Capítulo 5
O ODOR a enxofre prevalecia nos corredores da Escola do Mal. Era repulsivo e fazia o estômago de Natasha embrulhar-se, agoniado.
- Porque é que a nossa escola tem de ser tão nojenta? - questionou Heartie ao seu lado, agitando a espetada de marshmallows que tinha na mão- A Escola do Bem parece ser tão mais bonita...
- Quanto mais repulsivos formos, mais assustadores e terríveis seremos. - explicou Dot, a jovem de olhos gentis e boca suja de chocolate que caminhava junto delas - É essa a doutrina do Mal.
- Não tenho que ser nojenta para ser Má. - ripostou Natasha, de mau humor - Isto é só ridículo e clichê.
- Não estão ansiosas para a aula de Fealdade?
Natasha estacou, fazendo uma careta. Um comentário sarcástico ficou preso na garganta à medida que caminhava, recusando-se a alimentar aquela sensação de repulsa. Apesar dos seus métodos pouco ortodoxos, aquela escola iria permitir alcançar os seus objetivos mais obscuros, o ódio que pulsava dentro de si desejoso de ser libertado.
As três Nuncas sentaram-se nos respetivos lugares ao chegarem à sala de aula. As duas mais amigáveis trocaram palavras com os colegas de turma enquanto Natasha fitava o vazio, em silêncio e com uma cara de poucos amigos. Sentindo-se observada, girou o rosto, encarando Hester, a filha da Bruxa de Hansel e Gretel. Fora Heartie que lhe contara quem era quem naquela turma de filhos de vilões, embora a Sinclair tivesse deixado claro que não estava interessada.
- Outra maltrapilha de Gavaldon? - perguntou Hester, com um sorriso traiçoeiro - Mais uma princesinha como a outra?
- Ela não tem nada a ver comigo. - resmungou alguém na mesa atrás da ruiva, fazendo-a virar-se para trás.
- Tens razão. Só há lugar para uma idiota nesta Escola, Sophie. - ripostou a Sinclair, estalando a língua com desdém- E já o ocupaste.
A loira rangeu os dentes, os olhos verdes faiscando de irritação ao encarar a sua contemporânea.
- Sua...
- Porque é que temos de ser feios? - questionou uma voz enrouquecida, silenciando a turma e anunciando a chegada do professor de
Natasha encostou o queixo na palma da mão, fechando os olhos. As dúvidas começavam a instalar-se na sua mente. O que ela estava ali a fazer? Ela não tinha nada a ver com aquele mundo. Bem e Mal, Belo e Feio, princesas e vilões...
Cerrou as mandíbulas, sentindo algo queimar dentro de si. A sensação quente espalhou-se pelo seu corpo, as veias fervilhando, o coração palpitando nos seus ouvidos. Aquela sensação intensificara-se ao chegar à Escola do Bem e do Mal, como algo prestes a acordar.
Tinha de ficar se queria alcançar o seu verdadeiro potencial. Acima de tudo, tinha de ficar se queria vingar-se da vida pouco digna que tivera até ali.
Endireitou os ombros, decidida a prestar atenção, por muito aborrecida que estivesse. Heartie explicara-lhe: três falhas nas aulas e chumbava. Ali, onde os contos de fadas eram criados, chumbar significa ser transformada numa chávena...
Ou pior.
- Para as crianças chorarem! - respondeu Hort, o rapaz franzino e de cabelo oleoso com quem Natasha esbarrara assim que chegara à Escola.
- Errado. - ripostou o professor Manley, preambulando pela sala - Isso é só um bónus.
Num movimento brusco, o homem atirou uma gosma esverdeada para a taça defronte de Sophie, provocando-lhe um gemido de repulsa. Um sorriso fugaz trespassou o rosto de Natasha, divertida. Tudo o que atormentasse Sophie era uma fonte de prazer para ela.
- Porque temos de ser repugnantes e nojentos?
- Isso pergunto eu. - sibilou Sophie, enojada.
- O facto de não nos importarmos com a aparência força-nos a usar a inteligência. - respondeu Manley, afastando-se da mesa da loira. A fealdade é liberdade!
- Oh céus. - murmura Natasha, baixinho - Que circo é este?
Algo sibila na sua mente. A voz projeta-se com meiguice, as palavras ditas com uma ternura ácida, a familiaridade assustando-a. É suave, como o toque de uma pena no seu braço, sedutora como o sibilar de uma serpente.
"Lembra-te do prémio, minha Rosa."
Um grunhido escapa-se dos seus lábios.
"Espero que o prémio valha a pena este martírio, Rafal."
- Leitora.
O apelido designado para os moradores de Gavaldon forçou-a a abrir os olhos, que sequer reparara ter fechado. As íris cortantes de Natasha são o suficiente para o professor Manley desviar os olhos, recusando-se a enfrentar a ruiva intimidante. Em vez disso, encara Sophie, cujos olhos esmeralda esbugalham-se. Com um olhar rápido, Natasha apercebeu-se porque razão a loira esboça um ar de pânico.
A gosma verde na sua taça tem girinos... e Sophie de Gavaldon tem de a beber.
Feia e poderosa.
- És a primeira.
- Não. - respondeu Sophie, abanando a cabeça com firmeza - Eu não quero ser feia.
- Oh eu vou desfrutar disto. - murmurou Natasha, alto o suficiente para a loira ouvir.
- Eu não sou assim. - continuou Sophie, ignorando por completo a provocação da outra.
Um sorriso malicioso e desdentado surgiu no rosto do professor Manley.
- Ainda não. Hort!
O filho do Capitão Gancho levantou-se, aproximando-se apressadamente de Sophie, as mãos segurando-lhe a nuca. Esta abanou a cabeça freneticamente, recebendo um pedido de desculpas atabalhoado do rapaz. Desesperada, a loira fitou a sua arqui-inimiga, recebendo um piscar de olhos provocador da Sinclair.
- Deixa lá, queridinha. Sempre foste feia para mim.
Sophie soltou um berro, mergulhando de cabeça.
⚡️
Natasha Sinclair sempre gostara mais da noite do que do dia. Na sua segunda noite na Escola do Bem e do Mal, fora incapaz de conter a vontade de escapulir-se do dormitório e deitar-se na relva macia dos campos a fitar as estrelas. O céu estrelado recordava-a ser Alina e, por muito que tentasse combater a nostalgia, sentia aquela dor horrenda de quem perdera uma parte de si. Por mais fria que fosse, parecia não conseguir escapar do luto.... Então iria permitir-se senti-lo, mesmo que fosse no silêncio da noite e sem nunca abrir a boca para o partilhar com quem quer que fosse.
As palavras de Agatha martelavam-lhe a mente. Apesar de excessivamente boa pessoa, a filha da bruxa de Gavaldon era sensata e Natasha apreciava isso nela. Respeitava-a o suficiente para saber que Agatha não lhe mentira ao dizer que aquele mundo era perigoso. A menina dos cabelos encaracolados mostrara-se desesperada para fugir daquele mundo, querendo forçar Sophie a segui-la.
Tentara também convencer Natasha, querendo protegê-la. Um mero olhar frio da Sinclair fora o suficiente para se calar, sabendo que a ruiva nunca a escutaria.
Sozinha, soltou uma risada desdenhosa perante a atitude tão típica de Sophie. Claro que a princesinha iria tornar as coisas difíceis para a sua melhor amiga. De acordo com o Reitor, o beijo de amor verdadeiro era o suficiente para abrir o portal de volta a Gavaldon... ou colocar Sophie na Escola do Bem, convencendo a Pena Mágica (palavras de Agatha, as quais Natasha não duvidou por um minuto serem reais) de que a loira era afinal Boa e não Má, como estava escrito no Conto de Fadas das duas.
Como seria esperar de Sophie, ela não queria um amor verdadeiro qualquer. Ela queria o amor verdadeiro.
O amor de Tedros de Camelot, o príncipe mais cobiçado da Escola.
Natasha não queria saber daquela história para nada. Ela sequer estava convencida de um dia vir a fazer parte de um conto de fadas em que ela seria a vilã. Era tudo demasiado rebuscado e fútil para ela. O seu objetivo era outro, muito distante de princesas e bruxas.
Tampouco estava interessada no conto de fadas de Agatha e Sophie. Ou no seu desfecho.
A única razão porque a história de Agatha a fizera pensar... era a posição do Reitor.
Que jogo estava Rafal a jogar com as suas contemporâneas de Gavaldon?
O som de um ramo a partir-se fê-la levantar-se, os punhos cerrados e erguidos numa posição de defesa. A pessoa que se aproximara dela ergueu as suas próprias mãos num sinal de rendição, assobiando baixinho antes de dizer:
- Desculpa, não queria assustar-te.
Um grunhido escapou-se dos lábios de Natasha ao perceber quem era. Os contornos definidos do rosto, as mechas castanhas, os olhos azuis e o corpo delineado e forte. Alto, com um sorriso ladino e o ar de quem nada tinha a temer.
- Acho que não é suposto estares aqui. - comentou Tedros, enfiando as mãos nos bolsos.
Natasha não respondeu. Voltou a deitar-se, o rosto virado para o céu, os olhos vagueando pelas estrelas enquanto ignorava por completo a presença do príncipe. Este esboçou um sorriso pequeno, sentando-se pesadamente ao lado da Nunca, fitando-a com uma curiosidade mal disfarçada.
- Natasha Sinclair, não é? - questionou, reclinando-se na sua direção afim de lhe ler o rosto - Tedros de Camelot. Filho do Rei Artur.
A ruiva revirou os olhos, prensando mais os lábios. Se falasse, iria dar abertura para aquela criatura responder. Fora ali para estar sozinha e apreciar o silêncio que sentia tanto a falta. Em Gavaldon, o silêncio era o seu companheiro, cortado apenas pelo som da respiração entrecortada da sua mãe. Na Escola do Mal, estava sempre acompanhada, a presença de Heartie tornando-se uma constante para mal dos seus pecados. A filha da Rainha de Copas estava sempre por perto, mesmo que Natasha a tratasse com todo o desprezo do mundo.
Era uma praga das difíceis de arrancar. Tedros, aparentemente, era outro tipo de praga, os olhos azuis fitando-a com expectativa.
- És muito faladora. - comentou o príncipe, sarcástico - Pouco importa, também só vim aqui espairecer.
Deitou-se ao seu lado com displicência. Natasha sentiu a bílis subir-lhe à boca, o odor masculino impregnando-se no seu nariz, a respiração do rapaz ao seu lado demasiado pesada e presente.
- É a primeira vez que fico parado a olhar para as estrelas.
O comentário escapou-se baixinho dos lábios do príncipe, como se o desabafo fosse um sinal de fraqueza... algo impróprio para o filho de um rei. O filho do Rei.
Tedros fechou os olhos, respirando fundo. A presença da adolescente ao seu lado é como a brisa gélida de inverno, acutilante e vazia. Para alguém habituado a viver no centro do mundo, a indiferença e apatia é, de alguma forma, reconfortante.
- Um Rei não tem tempo para ver as estrelas. Um Bom Rei vive para o seu povo, para equilibrar a balança entre o Bem e o Mal, para ser o herói dos inocentes e o líder dos corajosos. - as palavras são recitadas de memória, recordando-se de um tempo distante - Era o que o meu pai costumava dizer antes de...
Calou-se, refreando as emoções. A loucura de estar a falar com uma Nunca - ou, pelo menos, ao lado de uma - não o atingiu. É a sua própria fraqueza que o faz ranger os dentes, amaldiçoando-se a si mesmo por perder tempo a sentir-se tão desamparado.
Tedros de Camelot era muita coisa. Futuro Rei do Bem, herdeiro do trono de Camelot, filho do Rei Arthur, portador da espada Excalibur. Cavaleiro nato, exímio espadachim, um galã cujos suspiros de muitas raparigas compunham a sua banda sonora diária.
E, no entanto, no final do dia... Tedros era apenas...
Um órfão.
- Quem disse que eu estava interessada em ouvir as tuas histórias tristes... -começou Natasha, sentando-se bruscamente - Enganou-te.
A Nunca dos cabelos ruivos levantou-se, os olhos azuis cortantes fixos no rosto bonito do príncipe. Em reflexo, Tedros encolheu-se, sentindo o gelo nas palavras da outra como adagas no seu peito:
- Ninguém quer saber da tua história triste, Tedros de Camelot.
Virou as costas, desaparecendo noite dentro, deixando-o sozinho perdido nos seus pensamentos.
O que Tedros não percebeu era que Natasha Sinclair não estava a fugir da sua história triste. Da sua solidão e do seu luto.
Ela estava a fugir do seu próprio luto.
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