando-se enquanto falava. Contou-lhe sobre as negativas e o que acontecia a quem chumbava três vezes, o horror estampado na sua expressão. De olhos marejados, falou-lhe no seu Dom, na capacidade de conceder desejos e em como tentara salvar o seu amigo depois deste ser transformado numa Stinx por chumbar.
Agatha falou e falou e falou enquanto a Sinclair simplesmente ouvia. Naquele instante, Natasha percebeu finalmente porque Agatha fora parar ao Bem.
- Nós temos de fugir daqui. - afirmou Agatha, resoluta - Todas nós. Eu não vou deixar-te aqui.
- Eu não vou a lado nenhum, Agatha. - respondeu Natasha, com firmeza - Prefiro arriscar ser transformada numa chávena a voltar para aquele pesadelo de aldeia.
- O que podes ganhar aqui que não tens lá?
- Uma vida, Agatha! - exclamou Natasha, com mais veemência do que esperara - Poder, para variar. Controlo sobre a minha vida pela primeira vez! - deu um passo em frente, a voz cortante ao dizer - Se alguma vez voltar a Gavaldon é para acabar com a vida de todos os que me infernizaram. Se - ou quando - eu voltar a Gavaldon será para ser a vilã daquela gentinha. - esboçou um sorriso cruel, observando a sua contemporânea recuar - É isso que queres para Gavaldon? Para a tua terra?
- Vingança. É isso que tu queres. - Agatha abana a cabeça, incrédula - E quão longe estás disposta a ir para a ter? Para seres poderosa?
Natasha encolheu os ombros, com um falso ar de inocência.
- Farei o que for necessário.
- Arriscas a tua vida por isso?
- Não preciso de arriscar a minha vida porque eu jogo para ganhar, Agatha. Eu não vou perder.
A Sinclair abriu as mãos. O reflexo dos relâmpagos que surgiram nos seus dedos refletiram-se nas suas íris azuis, tornando-as mais eletrizantes. Os lábios encarnados retorceram-se num sorriso ao ver Agatha abrir a boca, horrorizada.
- Isto é o que quero, Agatha. O que eu sempre quis... e farei o que for preciso para continuar a ter.
A expressão de Agatha alterou-se, os olhos enchendo-se de pesar.
- Tu és muito mais do que isto. - disse a Sempre, pousando a mão no ombro da ruiva - Eu também sou ridicularizado em Gavaldon, Nat. Nenhuma de nós tem uma vida fácil... mas podemos ser mais do que as circunstâncias nos forçaram ser.
- É o que pretendo. - respondeu a Sinclair, dando um passo atrás - A única diferença entre nós é que eu não sou Boa como tu.
- Não existe isso de Bem ou Mal, tu sabes disso! - exclamou Agatha, exasperada - Eu sei que achas isto tudo tão ridículo como eu. Por favor, Nat... Volta para Gavaldon comigo. Eu... - a voz de Agatha falhou-lhe, segurando a mão da amiga com veemência - Eu não posso perder-te.
Natasha ergueu os olhos, fitando as íris escuras de Agatha com atenção. Observou-a engolir em seco, um misto de emoções a bailar nas suas feições embelezadas pelas fadas do Bem, a forma como mordia o lábio inferior como se... estava nervosa. Porquê?
A não ser...
A Sinclair prensou os seus próprios lábios e retraiu a mão com brusquidão, incapaz de lhe responder. Viu dor preencher o olhar de Agatha e o seu coração gélido retraiu-se de compaixão. Ainda assim, Natasha não possuía a gentileza ou a empatia necessária para agir da maneira certa. Baixou o rosto, escondendo o olhar frio, forçando-se a adotar um tom menos duro ao dizer:
- Não tenho nada em Gavaldon que me faça voltar, Agatha. Poupa os teus esforços.
Ela não queria magoá-la. Por muito que quisesse distância de Agatha, ela sabia que a menina dos cabelos encaracolados era a única pessoa que se importara com ela, à exceção de Alina. O pouco que conhecia de bondade e empatia fora Agatha que lhe mostrara ao longo dos anos, com o seu humor ácido e o seu ar carrancudo a esconder o coração gentil.
Agora, no seu olhar, Natasha conseguia perceber porque razão Agatha nunca se afastara. Não entendia como nem se haveria alguma forma de o reverter mas... era inevitável e tudo o que podia fazer era tentar não quebrar o coração da menina com quem, de certa forma, crescera.
- És muito mais do que uma vilã, Nat. - murmurou Agatha, recuando um passo - Não pertences aqui. Ninguém pertence aqui.
- Isso é o que ainda estou a tentar descobrir. - Natasha abanou a cabeça, a expressão suavizando ligeiramente ao dizer - Eu vou ficar, Agatha. Lamento muito.
E virou-lhe as costas, recusando-se a ver o olhar sofrido da sua - quase - amiga.
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