Capítulo 6
A torre do Reitor recebeu-a com um silêncio profundo. Um pequeno ruído ouvia-se ao longe, o som arrastado de ponta contra papel.
Os olhos de Natasha Sinclair voaram de imediato para a pena em movimento. Desenhava as palavras com precisão e delicadeza, pairando por breves instantes quando a jovem se aproximou. A voz invadiu a sua mente sem permissão, narrando a sua história enquanto escrevia a história de outrém.
"Bem-vinda ao teu mundo, Natasha Sinclair."
Nas páginas do grande livro aberto onde escrevia, a figura de Agatha e Sophie encaravam-na, tão diferentes como o Dia e a Noite.
- Ignora-a. - ouviu dizer, girando sobre os seus calcanhares para encarar quem falava - É o que eu faço.
- É esta a Pena que me falaste? - questionou a ruiva, fitando Rafal com apatia - Esperava mais.
Um sorriso contido desenhou-se nos lábios de Rafal. O imortal caminhava com elegância, o corpo coberto com o manto azul do irmão, os óculos redondos ainda no rosto. Natasha mordeu a língua para conter-se, engolindo as palavras depreciativas que queria dizer. Detestava vê-lo na pele do Irmão Bom. Detestava ver a idade apossar-lhe as feições jovens e belas, o tom de voz tornar-se condescendente, o brilho malicioso no olhar dissipar-se.
- Sabes o que está a fazer? - perguntou, apontando com o queixo para a Pena.
Natasha humedeceu os lábios, desviando o rosto do dele para encarar as páginas amareladas do conto de fadas.
- Está a escrever um novo conto de fadas. - estalou a língua, desdenhosa - Claro que tinha de ser sobre a Sophie.
Algo faiscou no olhar de Rafal à menção daquele nome. O coração escurecido de Natasha falhou uma batida, a expressão congelada para não expressar o seu horror, os punhos cerrados junto ao corpo.
- Estás a caçá-la.
Era mais uma afirmação do que uma pergunta. Para sua surpresa, o imortal fez questão de parecer envergonhado, pigarreando e remexendo-se como se um adolescente se tratasse.
- Preciso dela para que o meu plano resulte. Nada mais.
- Não me deves explicações.
- Sei que a desprezas.
- Qualquer um com dois dedos de testa a despreza.
- Preciso da tua ajuda para manipula-la.
- Não.
- Temos um acordo...
- Cancelo-o de imediato se envolver ter de aturar a Sophie mais do que dois minutos.
- Não envolve. Apenas preciso que tires a Agatha do caminho. - Rafal aproximou-se da ruiva, cauteloso - Sophie é a chave para que o meu plano resulte, quer eu queira quer não...
- Que plano é esse?
- Abrir os portões para Nunca Mais. Destruir este mundo e reconstruir um novo sem o Bem para empatar o poder do Mal. - fez uma pausa, erguendo a mão num gesto teatral - Conquistei-te na parte de "destruir o mundo", minha Rosa?
- Eu não perguntei quais são as tuas fantasias. - respondeu Natasha, examinando as unhas com indiferença- Perguntei qual era o teu plano. Como é que pretendes fazer isso?
Os dois encararam-se. As íris de Rafal escureceram, as mandíbulas cerradas, os ombros tensos. Não gostava de ser desafiado, muito menos gostava de se sentir exposto daquela forma. Natasha seria sua aliada... não um peão no seu jogo. Isso deixava-o numa posição vulnerável. Tinha de partilhar ao invés de manipular, algo que o Irmão do Mal não estava habituado a fazer.
A expressão de Natasha Sinclair era irredutível.
- O Beijo do Amor Verdadeiro. - forçou-se a dizer, entredentes - Entre duas almas negras e Malvadas. Sophie tem a beleza de uma princesa e o coração negro de uma vilã. A profecia fala de um beijo entre tal alma e eu, uma alma tão podre quanto a minha, alguém que possa amar-me apenas por interesse e sede de poder. O Beijo de Nunca Mais. O Beijo do Amor Verdadeiro... do Mal. Sophie é essa alma, profetizada há tantos séculos. Face de anjo, coração de demónio. Ambiciosa, malvada, quebrada...
Fez uma pausa, encarando-a com uma intensidade atroz. Ela, por sua vez, não reagiu. Era mestre em esconder as suas emoções, enterrando-as em camadas e camadas de indiferença.
Rafal estava a falar dela.
- Não podes ser tu. - disse o imortal, de imediato.
- Já te disse que não me deves explicações.
- Se fosses tu, não seria um Beijo entre Nuncas. Não seria um beijo por maldade, ambição, manipulação.
- Não quero ouvir.
- Seria real.
Ele deu um passo em frente, observando-a dar um passo atrás. Rafal encarava-a com um ar felino, estudando-a como um predador, observando as reações que ela não demonstraria.
- O que eu preciso de fazer? - questionou, desconversando, virando-lhe as costas para passear a ponta dos dedos no conto de fadas de Agatha e Sophie.
O imortal atrás de si rosnou, expressando a sua raiva. Ainda assim, quando falou, a sua voz soou vazia, fria como a noite mais longa de inverno, o tom de um vilão.
- Afasta Agatha de Sophie. Ajuda-me a deixar Sophie sozinha, rejeitada, perdida o suficiente para aceitar unir-se a mim. Quando isso acontecer, irei dar-lhe algo que a corromperá e a deixará mais Má que nunca.
Natasha virou-se, fitando a mão estendida de Rafal. Nela, algo brilhava, uma massa escurecida e vermelha movia-se na ponta do seu dedo indicador. A ruiva esboçou um sorriso, sentindo o poder emanar dele.
- Magia de Sangue. - respondeu Rafal à sua pergunta silenciosa - Irá unir-me a Sophie e poderei corrompê-la. Quando o momento chegar, irei seduzi-la a juntar-se a mim e ela irá beijar-me de livre e espontânea vontade, libertando NuncaMais. Sophie tem um coração negro e ambicioso, por mais que o negue. Será fácil fazê-la acreditar que será minha Rainha no novo mundo.
- E será?
A pergunta de Natasha pairou no ar, venenosa. O rosto de Rafal transfigurou-se, a ambição dissipando-se, a maldade abandonando-lhe as feições. Quando a encarou, parecia... humano.
- Só existe uma Rainha no meu coração de pedra, Natasha.
Encararam-se, olhares afiados como adagas.
- Não quero o trono do Mal. - disse Natasha, os lábios encarnados repuxados num sorriso malicioso - Fica com ele. Entrega-o à tua querida princesa.
Virou-lhe as costas, desaparecendo rumo à porta da torre, ignorando o seu chamado e o arranhar do Historiador que nunca contaria a sua história.
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Lady Lesso preambulava pela sala com austeridade, os olhos púrpura analisando os Nuncas à sua frente como quem analisa o melhor cavalo para ganhar corridas. Estes, por sua vez, encaravam-na com expectativa, ansiosos para provarem o seu valor e ganharem o respeito da Diretora.
Sentada no canto mais afastado da sala, Natasha encarava a janela por trás de si, o queixo apoiado nas costas da cadeira. Ouvia a voz de Lesso preencher o silêncio acompanhada pelas suas passadas elegantes e sedutoras. A mente da Sinclair, no entanto, estava longe, perdida entre campas e planos malévolos.
- Sinclair.
O seu nome foi pronunciado com frieza, atraindo a sua atenção. Virou-se vagarosamente, cruzando os braços e enfrentando o olhar da mulher com indiferença.
- Sim?
- A minha conversa aborrece-te? - questionou Lesso, esboçando um sorriso breve.
- Tudo nesta escola me aborrece. - respondeu Natasha, a voz baixa e fria.
Lesso humedeceu os lábios, as íris púrpura faiscando.
- Vamos tornar isto mais interessante, o que te parece?
- Mal posso esperar. - retorquiu a mais nova com ironia.
- Consegues dizer-me o que é um Nemesis?
Desta vez, as íris de Natasha faiscaram, aguçados. Por muita indiferença que sentisse, não podia negar que gostava do desafio de se tornar algo mais do que humana, mergulhando nas mentes perversas dos vilões. Visitara a biblioteca horas antes, intrigada pelo conhecimento que ali poderia encontrar. Para sua surpresa, um livro aberto jazia poeirento no tampo de uma das mesas, como se de um presente se tratasse.
A página aberta... Nemesis.
O presente... Rafal.
- O nosso inimigo de sangue. - as palavras saíram-lhe com facilidade, o sorriso gélido abrindo-se ao sentir prazer vendo a expressão surpreendida da professora - Aquele que temos de destruir... ou sermos destruídos por ele.
Lady Lesso estalou a língua, disfarçando a surpresa com desdém.
- Estamos mais interessadas do que aquilo que damos a entender, Miss Sinclair?
Natasha encolheu os ombros com falsa ingenuidade. Teria de agradecer ao seu anjo da guarda mais tarde.
- Para destruirmos os nossos Nemesis, temos de ser fortes, inteligentes, astutos. Se formos especiais... - fez uma pausa, deixando a palavra pairar no ar por breves instantes, entranhando-se na mente ambiciosa dos Nuncas - Melhor ainda.
Lady Lesso percorreu a sala, questionando os Nuncas sobre o Dom Especial de cada um. O seu talento. Hort, o rapaz franzino com quem Natasha esbarrara no primeiro dia, era um lobisomem e passara os restantes minutos a mostrar como era capaz de crescer um único pêlo no peito. Dot, a amiga de Heartie, transformava qualquer objeto em chocolate. Um por um, os Nuncas mostraram os seus poderes, desgostando Lesso pela sua nulidade.
O ambiente mudou radicalmente de tranquilo para hostil em questão de minutos. Natasha não sabia precisar exatamente como acontecera mas quando dera por isso o caos instalara-se. De um lado, Hester erguera-se do seu assento, os olhos verdes faiscando de raiva ao encararem Sophie. A loira, por sua vez, fitava-a com superioridade, num desafio claro.
Quando Hester mostrou o seu Dom, um demónio que se erguia da sua pele e deitava fogo pela boca, a superioridade de Sophie desvanecera.
Hester detestara Sophie desde o primeiro dia, numa atitude semelhante à de Natasha. Também não simpatizava com a Sinclair, contudo, havia um respeito entre as duas Nuncas. Se uma não atravessasse o caminho da outra, estava tudo bem.
Encostando o queixo na palma da mão, o cotovelo apoiado na mesa, Natasha ficou a ver o espetáculo, divertindo-se com o pânico de Sophie. Por breves instantes, ficará à espera que Lady Lesso impedisse o confronto entre as duas alunas.
Claro que a Diretora do Mal sequer se moveu. Na verdade, quando o demónio investiu contra Sophie, Lady Lesso soltou gargalhadas.
- Sophie, cuidado! - gritou Hort, o único que parecia remotamente preocupado com a loira.
Num ímpeto, Sophie ergueu um livro grosso e brandiu-o na direção do demónio, atingindo-o com violência. Hester recuou para trás como se tivesse sido atingida, mostrando a ligação entre ela e o seu demónio.
- Fascinante. - murmurou Natasha, com um sorriso frio nos lábios.
- Cuidado, Leitora. - disse Lady Lesso, debochada - Ela vai matar-te. Usa o teu talento.
- Eu não sei qual é! - guinchou a loira, gatinhando desesperada pela sala.
- Os teus amigos esquilos, Sophie! - gritou Hort, tentando ajudá-la - Chama os teus amigos!
- Esquilos? - Natasha revirou os olhos, soltando uma gargalhada debochada - Continuas com essa ideia que os animais são teus amigos?
- As princesas são capazes de falar com os animais! - ripostou Sophie, soltando um grito ao desviar-se por um triz de mais um ataque do demónio - Ajudem-me!
- Tu não és uma princesa, Sophie.
Sophie de Gavaldon lançou um olhar furioso à ruiva antes de correr na direção da janela para gritar por socorro, sem obter qualquer resposta.
- Acho que os esquilos também não gostam de ti. - provocou Natasha, com um sorriso ácido no rosto.
Hester soltou uma risada, os braços erguidos e o demónio esvoaçando sobre a sua cabeça.
- Coitadinha da princesa. - grasnou a bruxa, desdenhosa - Deixa-me acabar com o teu sofrimento.
- Ela vai matá-la! - guinchou Anadir, a fiel amiga de Hester, soltando uma gargalhada maléfica.
Com um grasnar, o demónio investiu, voando a pico na direção de Sophie.
Natasha sorriu, satisfeita.
A janela explodiu.
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