Capítulo 10
O Salão Principal estava cheio. De um lado, os Nuncas tagarelavam ruidosamente, empurrando-se e arreganhando os dentes para os outros colegas. No lado oposto, os Sempre comportavam-se com delicadeza, conversando baixinho e sorrindo polidamente.
A jovem dos cabelos avermelhados parecia uma estátua. Destacava-se de todos os outros porque não se comportava como ninguém. Permanecia imóvel, os olhos elétricos fixos no vazio, a mente longe dali.
- Nervosa? - perguntou Heartie, retirando o chupa-chupa de morango da boca - Ouvi dizer que dói bastante o que é um problema para mim... não sou muito tolerante à dor. - fez uma pausa, os olhos esbugalhados ao dizer - Na verdade, acho que vou desmaiar. Não está demasiado calor aqui? Eu estou cheia de calor...
Natasha encarou a menina ao seu lado, franzindo o sobrolho. Procurou as palavras certas para dizer numa tentativa de confortá-la mas não era muito boa nisso. Ao invés, prensou os lábios e resmungou:
- Recompõe-te. Não queres que a tua mãe saiba que ficaste com medo de picar o dedo, pois não?
A temível menção à Rainha de Copas fez o corpo de Heartie estremecer, a expressão horrorizada enquanto abanava lentamente a cabeça. Natasha esboçou um pequeno sorriso ladino, satisfeita ao ver a colega endireitar-se e respirar fundo, controlando o nervosismo. Por vezes era necessário utilizar meios menos ortodoxos para ter o efeito desejado. No caso dos Nuncas, o pavor de ser uma desilusão para os seus pais era a forma mais eficaz...
Algo que Natasha não partilhava. O que só a tornava ainda mais diferente... e desajustada.
Não estava ansiosa por ter a sua magia desbloqueada. Fazer feitiços ou transformar-se num animal não a fascinava. Tinha a destreza da espada e o poder imensurável na palma das mãos ao conjurar tempestades. Treinava com veemência para dominar os relâmpagos enquanto vasculhava os livros de contos de fadas para descobrir que vilão era o seu pai.
Tinha a certeza que era um vilão e que frequentara a Escola do Mal. Desde o primeiro dia que desconfiara que Alina Sinclair andara naquela escola. Onde mais conhecera Lady Lesso, cujos olhos violeta perscrutavam o seu rosto com familiaridade e conhecimento? E, se Alina fora uma aluna ali, então o seu pai também teria sido. Era lógico e se chegasse a essa informação primeiro...
Não teria de ficar à mercê de Rafal na sua missão de conquistar o coração podre de Sophie.
- Porque é que as Diretoras estão a demorar tanto a aparecer? - questionou Heartie, abrindo outro chupa-chupa, o anterior terminado depressa demais devido à ansiedade - Elas já cá deveriam estar.
- Vou ver onde estão. - disse Natasha, pondo-se de pé.
- Mas os lobos...
A Sinclair ignorou-a, movendo-se silenciosamente por entre os Nuncas agitados. Ela não queria realmente saber onde estava Lady Lesso ou a Diretora do Bem (cujo nome nunca memorizava), estava a apenas a usá-la como desculpa para escapulir-se. Ela não queria estar ali. Tinha mais que fazer do que participar numa cerimónia que nada lhe dizia.
Aproximou-se dos portões do salão, tendo o cuidado de desviar-se dos olhos incisivos dos lobos que monitorizavam severamente cada movimento dos Nuncas. Quando um deles ameaçou virar-se na sua direção, soltou um pequeno relâmpago cuja energia o atingiu do lado oposto. Irritado, o lobo encarou o companheiro, julgando que fora ele a picar-lhe o braço de alguma forma.
Sem demoras, socou o focinho do colega, cuja retaliação não demorou.
Com um sorriso sarcástico no rosto, Natasha aproveitou a confusão que criara para escapulir-se. Fez menção de seguir na direção da biblioteca, desanimada. Já leram todos os livros que havia para ler sobre os vilões, pesquisara o nome da mãe por todo o lado e deparara-se com um sem número de becos sem saída. Pensara abordar Rafal sobre o assunto mas sabia que ele aproveitar-se-ia disso para manipula-la de alguma forma. Se fosse ela, também o faria.
Vozes baixas e sussurradas vindas da biblioteca eram comuns, não fosse a escola em peso estar agrupada no Grande Salão para cerimónia. Indiferente, Natasha continuou o seu caminho, ignorando os sussurros e focando-se na sua nova tentativa de pesquisa.
Talvez a mãe tivesse sido da Escola do Bem? Fazia sentido, sempre fora a melhor das duas. Talvez houvessem anuários da escola do Bem mas estariam apenas na biblioteca dos Sempres? Ou encontraria algum na dos Nuncas?
- Não podes desbloquear a magia dela.
Um arrepio percorreu o corpo de Natasha, fazendo-a estacar. Aquela voz não era estranha. E a frase...
Por alguma razão, sentiu-se atraída para a conversa que ouvia, encostando-se à parede mais próxima para escutar com mais atenção. Duas mulheres conversavam furtivamente ao dobrar da esquina, os corpos juntos e os olhares cruzados num confronto aceso. Mesmo sem ver, Natasha conseguia sentir a tensão entre elas, suscitando o seu interesse.
- Eu tenho de o fazer. Não vou interferir no conto de fadas dos meus alunos, Dovey. - ouviu Lady Lesso dizer, a voz áspera surpreendendo Natasha.
Clarissa Dovey, a Diretora do Bem. Então é esse o nome dela, pensou, mordendo a língua.
- Não podes ser assim tão irresponsável, Lesso! Ambas estamos recordadas do que o pai dela fez. Já é mau o suficiente ela ter o poder dele...
- Fala baixo. - interrompeu Lesso com rispidez - Não vou permitir...
- O quê? Que fale da filha da Alina? Foi muito baixo da tua parte não me teres dito que ela estava aqui. - a voz de Dovey fraquejou, perdendo a compostura por breves instantes- Se eu soubesse...
- Terias impedido que ela sequer pusesse os pés aqui.
- Ela é um perigo para todos nós. Por muito que ame Alina...
- A Alina morreu.
As palavras atingiram a jovem ruiva com uma força inesperada. Uma coisa era saber que a sua mãe partira... outra era ouvir alguém dizê-lo em voz alta. Sentiu as pernas fraquejarem e mordeu o lábio inferior com força, o sabor a sangue incendiando-lhe os sentido e impedindo-a de cair. O coração batia-lhe aos ouvidos, ensurdecedor.
Tinha as duas Diretoras a falarem dela. Por alguma razão, era suficientemente importante para ser falada... o que só a tornava mais interessante.
Espalmando as mãos na parede, Natasha inclinou-se para espreitar as duas mulheres.
- Estás a mentir. - murmurou Dovey, levando a mão à boca - É Mau demais, até para ti.
- Achas que eu mentiria sobre isto? - questionou Lesso, irritada - E como é que não sabias? Onde estavas tu estes anos todos? Amavas-a tanto que nem sabias que ela tinha uma filha. - os olhos violeta de Lesso faiscaram, a dor inundando o olhar da professora - Eu pelo menos tenho a desculpa de ser Má.
- Não podemos atravessar a barreira que separa o Bosque de Gavaldon...
- Inventa as desculpas que quiseres, Dovey. A verdade é que a tua melhor amiga morreu sozinha e deixou a filha à sua própria mercê. A miúda nem sequer sabe quem é o pai...
- Não vais dizer-lhe, pois não?
A bílis de Natasha subiu-lhe à garganta, a ansiedade corroendo-a. Será que iriam descair-se e revelar a identidade do seu pai? E qual a razão para Dovey estar tão amedrontada ao questionar a outra professora?
Observou a expressão inalterável de Lesso. Os lábios da Diretora prensaram-se numa linha fina, engolindo em seco antes de responder:
- Não. Nem eu brinco com o fogo, Dovey.
A professora do Bem assentiu, libertando um suspiro de alívio discreto. Os olhos castanhos encararam os violeta com seriedade, inclinando-se para pousar a mão no ombro da outra com familiaridade. Natasha esperara que Lesso se retraísse, afastando-se, algo que não aconteceu. Ao invés disso, a professora do Mal descaiu os ombros, abandonando a postura régia para permitir-se descontrair.
Numa outra vida, talvez aquelas duas mulheres pudessem ser amigas. Talvez, no passado, tivessem sido.
Por instantes, Natasha imaginou Agatha e Sophie no lugar delas, duas faces da mesma moeda.
- Não podes. - ouviu Dovey dizer, com um pesar genuíno na voz - Não podes desbloquear a magia da Natasha. O poder dela já é perigoso que chegue... se desbloqueares o resto...
Não continuou. Lady Lesso baixou o rosto, fitando o chão. Parecia atormentada, uma emoção que Natasha nunca esperara ver numa mulher tão empoderada como aquela.
- Talvez tenhas razão. - respondeu a dos olhos violeta, num murmúrio - Eu não... Não vou desbloquear a magia dela.
O frio gélido no coração de Natasha espalhou-se pelo seu corpo, desenhando um sorriso malicioso no seu rosto de boneca. Em passos decididos, afastou-se, deixando as duas professoras para trás.
Agora sim... mal podia esperar pela cerimónia.
Afinal de contas, o fruto proibido é o mais apetecido.
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